Clube Atlético Ferroviário, o “Boca Negra”
O Clube Atlético Ferroviário, tema do nosso artigo de hoje, é um prato cheio para quem gosta de história e de memórias de Curitiba.
Assim como o Britânia, podemos dizer que o Ferroviário tem um trajetória grandiosa não só pelos seus títulos.
Entre trilhos e traves: a fundação do Ferroviário
Reunidos num abafado domingo de janeiro de 1930, dia 12, alguns funcionários e operários da Rede Viária Paraná-Santa Catarina, a RVPSC, decidiram oficializar seu time de futebol, batizado de Clube Athletico Ferroviário (com “h”). Eles estavam na casa do trabalhador Ludovico Brandalise, um dos líderes do grupo.
Logo depois da fundação, os ferroviários conseguiram a "bênção" da RVPSC. Naquela época, muitas empresas e indústrias não aceitavam que seus operários organizassem times, por acharem que isso afetaria a produtividade do trabalho, ou por pensarem que isso facilitaria a “subversão” dos funcionários e a formação de greves.
Esse não foi o caso da RVPSC e de outras empresas. Para elas, o futebol se tornou uma forma de propaganda e atração de funcionários, além de ser um importante mecanismo de controle: a vitória de jogos e campeonatos era recompensada com churrascos e promoções, bancadas, lógico, pelos empregadores.
Assim, pouco depois da fundação, a RVPSC passou a patrocinar o time de seus funcionários. Ela bancava os uniformes e outros materiais de jogo, inscrições em torneios, estrutura física para treinos e jogos, fornecia bonificações e, além disso, atuava na contratação de jogadores. Como? Ao ingressar no clube, comprovada a sua qualidade como atleta, o sujeito ganhava emprego na Rede Ferroviária.
Não à toa, o emblema e as cores do Clube Athletico Ferroviário foram escolhidos de acordo com a RVPSC. O preto e vermelho, que estampavam as camisetas do tricolor das ferrovias (que acrescentou a cor branca), eram as cores das locomotivas da empresa, bem como o escudo do time fazia alusão ao da Rede Ferroviária.[1][1]
[1]Vale destacar que o Ferroviário de Curitiba não foi o único time ligado a uma Rede Ferroviária. No Paraná, entre os anos de 1910 e 1940 surgiram outros tantos clubes relacionados a RVPSC, como o Operário de Ponta Grossa; cada cidade, ou cada estação, tinha o seu time.
O tricolor se torna “time do povo”
Muitos jogadores de outros times passaram a jogar pelo Ferroviário. O caso mais célebre foi o dos atletas do Britânia Sport Clube, que em boa parte “viraram a casaca” — algo que significou a derrocada do Britânia. A mudança de clube era até compreensível, tendo em vista as possibilidades financeiras do Ferroviário e a estrutura que estava sendo montada para a equipe.
Isso fez do tricolor da ferrovias um clube que aceitou irrestritamente a presença de jogadores negros, muitos advindos do Britânia (único clube que até então era majoritariamente negro).
Por conta disso, entre os torcedores rivais, o Ferroviário passou a ser chamado discriminadamente como “Boca Negra” — em referência a uma etnia indígena do Amazonas, chamada também por esse nome, “descoberta” em 1930. Além disso, os adversários chamavam os ferroviários de “negrinhos da Vila”, “numa referência aos jogadores negros, aos torcedores humildes e à sede do clube, na Vila Capanema”, ressalta o historiador Renato Mocellin.
De toda forma, a torcida do time incorporou o nome a si e o popularizou, pisoteando a sua carga racista. Nos estádios, os atleticanos ferroviários gritavam orgulhosamente: “Booooooca, boooooooca”. Provavelmente, o mascote do Ferroviário, um homem negro estereotipado com traços tribais, tenha sido escolhido em referência aos jogadores negros da equipe.[1]
Na época, mesmo nas décadas de 30, 40 e 50, jogadores negros eram minoria no Campeonato Paranaense. O Coritiba até contou com alguns, mas o Atlético Paranaense só teve o seu segundo atleta afrobrasileiro nos anos 60 (seu nome era Urbino, e ele jogou na década de 20) . Isso por conta das origens dos times: o Coxa era o clube dos imigrantes europeus, principalmente alemães, e de uma parte da burguesia da cidade, e o Atlético Paranaense era o clube da elite curitibana.
Assim, o Britânia e depois o Ferroviário representavam as classes populares de Curitiba. Nesse caso, a presença de jogadores operários e de origem humilde, negros e brancos, muitos deles sindicalistas, fazia com que muitos fãs de futebol curitibanos se identificassem com esses clubes.
Para simbolizar esse apelo popular, vejam o que dois antigos e saudosistas torcedores do Ferroviário disseram, recentemente, sobre o clube:
“Time da classe trabalhadora, time do povo, time sem preconceito de classes.”
Jacson L. A.
“Tinha um forte apelo popular. Todos queriam vê-lo jogar. Suas cores, seu carisma, sua flâmula, seu mascote incomparável, seu lindo e vistoso distintivo, um dos mais lindos do mundo. Uma pena não mais existir. Fica o registro na memória da galera Boca-negra. Se ainda existisse, com certeza continuaria sua belíssima história, pois tinha tudo para continuar crescendo e nos encantando.”
Jorge L.
Anos dourados
A sede do Ferroviário logo foi definida. Tratava-se da Casa Rosada, atual Casa dos Arcos, construção do século XIX localizada na Praça Eufrásio Correia, em frente à estação ferroviária (hoje, Shopping Estação; a sede era a mesma do Britânia). O time, porém, fazia seus jogos num campo modesto, onde a Vila Capanema, atual estádio do Paraná Clube.
A Vila Capanema, inclusive, foi construída pelo Ferroviário em 1947, com auxílio da RVPSC. Tendo em vista a ascensão meteórica do clube e a iminência da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 1950, Durival Britto e Silva, militar e diretor da Rede Ferroviária à época, autorizou a construção do novo estádio em lugar do antigo, que se tornou o terceiro maior do Brasil naquele período. Ali, foram disputados dois jogos da copa.
Hoje, o estádio leva o nome de Durival Britto e Silva, embora também seja chamado de “Vila Capanema” — Capanema era o nome do bairro em que se situa a construção.
Essa “ascensão meteórica" do Ferroviário se explica facilmente. O “Boca Negra” foi campeão paranaense em 1937, 1938, 1944, 1948, 1950, 1953, 1965 e 1966, e somou mais sete vice-campeonatos entre 1934 e 1960. Até hoje, é o terceiro maior campeão estadual. Comparativamente, até 1968 o Atlético Paranaense tinha 10 títulos do estadual, e o Coxa 18. Hoje, eles têm 26 e 38, respectivamente.
Caso não fosse extinto, certamente o Ferroviário teria beliscado mais taças. Mesmo em seus anos terminais, o time continuava a vencer e a revelar grandes jogadores em suas categorias de base – que eram uma das melhores e mais vitoriosas do Paraná. Nelas foram formados grandes jogadores, como:
Barcímio Sicupira Júnior, o Sicupira, que depois se tornou o maior ídolo do Atlético Paranaense;
Bidio;
Carlos Madureira (eterno algoz do Coritiba e famoso por ter acabado com o jogo contra o Santos de Pelé em 1968, vencido pelo Ferroviário por 3 a 2 );
Paulo Vecchio.
Decadência?
É consenso entre os fãs de futebol que o Clube Atlético Ferroviário fazia frente ao Coxa e ao “Furacão”. Daí veio o surgimento da expressão “Trio de Ferro de Curitiba”, que representava os três grandes clubes da cidade.
Para o jornalista Edilson Pereira, “o Ferroviário tinha tudo que um grande time precisava. Bom time, torcida apaixonada e esquadrão vitorioso, além da Rede Ferroviária Federal que dava suporte econômico para o time enfrentar a dupla Atletiba.” No auge, o “Boca Negra” se tornou grande parceiro do Atlético, irmandade que tinha o intuito de enfraquecer o maior rival de ambos: o Coritiba.
Como justificar, então, o seu término? A modernidade foi a principal culpada. Depois do governo de Juscelino Kubistchek e com o advento da Ditadura Militar, o transporte ferroviário, já em decadência, foi suplantado pela indústria automobilística. Isso decretou a quase extinção das empresas ferroviárias, ou do poder delas.
Aos poucos a Rede Ferroviária retirou o seu apoio financeiro ao Clube Atlético Ferroviário. Sem poder construir grandes times, a instituição se enfraqueceu e viu seus rivais, principalmente o Coxa, decolarem e “raptarem” os seus principais jogadores.
Então, para se reestruturar, o Ferroviário se juntou a outros dois times tradicionais, mas enfraquecidos, o Britânia e o Palestra, fusão que deu origem ao Colorado, em 1971.
Por ironia da história, o rico time do Colorado nunca foi campeão, enquanto que seus antecessores tiveram, juntos, 17 títulos. A trajetória de títulos só seria retomada em 1989, com a fusão entre Colorado e Pinheiros, da qual surgiu o Paraná Clube, que até hoje joga no antigo estádio do Ferroviário.
Legado
Atualmente, chega a ser inacreditável que o Paraná Clube, time vitorioso e com uma história que remonta ao Britânia, fundado em 1914, esteja respirando por aparelhos.
Para retomar o caminho das glórias, muitos dos seus torcedores nostálgicos esbravejam: devemos reavivar o símbolo e as cores do Ferroviário! (e do Britânia também, deve-se dizer).
Como não há vias para se voltar ao tempo, já que os trens no Brasil foram esquecidos há muito, façamos então igual aos torcedores paranistas: não deixemos que a história e a memória do Ferroviário sejam esquecidas. Que as preservemos!
O “Boca Negra” nos lembra do tempo em que o futebol era do povo; e do tempo em que o futebol era um espaço de luta contra as desigualdades sociais e raciais.
Tristemente, a locomotiva do futebol curitibano estacionou e virou shopping.
Texto e pesquisa de Gustavo Pitz
Fonte de pesquisa:
MOCELLIN, Renato. História Concisa de Curitiba. Editora Remo, 2020
https://tribunapr.uol.com.br/arquivo/lendas-vivas/ferroviario-fez-historia-no-futebol-paranaense/
https://historiadofutebol.com/blog/?p=27297
https://cbncuritiba.com/carneiro-neto-clube-atletico-ferroviario/
http://www.museuesportivo.com.br/site/publicacoes/1181
https://i.pinimg.com/originals/97/88/62/978862c163d3bc0d31abaf6e21bc228c.jpg?fbclid=IwAR3RbOjp7-UQ5GI3syB3ncjAj9B4-L1cLteDvrFRkzJzvQc9ZxFpPrcQYR0
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