sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O armazém que virou palacete: a história do Tigre Royal

 O armazém que virou palacete: a história do Tigre Royal

História, modernização e imigração 


  O terreno no qual se construiu o palacete foi comprado em 1914 pela família imigrante libanesa Fatuch. Antes, ali funcionava um dos mais importantes armazéns de Curitiba, o Affonso Penna, propriedade do engenheiro e imigrante alemão Francisco Keller, junto do qual havia uma casa pertencente a Paulo Hauer e a “Pharmacia Internacional Oncken", criada pelo fotógrafo e também imigrante alemão Alberto Oncken. 

  Não se sabe ao certo, mas é provável que o Armazém tenha se instalado ali logo depois de 1874, quando o Mercado Municipal foi inaugurado no centro da Praça. A escolha do nome “Affonso Penna” — em homenagem ao ex-presidente da Primeira República entre 1909-1909 —, porém, deve ter sido feita somente depois de 1909, data de falecimento deste político.  

Na época, ter um comércio nesta área da Praça Generoso Marques — então chamada de Praça Municipal — e da Rua da Liberdade — atual Barão do Rio Branco — significava estar num dos locais de maior concentração de pessoas. Além ser próximo ao Mercado, a região era passagem para quem ia ao Alto da Glória, à estação Ferroviária ou à Praça Tiradentes. Por isso, o investimento era de baixo risco, embora muito caro. 

  A proeminência deste local era tamanha que, ao lado do Armazém Affonso Pena, existiam dois outros grandes comércios. O primeiro era a Fábrica de Arreios e Sellins de Carlos Marty, possivelmente um imigrante espanhol; e o segundo e mais famoso era a Gráfica de Adolfo de Alencar Guimarães, filho de Bárbara Augusta de Alencar, irmã do renomado escritor José de Alencar — Adolfo foi senador paranaense. Ambos os estabelecimentos estavam ali, pelo menos, desde o final do século XIX.


Mudanças ocasionadas pela eleição de Cândido de Abreu


   Indicado pelo governador Carlos Cavalcanti, Cândido de Abreu se destacou em sua trajetória política por estar antenado aos mais recentes projetos de modernização urbana, pautado, sobretudo, pela Belle Époque, pela ideia de civilização e progresso, e pelas políticas higienistas. Quando assumiu o cargo de prefeito em 1912, Cândido de Abreu tratou com prioridade o planejamento urbano, ao transformar o centro de Curitiba num espaço para ricos comerciantes e proprietários — processo que expulsou da região as fábricas, comércios populares e moradias de pessoas mais pobres.


  Um de seus primeiros atos foi uma completa mudança da Praça Municipal. Até então, não havia saneamento básico, pavimentação e calçamento, sendo a presença do mercado Municipal um fator que ocasionava aglomeração de pessoas, sobras de comida pela chão e proliferação de ratos e doenças.


  Tendo em vista que Curitiba, no início do século XX, transformava-se numa cidade de ricos ervateiros, comerciantes, proprietários de terra e funcionários liberais como engenheiros e advogados, essa feição do centro da cidade era repulsiva para quem pretendia seguir aos modelos civilizacionais então valorizados.

 
  Para mudar isso, Cândido de Abreu transferiu o Mercado Municipal e demoliu a sua estrutura na Praça, para a construção do Paço Municipal aos moldes arquitetônicos europeus. Além disso, a Praça em sua frente foi reformada, pavimentada e recebeu uma estátua em homenagem ao Barão do Rio Branco. No seu entorno, muitas das casas, ainda em estilo colonial, foram expropriadas, realocadas ou totalmente reformuladas, de modo que a calçada e as ruas envolta do Paço se tornassem mais abertas. O intuito foi o de transformar o espaço num boulevard.

  Essa reforma levada à cabo por Cândido de Abreu atraiu muitos migrantes e imigrantes de posses, que passaram a enxergar em Curitiba uma possibilidade não só de enriquecimento, mas de demonstração de poder e riqueza. Enquanto que no Alto da Glória e no Batel ficavam os casarões e chácaras dos erva-mateiros e políticos locais, esse novo centro passou a ser moradia de alemães e árabes, por exemplo, que cruzavam o Atlântico em busca de oportunidades comerciais — e com o bolso cheio. 

  Por meio da ação dos imigrantes, floresceram, então, diversos palacetes, sobrados e casarios ao entorno da Praça Municipal, como a Casa Edith, o palacete Joaquim Augusto de Andrade, o centro Mounif Tacla e o Tigre Royal. Essas casas se caracterizaram pela arquitetura eclética, que combinava elementos modernos e clássicos, e pela luxuosidade na ornamentação — em cima, no 2º andar, moravam as famílias proprietários, e o térreo sediava o negócio delas ou era alugado. 

  Todas essas construções são Unidades de Interesse de preservação de Curitiba, e a até hoje permanecem preservadas. 

A trajetória Tigre Royal

    José Pacífico Fatuch e Irmãos inaugurou o prédio totalmente reformado em 1916, data que está estampada até hoje no frontão. Logo na sequência, no 1º andar foi aberto o famoso Cine Parisiense, da empresa A. Zanicotti, que ali ficou até meados da década de 20, quando foi substituído por outros tipos de comércio, como a loja Hermes Macedo, companhias de seguro, lotérica e a Empresa Hoepcke.


   Em 1923, José Pacifico foi sucedido por Elias Pacífico Fatuch no comando da administração do palacete, pois ele era um dos seus sócios. Logo que assumiu, Elias Fatuch mudou o nome para “Pyramide”, nome da antiga propriedade que ele tinha na XV de Novembro — embora o escrito “Tigre Royal” tenha permanecido no frontão. Não sabemos, porém, se a mudança de dono ocorreu pela morte de José ou por motivos de dívidas, porque em 1922 ele havia sido condenado a pagar pendências a Elias Pacifico Zattar e a José Nacir Zattar.


   De todo modo, o herdeiro dos Fatuch permaneceu no 2º andar do Tigre Royal até a década de 50 e manteve o legado da família libanesa aqui em Curitiba. Depois, o palacete foi utilizado para sediar colégios, e também foi casa do Calachi Comércio de Armarinhos e da tradicional Casa Sade. Nesse período, provavelmente não havia mais moradores no local, sendo o prédio um possível patrimônio municipal.


   A história do Palacete dos anos de 1990 e pra cá foi de revitalizações, pois o Tigre Royal se tornou uma Unidade de Interesse de Preservação, título que permitiu a sua existência até os dias de hoje.


   Atualmente, lá funciona um restaurante e uma loja de calçados. 




Curiosidades

Quem passa na frente do Tigre Royal pode observar que uma de suas laterais não tem a mesma arquitetura do restante do prédio; é somente uma parede lisa, com grafite, sem janelas. Isso soa estranho, mas tem um motivo histórico. Quando construído, o Palacete tinha como vizinho as propriedades de Alencar Guimarães e Carlos Marty. Depois — provavelmente na primeira metade do século XX — estas construções foram demolidas, e nesse terreno foi estendida a rua Garcez Moreira. Então, a parede direita do sobrado, antes ao lado de outra, ficou exposta e até hoje assim é mantida.

Outra curiosidade é em relação ao sobrenome “Fatuch”. Fatuch ou Fattoush é um prato de salada típico no Líbano e na Síria. A sua utilização como um nome se deve ao fato de, provavelmente, os libaneses do Tigre Royal serem cristãos — a maioria dos imigrantes árabes no Brasil, chegados antes das Guerras, era cristã.

Por fim, a grande questão é sobre o motivo da escolha do nome “Tigre Royal”, até hoje não explicado. Então, nós, do Turistória, iremos descrever três possíveis influências e você, leitor, fica livre para escolher a que mais lhe apetece.

  1. Tigre Royal é o nome da obra do pintor francês (1798-1863), publicada em 1829 e de traços românticos. Pode ter sido uma influência na medida em que as referências arquitetônicas deste palacete e dos demais eram majoritariamente francesas.
  2. Royal Palace foi o nome da casa real portuguesa no século XVIII, com estilo arquitetônico semelhante ao visto no Tigre Royal.
  3. Tigre pode ter relação com o Rio Tigre, um dos rios mais famosos do mundo (junto com seu companheiro Rio Eufrates), cuja nascente passa pela Síria.
  4. Para os árabes, o animal tigre representa a grandeza, um sentimento bom e de grande afeto. Por isso, talvez os imigrantes libaneses que criaram o Tigre Royal tenham se utilizado desse nome para dar identidade ao imóvel (muito árabes, inclusive, tatuam um tigre no corpo depois de fazer 18 anos, com intuito de que aquilo lhes dê prosperidade).

Limites e possibilidades

  Como o leitor pôde notar, embora a história do Tigre Royal seja bem conhecida e, felizmente, muito bem preservada na memória e no patrimônio, muita coisa sobre ele não nos é possível saber, porque a História sempre tem lacunas. Mesmo assim, aquilo que é sabido já nos diz muito não só do seu passado, mas do de Curitiba como um todo.



Texto e pesquisa: Gustavo Pitz

Referências


RIZZI, Suzelle. Cândido de Abreu e a Arquitetura de Curitiba entre 1897 e 1916. 2003. 186 p. Dissertação (Mestrado em Teoria, História e Crítica da Arquitetura). Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba.

https://www.gazetadopovo.com.br/haus/estilo-cultura/praca-generoso-marques-historia-curitiba-arquitetura-point-cultural-descolado/


https://curitibaspace.com.br/palacete-tigre-royal/


http://www.fotografandocuritiba.com.br/2016/03/tigre-royal.html


https://www.arquivoarquitetura.com/062

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