História, memórias e causos do Bar Palácio
O Bar Palácio tem muita história para ser contada. Muito já foi feito pela historiadora Mariana Corção, cuja dissertação de mestrado foi sobre a trajetória e a cultura do nonagenário Bar Palácio. Partindo das pesquisas dela, hoje o Turistória se dedica a contar a história de mais esse patrimônio cultural da cidade de Curitiba.
Origens
Inaugurado na década de 1930 e em funcionamento até hoje, o Bar Palácio é um dos mais tradicionais estabelecimentos gastronômicos de Curitiba. Inicialmente, ficava na rua Barão do Rio Branco, nº 388, onde foi aberto ainda com o nome de “Café e Restaurante Palácio” — pelo que nos consta, essa sede foi demolida. Ele leva esse nome pelo fato de que, na época de sua fundação, localizava-se em frente ao Palácio do Governo do Estado, em cujo prédio hoje funciona o Museu da Imagem e do Som do Paraná.
Nesse período, a paisagem de Curitiba era ainda predominantemente rural, mas a localização do bar era privilegiada. A Estação Ferroviária ficava a três quadras do Bar e foi “um foco irradiador de negócios na região”, afirma Mariana Corção em sua dissertação de mestrado intitulada “Os tempos da memória gustativa: Bar Palácio, Patrimônio da Sociedade Curitibana (1930 - 2006)”.
Nesse contexto, a rua Barão do Rio Branco servia de ligação entre a Estação, o centro da cidade e a Estrada da Graciosa, contando com diversos estabelecimentos, como hotéis, botequins, escritórios, armazéns, cinema, além do último ponto de bonde. Ao lado do já popularmente chamado Bar Palácio, estava o Cine Vitória; nas proximidades, o Hotel Johnscher; logo acima, o Clube Curitibano e a sede da prefeitura, no Paço da Liberdade. Alguns anos depois da fundação do Bar Palácio, na antiga rua da Liberdade (rebatizada de Barão do Rio Branco em 1914) já estavam a todo vapor a Casa 444, o Restaurante Rio Branco, a Rádio PRB-2 e os jornais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná.
Certamente essa importância política e cultural da Barão do Rio Branco, que era o “eixo de poder” da cidade, influenciou o imigrante argentino Adolfo Bianchi a inaugurar ali o “Café e Restaurante Palácio”. Em pouco tempo, o local ficou conhecido pelo filé de boi assado na churrasqueira - churrasqueira esta que fica ao lado das mesas, com a possibilidade de os clientes verem as carnes assando - e pela carne de cabrito e leitão assada no espeto giratório. Dos seis (6!) restaurantes existentes em Curitiba em 1930, o Palácio logo se tornou o melhor e o mais famoso. Tanto que no final dos anos 30 ninguém o conhecia como “café”, e sim como restaurante.
Para além da carne boa, o Bar Palácio era popular por outro motivo. Conforme revela Mariana Corção, no início o Bar abria às 18 horas para fechar somente às 7 da manhã do dia seguinte. Isso o fazia receber diferentes tipos de público, servindo tanto para reuniões familiares quanto para encontros entre amigos, intelectuais, boêmios, políticos e estudantes. As mulheres só eram servidas se estivessem acompanhadas por homens, o que anos depois causou justa revolta (sobre a qual falaremos mais ao final do texto).
À época, era o único restaurante que permitia esse tipo de sociabilidade e que entrava madrugada adentro, características muito semelhantes às de bar, então muitos passaram a chamá-lo de Bar Palácio. Com o tempo, o horário foi reduzido e desde a década de 1990 o bar funciona das 19h à uma da madrugada. Nos fins de semana, o Palácio vai até as 3!
No jornal Correio de Notícias, em 1986, o Bar Palácio foi definido da seguinte forma:
“De Palácio, o restaurante só conta com o nome. O local é simples e o luxo dos palácios é substituído pela qualidade do cardápio. Ao se ouvir falar do Bar Palácio e seus freqüentadores, muitos imaginam um local sofisticado, onde garçons bem uniformizados servem pratos cuidadosamente decorados, que compõem um vasto cardápio internacional. Na realidade, o Bar Palácio dispõe de um ótimo cardápio caseiro e os pratos são preparados com rigor e qualidade, não com beleza. Mesmo assim, o restaurante marcou época e ficou conhecido como um local aristocrático.”
Mais do que aristocrático pela forma, o Bar Palácio assim se fez pelos seus clientes, que o tornaram um dos maiores pontos de convívio da sociedade tradicional de Curitiba.
Novos tempos
Em 1945, o Bar Palácio foi adquirido por funcionários da Companhia Inglesa São Paulo Railway, mas cinco anos depois a sociedade já havia sido desfeita. Foi então que um dos sócios, Antonio Humia Duran, vendeu o prédio do bar (o nº 388, que hoje não existe mais). Entre 1945 e 1955, o Bar Palácio funcionou na Av. Marechal Floriano Peixoto.
Em 1955 o genro de Duran, o espanhol José Fraguas Lopez (chamado de Pepe) adquiriu o Bar, inaugurando-o um ano depois na rua Barão do Rio Branco, nº 383. Não sabemos ao certo, mas acreditamos que seja essa a sede famosa, que hoje está pintada em bordô, cujo número foi redefinido para 438. O prédio em questão foi até capa de livro, e representou o momento em que o Palácio mais apareceu nos jornais, entre as décadas de 60 e início da de 80. Ele era alugado de uma família que até hoje o mantém, e recentemente foi reformado, já que é uma “Unidade de Interesse de Preservação” de Curitiba.
Quanto a seu Pepe, ela já está 88 anos, e continua no Palácio, embora vá pouco até ele; a gerência está com Laurindo Graciano, que lá trabalha desde 1994.
Com Pepe, o Bar Palácio continuou sendo um dos únicos programas noturnos de Curitiba. Após os eventos como bailes, festas, reuniões, aulas, etc., ou ia-se ao Palácio, ou ao Bar Triângulo, famoso por seu cachorro-quente e considerado uma opção mais acessível do ponto de vista dos preços, já que o outro era um dos mais caros restaurantes de Curitiba. “As boates iam-se fechando e o refúgio fatal era o Palácio”, conta Valério Hoerner Júnior.
Política no Palácio
Além da fama aristocrática, boêmia e intelectual, o Bar Palácio se notabilizou também pela efervescência política. Para exemplificar muito bem essa característica, citamos os dois seguintes casos, separados por 20 anos:
O primeiro ocorreu na primeira quinzena de março de 1964, e é contado por um frequentador do bar, Percyval Charquetti, no livro “O Folclórico Palácio”, de Valério Hoerner Júnior (1984):
“Naquela madrugada estávamos com Chico Buarque de Holanda em casa: viera com Aramys Millarch. Não quis cantar; ele viera para o churrasco e para a cerveja [...].
[Tinha] Boca-livre uma noite no Palácio e promovida pela assessoria de Imprensa do Ministério do Trabalho. Sim senhor, o Ministro do Trabalho [Amaury Silva] que era paranaense estava em Curitiba. Era na primeira quinzena de março de 1964.
[...] Por volta da meia noite estava todo mundo dos jornais no Palácio. O país vivia um clima que Deus me livre: greves por todas as partes, confusões e mais confusões.
[...] Um deles, o Jairo Regis que era o chefe dos jornalistas, pregava que nós não tínhamos visto nada, que no dia em que o ministério quisesse o Brasil todo pararia.
[...] Um dos jornalistas daqui (eu) justamente contradisse o Jairo. Lembrando-lhe que tinha os três ministérios que estavam de olho. Foi a pior viagem; o jornalista nos gozou: exército não existe: é uma macacada que só sabe fazer continência; Aeronáutica, nem se fala: tem meia dúzia de aviões que mal servem no país, caindo um volta e meia; marinha então nem se fala, só aquele casco velho de Minas Gerais.
[...] Foi aplaudidíssimo.
O que aconteceu 15 dias depois?”
15 dias depois houve o golpe, instituindo a ditadura militar que durou até 1985.
O segundo caso ocorreu, coincidentemente, um ano antes do fim do regime militar citado por Percyval. Esse episódio foi agora recuperado pela jornalista Jess Carvalho do Jornal Plural, em excelente matéria. Trata-se do que hoje se entende como levante feminista, que foi um movimento de 4 mulheres que se impuseram para serem atendidas no Palácio, pois o serviço a mulheres desacompanhadas era proibido.
Desde os anos 40 o atendimento a mulheres desacompanhadas era vedado. A justificativa era de que o ambiente de respeitabilidade seria perdido caso alguma prostituta estivesse no local e fosse atendida, e também de que “mulher sozinha dava enguiço porque sempre havia um engraçadinho entusiasmado que entendia transportar-se da pele de Robert Taylor….pretendendo o êxito das conquistas”, disse Valério Júnior.
Mas a verdade é que era difícil ver uma mulher no Bar Palácio, mesmo que acompanhada, pois a característica masculinizada desse ambiente assustava; era ambiente de homem e muitas vezes hostil a elas.
Eis que, na madrugada de 27 de janeiro de 1984, as estudantes Sonia Cristina Bittencourt, Cláudia Sigmalt, Vera Lúcia Bittencourt e Isabel Cristina Oliveira entraram no Bar Palácio, mas o garçom se negou a atendê-las. Segundo Isabel, em depoimento para o Plural,
“O garçom nos disse que eles não serviam mulheres desacompanhadas. Quando
ele começou a falar, nós achamos que era brincadeira, mas aí percebemos o bar todo olhando pra nós. A Sonia levantou pra dez e falou: ‘Como assim? Vamos pedir pra alguém sentar aqui’. Mas ele repetia que não podia, não podia e não podia: era a regra da casa.”
No dia seguinte, elas prestaram queixa contra o Bar Palácio, e Pepe foi enquadrado na lei de contravenção, por impedir o atendimento a mulheres desacompanhadas em seu estabelecimento. No outro dia, 29, o Palácio passou a atendê-las. Nessa altura, a notícia já havia se espalhado pelo Brasil: as estudantes eram capa de jornais e vítimas de burburinhos na cidade; segundo Isabel, não se contestava a misoginia do Bar, mas sim “o que 4 mulheres estavam fazendo sozinhas na rua e de madrugada”.
Em relato no grupo memorialístico do Facebook “Antigamente em Curitiba”, na caixa de comentários de uma postagem de Jose Jorge Neto, de abril de 2020, que traz o texto “Entrando no Bar Palácio”, de autoria de Paulo Grani, Sonia Bittencourt conta que
“ (...) fomos à delegacia prestar queixa. Nos mandaram para outra. Fomos. No dia seguinte continuamos o périplo. E demos início a uma ação contra o Bar Palácio. Íamos em frente, mas meu pai, amigo do Pepe (dono do Bar), foi procurado por ele. Meu pai pediu, então, que déssemos um fim àquilo. Como podia ser? Perguntou. Respondemos que se eles começassem a atender mulheres, retiraríamos a ação e assim foi. A partir dali começaram a atender mulheres."
Sede atual
Depois de trinta anos na sede da rua Barão do Rio Branco, o seu Pepe construiu uma nova, na rua André de Barros. Conforme o movimento da rua Barão do Rio Branco foi decaindo, sobretudo com a descentralização das zonas comerciais para os shopping centers e com a mudança do eixo de poder para o centro cívico, aos poucos o movimento do Bar Palácio diminuiu. Isso determinou a mudança para sua atual sede, em setembro de 1991, localizada na rua André de Barros, nº 500.
Era grande a preocupação nos jornais de que essa mudança acabasse com a tradição do Bar. A preocupação era tanta que, anos antes, tentou-se que o Bar Palácio fosse tombado como patrimônio cultural do estado, iniciativa que não foi adiante mas que, pensamos nós, deveria ser retomada, tendo em vista a quase centenária tradição do Bar.
De toda forma, a tradição não se perdeu. Embora hoje já não seja mais o centro de convívio da sociedade tradicional, o Bar continuou e continua reconhecido, tanto que, em suas dependências, foram gravadas cenas do filme Estômago (2006), um clássico contemporâneo nacional já disponível na plataforma Netflix. Quando da gravação do filme, seus diretores fizeram um estudo em dezenas de bares, até chegar à conclusão que a cozinha do Bar Palácio era a melhor para as gravações. No bar há, inclusive, um pôster do filme. O Palácio também recebeu visitas ilustres, sempre atraídas pelo cardápio e pelos seus tradicionais frequentadores.
Hoje, a clientela fiel do Bar Palácio são as famílias que há muito tempo o frequentam e que valorizam a sua identidade. Certamente, elas não abrem mão do Mignon à Griset, do Frango à Crapaudine e do Churrasco Paranaense, pratos de um estabelecimento que marca época pela sua trajetória e qualidade. Um dos pratos mais famosos também é a sobremesa “Mineiro com Botas” - mistura de bananas, queijo e goiabada, coberta com açúcar e flambado com rum.
Visitas ilustres
O Bar, por sua fama e qualidade, teve muitos visitantes ilustres, tanto nacionais quanto internacionais.
Entre os internacionais está o multipremiado diretor Francis Ford Coppola, que tem em seu currículo filmes como O Poderoso Chefão e Apocalipse Now. Em 2003, o diretor fez uma visita a Curitiba com o objetivo de buscar cenários para um filme que acabou nunca sendo realizado. A visita, no entanto, rendeu boas histórias a Coppola e a quem o encontrou. Um dos pontos de parada do cineasta foi o Bar Palácio.
O Bar era ponto de encontro também de jornalistas e dirigentes de futebol depois de transmissões esportivas. A região de todas as sedes que o bar já teve é a mesma - o Centro de Curitiba, próximo à atual Câmara Municipal e o Shopping Estação - e lá costumavam estar alocadas as redações de vários jornais, o que tornava o bar um ponto de parada de muitos jornalistas.
Outros famosos que visitaram o local foram os atores Chico Buarque, Tony Ramos, Malu Mader e Marieta Severo. Regionalmente falando, as famílias tradicionais da política e da sociedade curitibanas Requião e Lerner são clientes do bar. Jaime Lerner, que inclusive era amigo de Coppola e esteve com ele em sua visita a Curitiba, era frequentador assíduo do restaurante. Lerner afirmou certa vez, em depoimento ao jornalista Reinaldo Bessa, que “O Bar Palácio é o bar do consenso. Quando a gente sai de algum lugar com os amigos, do cinema, por exemplo, e se discute onde ir, ninguém discorda quando surge a ideia de ir lá”.
Por todos os motivos acima citados, o Bar Palácio se apresenta como patrimônio histórico e cultural de Curitiba e dos curitibanos. Mesmo mudando de sedes e de proprietários, o Bar sempre manteve sua tradição quase centenária na capital paranaense.
Fotos do interior do Bar Palácio, tiradas pelo Turistória em Outubro de 2021:
Texto e pesquisa de Gabriel Brum Perin e Gustavo Pitz
Fonte de pesquisa:
Mariana Corção. Os tempos da memória gustativa : Bar Palácio, patrimonio da sociedade curitibana (1930-2006). Dissertação de mestrado em História, UFPR, 2007.
Jess Carvalho. O levante feminista que abriu o Bar Palácio para mulheres “desacompanhadas”. Jornal Plural, 8 set. 21.
Valério Hoerner Junior. O Folclórico Palácio, Curitiba, Graf. Vicentina, 1984.
Fotografando Curitiba
https://www.fotografandocuritiba.com.br/2015/12/antiga-sede-do-bar-palacio.html
Gazeta
Blog
https://viagemdecinema.blogspot.com/2014/06/estomago-filme-de-primeira-e-locacoes.html
https://www.panoramadoturismo.com.br/destaques/bar-palacio-90-anos-de-boa-mesa
https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/cinema/coppola-esteve-aqui-2yjee098scfwcc5jqqtu81lv4/
Reinado Bessa. Especto Giratório. Gazeta do Povo. Curitiba, 29 mar. 2004.
https://tutanogastronomia.com.br/bar-palacio/
http://www.noticiario.com.br/carroussel/with-carousel.html#
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