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sábado, 21 de outubro de 2023

" CORITIBA, DE CABOCLA A CORTEZÃ " (Crônica publicada no quinzenário "O Paraná ", de 15/06/1910, de autor desconhecido, com o pseudônimo Higino)

 " CORITIBA, DE CABOCLA A CORTEZÃ "
(Crônica publicada no quinzenário "O Paraná ", de 15/06/1910, de autor desconhecido, com o pseudônimo Higino)



" CORITIBA, DE CABOCLA A CORTEZÃ "
(Crônica publicada no quinzenário "O Paraná ", de 15/06/1910, de autor desconhecido, com o pseudônimo Higino)
"A grande reforma porque está passando Coritiba, a formosa terra do Sul, o berço dos meus dias, onde pela primeira vez eu contemplei o riso jaspeo da aurora a despontar n'um céo fresco e azulineo, onde pela primeira vez eu vi surgir a lua com seus fluidos magnéticos de tristeza de tál forma impressionou-me, que resolvi poetisal-a assim:
Ella era uma caboclinha rustica, de tez morena e olhos azues. Andava a errar pelas selvas sem fim, pelas mattas seculares, o corpo apenas abrigado em pelles brutas de animaes ferozes, os pés descalços, acostumados a pisar espinhos.
Um dia encontraram-na assim homens da civilisação, agarraram-na, cingiram-lhe o corpo d'uma belleza selvagem, e a arisca menina sentio a primeira revolta do seu pudor offendido, que em ondas rubras lhe tingiram o rosto.
Então esses homens deram-lhe grosseiras vestes, pentearam os seus formosos cabellos que eram negros como a noite, e ensinaram-lhe as primeiras letras.
Depois vieram os homens públicos; viram-na, acharam-na bella e um profundo amor pela menina lhes queimou as entranhas. Até que em uma noite em que a lua se occultára, o mais ousado d'elles, n'um impeto feroz de voluptuosidade, tirou-lhe a virgindade !
Desde esse dia Coritiba tornou-se outra: já não era a mesma matutinha submissa; seu rosto agora fino e aformoseado pelo uso constante de pomadas odorantes, tinha uns ares altivos e proprios das damas da sociedade; seu corpo, agora delgado, vestia finissimos trajes de seda pura, e seus delicados pésinhos calçavam reluzentes botinhas de verniz.
Agora ella é a altiva cortesã, a seductora princeza do Sul, a mulher que fascina, que tem encantos mil, que tem mil adoradores. Entretanto ella era a caboclinha rustica de tez morena e olhos azues... "
ANÁLISE DO CONTEXTO
"Curitiba no inicio do século XX tem uma história um tanto recente como sede de poder. Apenas em 1812 é que os ouvidores passaram a residir em Curitiba, transferindo a sede da Comarca de Paranaguá para esta cidade. Em 1853, o Paraná foi elevado à provincia, desligando-se de São Paulo, ficando Curitiba como capital; pouco depois, em 1889, com a República, ela passa a capital de Estado.
A construção da Estrada da Graciosa e da ferrovia, ligando-a ao litoral, gera uma transformação súbita naquela pequena comunidade. Essa "transformação" pela qual passa a cidade não deixa de causar uma certa melancolia, perceptível nas palavras do cronista. Melancolia esta que acaba sendo uma sensação recorrente frente ao novo, às mudanças. Mas o que ele vê, ou melhor, como ele vê sua Coritiba é interessante, uma caboclinha, de tez morena e olhos azuis. Ele apresenta a imagem mitica de simplicidade recorrendo ao caboclo como o habitante primitivo, simples e puro, ainda intocado pelas influências do mundo exterior. É ai que está a sua força, numa imagem ancestral ideal que se quer cultuar, que se quer resgatar como origem e, ao mesmo tempo, como idealização.
Caboclinha de tez morena, nativa, porque tem em si a mistura das raças, do indio da região com os bravos bandeirantes da qual é provavelmente descendente. Essa imagem parece remeter à história dos primórdios da fundação da Vila, quando homens como Baltazar Carrasco dos Reis passavam pelo Planalto, integrando bandeiras que visavam prear índios e encontrar metais preciosos. Antes ainda do estabelecimento da Vila já havia povoações no Planalto, habitadas por mineradores.
Em 1646, a expedição comandada por Eleodoro Ébano Pereira, Administrador das Minas das Capitanias do Sul, chegou ao Planalto Curitibano. O contato com o indio, com a natureza local, origina a "saga" desses bandeirantes que seriam os primeiros brancos a habitarem a região que posteriormente se tornaria a cidade de Curitiba. Assim, um dos núcleos povoadores que se fixaram motivados pela busca de ouro, a Vilinha, transfere-se para as proximidades do rio Ivo dando origem a uma povoação mais estável e organizada: a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais.
Mas a "caboclinha" é também portadora do gene do imigrante, que é nesse momento uma presença marcante na capital. 0 imigrante já fora assimilado em grande parte e constituira-se responsável pelo desenvolvimento da cidade, principalmente porque, estabelecendo-se de inicio em seus arredores, transformou o cenário em função de sua produção e impulsionou o crescimento local. Ele é enaltecido pelos políticos e pelos homens de saber, na esteira das concepções que estão em voga no meio intelectual nacional.
A visão do cronista tenta construir passo a passo o que seria o impulso civilizador pelo qual passava a cidade. Primeiramente vestem-na com "grosseiras vestes" e ensinam- lhe as "primeiras letras", até que através da política - quando da emancipação do Estado em 1853, da escolha de Curitiba para capital como centro catalisador das ações e decisões — a cidade perde a sua aura de pureza e simplicidade, entrando para a vida pública que a transforma em "seductora cortesã". A imagem é clara quanto ã corrupção dos homens, da cidade e remete ao vicio. Neste momento parece mesmo que uma grande e moderna cidade não pode carregar tal título sem conter em si um lado obscuro, um território de vícios e prazeres "condenáveis", mas que, por outro lado, atestam o seu desenvolvimento. Remete também à beleza artificial. Porém, o cronista sabe da dubiedade desses fatores, pois diz que isso traz a fama e o reconhecimento. Com mil encantos e oferecendo inúmeras possibilidades, ela entra definitivamente no mundo secular, o mundo dos homens, em uma palavra, moderno e insere-se no compasso do contexto mundial, ou pelo menos, é esta a intenção de tantas metáforas. [...]"
(Extraído e adaptado de: acervodigital.ufpr.br / Elizabete Berberi)
(Foto ilustrativa da web)
Paulo Grani.

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