UM POUCO DA HISTÓRIA DE SANTA FELICIDADE
" [...] Vieram nossos pais e avós atravessando os mares, e trouxeram os usos italianos para essas colinas de Santa Felicidade. Primeiro os italianos ficaram em Alexandra, em Porto de Cima, lá perto de Morretes, fazia um calor de morrer, eles diziam: caldo da morire. E pediram à Sociedade de Imigração (...) para subir a serra para vir à Curitiba. E foi sábia e bendita a decisão que os trouxe ao lugar que chamam de Santa Felicidade.
De acordo com os relatos dos pioneiros, registrados em 1908 pelo padre Giuseppe Martini, a colônia de Santa Felicidade foi fundada em novembro de 1878 por quinze famílias de imigrantes italianos retirantes da Colônia Nova Itália. Este grupo de imigrantes italianos, da região do Vêneto, chegou ao Porto de Paranaguá em janeiro de 1878, tendo sido fixado pelo governo no litoral paranaense, mais precisamente em Porto de Cima e São João da Graciosa, núcleos da colônia que foi denominada Nova Itália. Insatisfeitos com o clima tropical e com a qualidade do solo do litoral, os italianos começaram a se interessar pelos relatos otimistas dos tropeiros que transitavam entre a região e o planalto curitibano.
No mesmo ano de 1878, algumas famílias subiram a Serra do Mar até Curitiba, solicitando ao Ofício de Imigração sua transferência para o planalto. Muitas dessas famílias foram fixadas em colônias já existentes, próximas a Curitiba. Aquelas que possuíam alguma economia decidiram comprar terras de particulares. Reunindo os recursos de todo o grupo, as quinze famílias compraram o terreno pertencente aos irmãos Antônio, Arlindo e Felicidade Borges. Ao venderem o terreno aos italianos, os irmãos Borges teriam solicitado que o núcleo colonial passasse a chamar Felicidade, em homenagem a sua irmã. Segundo o padre Maximiliano Sanavio, vigário local, “os italianos”, por serem católicos, acrescentaram a palavra santa ao nome sugerido pelos brasileiros, e a colônia ficou sendo denominada Santa Felicidade, em homenagem a uma mártir romana.
A colônia compreendia a região conhecida atualmente como núcleo histórico do bairro de Santa Felicidade. Além dos lotes coloniais primitivos, com as casas dos colonos dispostas ao longo de uma picada central, foi erguido um conjunto de edificações pelos primeiros imigrantes ali estabelecidos. O prédio principal é o da Igreja de São José de Santa Felicidade, construída em 1891, seguido da escola das irmãs do Sagrado Coração de Jesus, do cemitério da colônia e dos estabelecimentos comerciais. [...
O terreno adquirido pelos italianos de Santa Felicidade foi dividido em quinze lotes de dois alqueires, demarcados lado a lado a partir de uma picada central, e distribuídos por sorteio entre as famílias. Segundo padre Martini, que viveu em Santa Felicidade trinta anos após a sua fundação, este primeiro terreno estendia-se “da Casa Comparin até o rio Uvu, que dá água ao moinho do Boscardin”. A casa da família Comparin situava-se próxima ao atual Restaurante Casa dos Arcos.
Logo chegaram outras famílias de imigrantes italianos, que haviam comprado terrenos do alemão Wolf e dos brasileiros Paulo França e João de Freitas. [...].
Em seus lotes coloniais, os italianos construíram a casa e plantaram a horta, o vinhedo, algumas árvores frutíferas, iniciando também a criação de galinhas e porcos. Com muito trabalho e economia, algumas famílias passaram a adquirir outros lotes fora dos limites da colônia, para produção de milho, feijão e abóboras. Desta forma, para usar as categorias nativas locais, Santa Felicidade ficou dividida em duas áreas distintas: colônia e roça. Segundo informantes, as roças situavam-se no atual município de Almirante Tamandaré, em localidades denominadas Ouro Fino, Campo Novo, Queimada, Meia Lua da Conceição, entre outros:
"As famílias tinham áreas de terra fora de Santa Felicidade. Juntavam seis, sete famílias e iam carpindo a roça todos eles. E a noite se reuniam para cantar, contar piada, e histórias de medo. Eles ficavam uma semana, quinze dias. Só ficavam em casa os idosos e umas moças para cuidar dos animais. Se juntavam em trinta a quarenta pessoas naqueles paióis. Eles retornavam no sábado (...)" (M.F., “italiana”, proprietária de restaurante em SF).
Já o centro da colônia, marcado pela igreja e pela venda, era o cenário onde se teciam as relações de sociabilidade do grupo. A Igreja exercia grande influência sobre os colonos. Nos fins de semana, as famílias que estavam em suas roças vinham para a colônia e participavam da “missa de domingo”, o maior evento social local. [...]
Em Santa Felicidade, um importante ponto comercial de sociabilidade na colônia no século passado foi a Casa Culpi. Os imigrantes italianos vendiam seus produtos hortifrutigranjeiros em Curitiba, mas se abasteciam na Casa Culpi, de onde se dirigiam para as roças. As vendas ou negozi constituíam espaços de sociabilidade masculina:
" É nos negócios que os homens se encontram para conversar e jogar, especialmente aos domingos, após a missa e nos dias de festas (...). Os negócios antigos vendiam um pouco de tudo, mas os colonos poucas mercadorias adquiriam. Em geral se limitavam a compra de café, açúcar e sal, e outras especiarias que não produziam em casa, e alguns produtos industriais de primeira necessidade. Antigamente era, porém, aos sábados que o negócio vivia o seu dia de maior animação, pois que ali eram realizados os bailes que davam início às festas de casamento, na época em que esta cerimônia era de preferência celebrada pela manhã."
Santa Felicidade cresceu em torno da picada central transformada em estrada pelos colonos para dar escoamento aos seus produtos. Conforme informações do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem-DER, na década de 1940, essa antiga estrada carroçável foi macadamizada e ampliada, passando a ser conhecida como Estrada do Cerne, rodovia que liga Curitiba ao norte do Paraná. Em 1948, com a chegada do asfalto, o trecho urbano da Estrada do Cerne, que atravessava o centro do bairro de Santa Felicidade, ligando-a ao centro de Curitiba, recebeu o nome de Avenida Manoel Ribas.
É importante mencionar, novamente, que a colônia de Santa Felicidade e as demais colônias situadas ao redor de Curitiba formavam no século passado um verdadeiro Cinturão Verde, delas dependendo o abastecimento da Capital do Estado. Diariamente, nas primeiras horas da manhã, partiam as colonas em suas carroças abarrotadas de lenha, cereais como feijão e milho, legumes e verduras frescas; seguiam o trajeto dos bairros Campina do Siqueira, Mercês e Alto do São Francisco até o centro da cidade [...].
A proximidade da cidade e a crescente oferta de trabalho incentivaram a especialização de mão de obra voltada para serviços profissionais como carpinteiros, ferreiros, alfaiates, barbeiros, pedreiros etc. [...]. Produtos artesanais confeccionados somente para o consumo interno da colônia também passaram a ser comercializados na cidade. A produção de vinho nos porões das casas dos colonos e a de utensílios de vime destinados ao consumo doméstico transformou-se em atividade rentável. Gradativamente a produção tornou-se cada vez mais especializada, propiciando o surgimento de pequenas indústrias de vinho e de vime.
Também a comida da mesa dos imigrantes passou a fazer parte do cardápio dos pequenos restaurantes, surgidos a partir da década de 1940, em função do movimento de caminhoneiros que transportavam suas mercadorias pela Estrada do Cerne e, portanto, do centro da colônia.
Dessa forma, paralelamente à atividade camponesa tradicional, novas atividades se implantaram na colônia e, ao lado dos “colonos” agricultores, novas categorias sociais começaram a surgir: trabalhadores assalariados, profissionais especializados prestadores de serviços, além de uma elite comercial emergente voltada para as indústrias artesanais. As carroças que levavam as italianas à cidade, para vender os produtos da colônia, foram, aos poucos, se tornando apenas lembranças. Santa Felicidade não precisava mais “ir a Curitiba”. Os curitibanos agora vinham até ela comprar o vinho e o vime, comercializados nas adegas, nas fábricas e lojas de artesanato. E, principalmente, acorrem aos restaurantes de “mesa farta e comida boa”. [...]
(Extraído do texto de Maria Fernanda Campelo Maranhão, em: museuparanaense.pr.gov.br)
Paulo Grani
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