A escravidão em Curitiba: um passado negado
Em 29 de Março de 1693 era fundada a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Na época, era a segunda vila construída por portugueses ao sul da capitania de São Vicente, precedida pela Vila de Paranaguá (1648). Embora não se tenha achado ouro na região (que foi o motivo principal para a criação da Vila), ela continuou a ser povoada séculos afora com intuito de manter o domínio português na região sul, o que não significou, entretanto, um rápido crescimento populacional e econômico. A partir de 1721, ela passou a ser chamada de Vila de Curitiba.
A capitania de São Vicente, naquele momento, era responsável pela administração dessas vilas. Ela compreendia o território leste do atual estado de São Paulo, o Paraná e o sul de Minas Gerais. Logo no início do século XVIII foi substituída pela capitania de São Paulo e Minas Gerais, que abrangia um território maior ao norte de Minas, mas que mantinha sob sua posse as vilas de Curitiba e Paranaguá. Como essa capitania era imensa, ambas as vilas ficaram distanciadas dos centros do poder, principalmente Curitiba, uma vez que não tinha acesso ao mar (a Estrada da Graciosa foi um importante meio para a ligação de Curitiba ao Oceano, porém ela data do século XIX), muito menos podia se estender ao oeste, até então inabitado por colonizadores.
E dentre esses curitibanos, afinal, havia escravizados?
Há quem diga que já que eram pouquíssimos os escravizados, a presença deles mal foi sentida na formação cultural de Curitiba. Essa foi uma visão predominante para os intelectuais do século XIX e até meados do XX. Não faz 70 anos que o historiador Wilson Martins disse: “não houve escravatura no Paraná”. Pois bem, se comparada aos números da Província de São Paulo e do Rio de Janeiro no século XIX, a população negra era realmente pequena no Paraná e em Curitiba. Esse dado, porém, deve ser analisado a partir dos parâmetros locais. Quando se tem essa comparação, a escravidão na capital paranaense é mais do que marcante.
A população começou a ser efetivamente contabilizada a partir de 1800. Nessa época, em 1817, Curitiba tinha cerca de 10.000 habitantes, sendo 200 deles oficialmente escravizados. Essa proporção aumentou até o final da escravidão: na década de 1870, quando os habitantes não passavam de 12 mil, o número de escravos era de 2597. Ou seja, pouco mais de 20% das pessoas eram africanas e seus descendentes, não-livres. Isso contando só os cativos. Deve-se lembrar que, além desses 20%, também havia negros livres: alforriados (compravam ou ganhavam a sua liberdade), descendentes e filhos de portugueses com escravizados. Ou seja, a população negra certamente passava de 2597, não se restringindo, portanto, aos escravos.
O relato produzido pelo médico alemão Robert Christian Barthold Avé-Lallemant sobre sua passagem por Curitiba, em 1858, simboliza essa diversidade populacional.
“Quanto ao que se vê na população, parece ser bastante mestiçada e em toda parte aparecem linhas nítidas de genealogia indígena e africana na multidão, se se pode chamar de multidão os poucos milhares de habitantes de Curitiba.”
A presença da população negra na Curitiba do século XIX foi, portanto, bastante visível. O mesmo pode ser dito, porém, sobre o século XVIII?
A resposta é “sim”. Devemos lembrar, entretanto, que o número de escravizados nos anos de 1700 provavelmente foi menor do que nos anos 1800. O motivo dessa diferença numérica é consequência da baixa povoação de Curitiba no século XVIII: quanto menor era o número de moradores, menor era a quantidade de escravos. Por isso, é possível dizer que, em 1780, por exemplo, havia menos escravizados dos que os 200 registrados em 1817.
Tal dado, no entanto, não reforça o negacionismo da escravidão, pois Curitiba é uma cidade com origem colonial, ou seja, a escravidão era absolutamente aceita e amplamente utilizada. E mais, Curitiba também foi uma cidade do Império do Brasil, quando o regime escravocrata atingiu seu auge.
Desde quando foi fundada, a capital paranaense conviveu com a escravidão, mantendo-a até a abolição em 1888. Foram quase 200 anos de influência da cultura negra na história da cidade e do estado e que se estende até os dias atuais.
Uma escravidão diferente?
Também há quem diga que a escravidão em Curitiba foi diferente das demais cidades, principalmente daquelas onde havia a prática da agricultura em grande escala e, portanto, mais mão-de-obra escrava (como o caso do plantio de café em São Paulo ou da cana-de-açúcar no nordeste). Como Curitiba não teria esses condições, o número de cativos era menor e, com isso, a escravidão teria sido mais branda.
É verdade que em Curitiba não havia grandes plantações que utilizavam largamente a mão-de-obra escrava. Nos séculos XVIII e XIX (pelo menos até 1880), a cidade era pequena e se restringia aos arredores da Igreja Matriz (atual Praça Tiradentes e Centro Histórico), tendo não mais que 400 casas. Assim, era um local de características urbanas. Justamente por isso os escravos serviam a funções domésticas, ofícios artesanais (construção, reparos) e cultivo de pequenas plantações para seus senhores. Porém, tal escravidão não diferia das demais, pois na capital os negros cativos também eram mercadorias sobre as quais uma minoria de elite afirmava posse, através da violência, da exclusão e até da pena de morte (veja os documentos abaixo). Sendo assim, os castigos e ausência de direitos se davam da mesma forma que em qualquer outro lugar.
Resistência à escravidão
Se a escravidão em Curitiba existiu, também existiu resistência a ela. Documentos do Arquivo Público mostram que a reação dos escravos foi variada: fuga (geralmente para Quilombos), assassinato dos seus senhores, reivindicação de liberdade, alforrias e associação em Irmandades (espaços criados pelos negros para auxílio mútuo, em caso de doença, enterro e assistência a órfãos e viúvas; de arrecadação de recursos para a alforria; e manutenção dos traços culturais africanos). Além disso, os escravos também mantiveram hábitos culturais (como as religiões de matriz africana) e participaram ativamente do processo de construção física e cultural da cidade (casas, igrejas e demais obras públicas).
Exemplos de resistência documentados pela polícia de Curitiba (do Arquivo Público):
Autor/cargo Antônio Francisco de Azevedo, Juiz de Direito.
Destinatário/cargo Zacarias de Goes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná.
Ref. Informa a condenação, à pena máxima, do réu Pedro, pardo*, por ter assassinado o senhor Ignácio Mariano de Oliveira e o menor Vidal, tendo como cúmplice o escravo João.
Local Curitiba, 30 de julho de 1853
Autor/cargo Antônio Francisco de Azevedo, Juiz de Direito.
Destinatário/cargo Zacarias de Goes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná.
Ref. Envio da cópia do processo que condenou o réu Joaquim à pena de morte por ter assassinado seu senhor, Bento Alves Fontes, em sua fazenda em São José dos Pinhais.
Local Curitiba, 22 de dezembro de 1853
Autor/cargo Amâncio José Ferreira, a rogo de João, escravo de Antônio Vicente, suplicante.
Destinatário/cargo José Antônio Vaz de Carvalhaes, Vice-presidente da província do Paraná.
Ref. Solicita ajuda para conseguir sua liberdade, visto que seu senhor não a quis conceder-lhe por meio amigável.
Local Curitiba, 13 de outubro de 1856
Autor/cargo Sebastião Gonçalves da Silva, Chefe de Polícia da província do Paraná.
Destinatário/cargo Antônio Barbosa Gomes Nogueira, Presidente da província do Paraná.
Ref. Informa que foi presa, por ter fugido, a escrava Rosa, pertencente a Pedro Ezequiel de Araújo.
Local Curitiba, 28 de junho 1861
Autor/cargo Luiz Francisco da Câmara Leal, Chefe de Polícia da Repartição de Polícia da província do Paraná.
Destinatário/cargo Francisco Liberato de Mattos, Presidente da província do Paraná.
Ref. Esclarece que a insurreição de escravos que se supunha iria acontecer em Antonina não passava de boato levantado contra a Irmandade de São Benedito, formada em sua maioria por escravos, que estavam reformando sua igreja de Nossa Senhora do Rosário, conseguindo arrecadar mais dinheiro do que a igreja matriz, que também passava por reformas. O boato faria com que os escravos desviassem sua atenção das obras da igreja.
Local Curitiba, 23 de janeiro de 1859
As heranças de um passado também negro
São muito comuns os livros de história que não mencionam a memória e as histórias dos afrodescendentes no Paraná e em Curitiba. Também é comum ouvirmos discursos que negam a escravidão e a importância da presença negra no estado e na cidade. Em geral, esses livros e essas ideias sociais valorizam e muito a importância dos imigrantes europeus, que fizeram de Curitiba uma “cidade europeia”. Em geral, quando citados, os africanos são um mero apêndice da história que se iniciou com portugueses e se findou com a chegada dos estrangeiros brancos.
Pois bem, contra esse silenciamento da história e da memória negra, desde o final do século XX houve iniciativas acadêmicas e do movimento negro para o resgate e valorização desse passado escondido da história do Paraná. Uma decorrência dessa revisão histórica foi o projeto AfroCuritiba: passeios pela história e memória da presença negra na cidade, que é um trabalho de pesquisa sobre a história dos afrodescendentes, cujo resultado foi a construção de um percurso histórico em Curitiba nos locais em que a presença dos negros se fez sentir. Idealizado pela professora doutora Joseli Mendonça (DEHIS/UFPR), o percurso refaz um caminho que perpassa mais de 10 locais de Curitiba, e conta com a mediação de graduandos da UFPR. Ele é realizado pelo menos 1 vez ao mês, após a professora e seus orientandos divulgarem as datas do percurso e da inscrição para realizá-lo (para saber mais e marcar uma mediação, acesse o site: https://afrocuritiba.afrosul.com.br/).
Aqui estão alguns locais do percurso AfroCuritiba que afirmam a história dos negros em Curitiba:
1. Ruínas do São Francisco: a gente já contou um pouquinho da história delas aqui no Turistória
(acesse o link: http://turistoria.com.br/ruinas).
Ainda que inacabada, essa construção só foi possível através do trabalho dos escravos especializados em obras, empenhados a construir o que era para ser uma igreja em homenagem a São Francisco de Paula.
2. Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito: como é possível ver, a foto da atual Igreja do Rosário está bem diferente daquela pintura do início do texto. A Igreja, aqui, está reformada e recentemente foi pintada de azul; a de lá, é branca e bem menor. Mesmo diferente e reconstruída, ela continua a representar um dos principais marcos da união entre escravos, que a construíram há quase 300 anos.
3.Sociedade Operária Beneficente Treze de Maio: fundada em 1888 por ex-escravos, foi construída e idealizada para amparar os negros após o regime escravocrata (por isso seu nome faz referência ao 13 de maio). Localizada na Rua Desembargar Clotário Portugal n.274, no centro da cidade de Curitiba, ela é reconhecida como a primeira sociedade negra do Paraná e a terceira mais antiga do país. Atualmente, eventos e atividades são realizados nela, como o “Forró com Areia Branca” e a “Roda de Samba.
4. Rua das Flores: onde hoje é o calçadão da Rua XV de Novembro, antigamente era chamada de Rua das Flores por conta da grande quantidade de flores que a ornamentava. Nela, principalmente na segunda metade do século XIX, encontravam-se sedes de jornais, lojas de comércio e serviços, além de casas de elite. Essas casas, além de serem construídas pelos escravizados (assim como as casas do Largo da Ordem), eram habitadas por escravos domésticos. Um exemplo disso pode ser lido num anúncio no jornal curitibano Dezenove de Dezembro, em 8 de abril de 1854: Rua das Flores em 1870.
Resistências passado e no presente
Iniciativas de resgate da história e da memória afrodescendente como as mostradas acima são fundamentais para tornar a história do Paraná mais plural e inclusiva: elas afirmam que todos os povos têm um passado igualmente importante. Elas, além disso, colaboram para a construção de uma Curitiba mais diversificada e, por isso, mais fidedigna ao real. A capital paranaense foi e é também negra e deve parte de sua trajetória à presença de africanos e afrodescendentes.
Reconhecer esse aspecto do passado paranaense, de escravidão, resistência e negritude, significa também dar voz às lutas dos negros por igualdade no presente.
Texto e pesquisa: Gustavo Pitz
Fontes
CINTRA, Jorge Pimentel. Os limites das capitanias hereditárias do sul e o conceito de território. São Paulo, 2017.
GUTIÉRREZ, Horácio. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. São Paulo, 2006.
PENA, Eduardo Spiller. O Jogo da Face: A Astúcia Escrava Frente aos Senhores e à Lei na Curitiba Provincial. Dissertação de mestrado, DEHIS/UFPR, 1990.
WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. Curitiba: Editora Gráfica Vicentina, 1988.
Jornal Comunicação: http://jornalcomunicacaoufpr.com.br/a-resistencia-13-de-maio/
Hemeroteca digital (fonte do jornal Dezenove de Dezembro)
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
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