quinta-feira, 29 de abril de 2021

A coluna “Vitrina do Diabo” do jornal curitibano Diário da Tarde mostra como a imprensa execrava e, ao mesmo tempo, se encantava com a magia

 



bruxa

Por Tiago Rubini
Publicado na Revista Overmundo #4

O jornal Diário da Tarde começou a circular em Curitiba a partir de 1899. No seu primeiro ano, saiu uma de várias notas a respeito de uma imigrante escocesa radicada na cidade chamada Anna Formiga. O título e o subtítulo, respectivamente, foram Feiticeira – Artes de Satanaz, e no corpo do texto consta o endereço residencial desta mulher que dizia “ter relações com Satanaz, cuja vontade domina”, segundo o periódico. Poucos têm notícia da velhice e do desenrolar da vida de Anna Formiga, e infelizmente entre estes não estão os pesquisadores que resgataram a memória da mulher até agora. Em compensação, buscando rapidamente o seu nome na rede, chegamos à lenda urbana da bruxa com quadril avantajado, devoradora de doces e assassina de crianças – a fugitiva que veio esconder, numa vida pacata em Curitiba, uma história supostamente cheia de magia negra, sacrifícios e voos a vassoura.

Ela morava na Rua Dr. Pedroza, que hoje se chama Benjamin Lins. Com o passar do século XX, a região progrediu economicamente e hoje a conhecemos pelo nome de Batel, um dos bairros mais ricos da cidade. Sobrevivia principalmente de consultas mágicas, que eram pagas pela vizinhança com dinheiro, comida e favores. Foi infame – e não por coincidência, o começo do século XX foi difícil para os curandeiros, cartomantes e benzedeiras da capital paranaense. No centro e adjacências diversos escritórios de advocacia e consultórios médicos começaram a aparecer, principalmente depois da fundação da Universidade Federal do Paraná em 1912, e a população foi deixando de confiar nas práticas que não tinham o selo de aprovação científica e o respaldo da imprensa.

Não só a maioria dos consultórios esotéricos foi desaparecendo do centro de Curitiba, como também a boemia e as casas de madeira. A exemplo do que estava acontecendo no Rio de Janeiro, a prefeitura botou abaixo construções não-rentáveis, abrindo alas para os bondes e os negócios. A cidade se urbanizava aos poucos, apesar de ainda contar com bairros praticamente rurais, cuja economia estava conectada à erva-mate e à extração de madeira. Além da prefeitura, a polícia, os médicos e outros profissionais se engajavam no estabelecimento de um estilo de vida específico na cidade. Enquanto isso, benzedeiras e curandeiros foram perdendo espaço e virando notícia na seção “Vitrina do Diabo” no Diário da Tarde.

Este jornal foi importante e conhecido no período. Era o que tinha mais anúncios e notícias locais e internacionais, sendo bastante lido até 1951, quando começou a contar com o apoio da Gazeta do Povo para circular. Na época, o jornal pretendia dar conta dos embates políticos do período sem privilegiar nenhuma orientação partidária. Ser “a folha imparcial” de maior circulação do Paraná era a sua ambição, para a infelicidade dos muitos cidadãos que, sem condições financeiras e políticas de se defender, apareciam como personagens de matérias sensacionalistas sobre misticismo e feitiçaria.

As práticas do espiritismo kardecista e da quiromancia, apesar de tudo, não foram tão estigmatizadas. O historiador Johnni Langer registrou que de 1920 a 1936 os quiromantes eram apresentados pelo veículo como cientistas que atendiam negociantes, intelectuais e artistas, a elite residente do centro da cidade. Além disso, o Diário da Tarde, mesmo reprovando Formiga e outros personagens – como uma família de cartomantes que em 1901 residia na Rua São José e, segundo o jornal, organizava “Sabbats infernais” –, contava com espíritas kardecistas como fontes de matérias investigativas e com anúncios de consultórios de quiromancia nos anos 1930.

Outro caso famoso e cercado de mistérios foi o assassinato de uma garota de 14 anos chamada Medusa, em Entre Rios, município de Santa Catarina. Em uma matéria de capa de 1934 lê-se que: “Pessoa muito relacionada e que se entrega a estudos sobre espiritualismo narrou hoje à nossa reportagem um fenômeno em que fora parte. No decorrer desta noite teve a seguinte visão: – Estava agarrando pela gola o assassino de Medusa. E interrogava-o. […] A visão foi clara e o nosso informante pôde registrar os seguintes sinais do assassino […]. Esses sinais combinam com os de certo indivíduo em cuja pista se acham a polícia e a nossa reportagem! Tratar-se-á de um sensacional fenômeno espírita?”

Em 1933, o consultório de um quiromante, localizado próximo à redação do Diário da Tarde, teve um grande anúncio publicado na primeira página com os dizeres “Consultae vosso futuro em vossas mãos”. Felizmente, hoje sabemos que a autoridade para praticar e discorrer sobre as artes místicas nesta época foi proporcionada muito mais pelo capital que pela graça divina. Não à toa, em 1942, houve um cadastramento de centros espíritas da cidade, organizado pela polícia, por médicos e farmacêuticos que quiseram evitar a confusão daqueles centros com lugares de práticas populares semelhantes, que recebiam a classificação de “baixo espiritismo”.

Denúncias de caça às bruxas
Nome também cercado de lendas urbanas e superstições é o do bairro Umbará, que no começo do século XX não foi tão contemplado pelo processo civilizatório quanto outras regiões curitibanas. Até hoje é dito que no último bimestre de cada ano acontece uma reunião de bruxas e bruxos em torno de um conhecido lago de lá, e que a noite naquela região é macabra e cheia de assombra- ções – melhor passear no Batel. Novamente, uma pesquisa informal na internet confirma a existência desses boatos. Mais assustador que ouvi-los é saber que antigamente a população local, majoritariamente católica apostólica romana, pretendia fazer a justiça divina com as próprias mãos.

Somente em 1958 o Umbará foi abastecido com energia elétrica. Até então, o estilo de vida da vizinhança era rural, a maioria dos residentes trabalhava direta ou indiretamente com o cultivo da erva-mate. Imigrantes italianos e poloneses eram maioria no lugar, então não é de se estranhar que a Igreja Católica tenha se estabelecido na região. Os padres e as freiras do bairro se encarregavam da educação, do lazer e da integridade física e psicológica da comunidade. O Padre Cláudio Morelli, por exemplo, paroquiano da Igreja Matriz do Umbará, receitou remédios para os seus fiéis até a sua morte, em 1915.

Em 1906, porém, o Diário da Tarde já trazia uma má notícia: um morador conhecido na região foi espancado pelos seus vizinhos, que atiraram as suas roupas ao fogo, acreditando que desta maneira iriam dizimar forças demoníacas do ambiente. O seu nome era João Baquiano, e o seu crime “espiritual” foi trocar rezas, encantamentos e receitas de curandeirismo por comida e dinheiro, que nunca chegaram a tirá-lo da sua situação de miséria e muito menos contribuíram para que ele trabalhasse nas fazendas de erva-mate.

Além do mais, seguindo o código penal de 1891, João Baquiano era um fora-da-lei: em relação ao charlatanismo, o artigo 156 fazia uma distinção criminal à prática do ofício de curandeiro. Do charlatanismo místico ao sensacionalismo da imprensa marrom foi um pulo, e hoje o Diário da Tarde tem circulação modesta e esporádica como jornal popular. Seu conteúdo é composto quase que exclusivamente por repescagens de matérias da Gazeta. Há vida após a morte também para os jornais?

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