sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A escravidão em Curitiba: um passado negado

 A escravidão em Curitiba: um passado negado


A pintura retratada por Oswald Lopes (acervo Museu Oscar Niemeyer) mostra a Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito de Curitiba, antes de sua demolição em 1931. Reconstruída no Centro Histórico da cidade, a gente já contou aqui um pouquinho da sua história.(http://www.turistoria.com.br/igreja_do_rosario) 


A Igreja do Rosário é uma das maiores marcas da presença e influência negra na cultura paranaense, e atesta o passado de escravidão, exclusão e resistência dos africanos (e seus descendentes) no estado. Por isso ela foi escolhida para dar início a este texto, que abordará uma memória que muitos tentaram (e ainda tentam) soterrar. 

Em 29 de Março de 1693 era fundada a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Na época, era a segunda vila construída por portugueses ao sul da capitania de São Vicente, precedida pela Vila de Paranaguá (1648). Embora não se tenha achado ouro na região (que foi o motivo principal para a criação da Vila), ela continuou a ser povoada séculos afora com intuito de manter o domínio português na região sul, o que não significou, entretanto, um rápido crescimento populacional e econômico. A partir de 1721, ela passou a ser chamada de Vila de Curitiba.  

A capitania de São Vicente, naquele momento, era responsável pela administração dessas vilas. Ela compreendia o território leste do atual estado de São Paulo, o Paraná e o sul de Minas Gerais. Logo no início do século XVIII foi substituída pela capitania de São Paulo e Minas Gerais, que abrangia um território maior ao norte de Minas, mas que mantinha sob sua posse as vilas de Curitiba e Paranaguá. Como essa capitania era imensa, ambas as vilas ficaram distanciadas dos centros do poder, principalmente Curitiba, uma vez que não tinha acesso ao mar (a Estrada da Graciosa foi um importante meio para a ligação de Curitiba ao Oceano, porém ela data do século XIX), muito menos podia se estender ao oeste, até então inabitado por colonizadores.

Esse isolamento, portanto, foi uma característica da Vila de Curitiba, que se prolongou até meados do século XIX e dificultou o comércio e a chegada de novos habitantes. Subir a Serra do Mar era uma tarefa quase impossível; chegar por terra vindos do Norte era distante e penoso. Não foi por menos que, em 1780, a população da vila ainda era de 3.200 moradores, número que aumentou lentamente até 1872, quando se registrou 11.730 habitantes na capital do Paraná (essa marca de 1872 é baixa se comparada à da cidade de São Paulo [30.000 habitantes] e da cidade do Rio de Janeiro [270.000 habitantes]). O povoamento de Curitiba somente foi impulsionado após 1873, com a finalização da Estrada da Graciosa: em 18 anos, entre 1872 e 1890, o número de moradores dobrou, chegando a 24.553.

E dentre esses curitibanos, afinal, havia escravizados?
Há quem diga que já que eram pouquíssimos os escravizados, a presença deles mal foi sentida na formação cultural de Curitiba. Essa foi uma visão predominante para os intelectuais do século XIX e até meados do XX. Não faz 70 anos que o historiador Wilson Martins disse: “não houve escravatura no Paraná”. Pois bem, se comparada aos números da Província de São Paulo e do Rio de Janeiro no século XIX, a população negra era realmente pequena no Paraná e em Curitiba. Esse dado, porém, deve ser analisado a partir dos parâmetros locais. Quando se tem essa comparação, a escravidão na capital paranaense é mais do que marcante.

A população começou a ser efetivamente contabilizada a partir de 1800. Nessa época, em 1817, Curitiba tinha cerca de 10.000 habitantes, sendo 200 deles oficialmente escravizados. Essa proporção aumentou até o final da escravidão: na década de 1870, quando os habitantes não passavam de 12 mil, o número de escravos era de 2597. Ou seja, pouco mais de 20% das pessoas eram africanas e seus descendentes, não-livres. Isso contando só os cativos. Deve-se lembrar que, além desses 20%, também havia negros livres: alforriados (compravam ou ganhavam a sua liberdade), descendentes e filhos de portugueses com escravizados. Ou seja, a população negra certamente passava de 2597, não se restringindo, portanto, aos escravos. 

O relato produzido pelo médico alemão Robert Christian Barthold Avé-Lallemant sobre sua passagem por Curitiba, em 1858, simboliza essa diversidade populacional.

“Quanto ao que se vê na população, parece ser bastante mestiçada e em toda parte aparecem linhas nítidas de genealogia indígena e africana na multidão, se se pode chamar de multidão os poucos milhares de habitantes de Curitiba.”
Robert Christian Avé-Lallemant médico alemão que viajou pelo Brasil e influenciou o sistema de saúde do país.
A presença da população negra na Curitiba do século XIX foi, portanto, bastante visível. O mesmo pode ser dito, porém, sobre o século XVIII?

A resposta é “sim”. Devemos lembrar, entretanto, que o número de escravizados nos anos de 1700 provavelmente foi menor do que nos anos 1800. O motivo dessa diferença numérica é consequência da baixa povoação de Curitiba no século XVIII: quanto menor era o número de moradores, menor era a quantidade de escravos. Por isso, é possível dizer que, em 1780, por exemplo, havia menos escravizados dos que os 200 registrados em 1817.

Tal dado, no entanto, não reforça o negacionismo da escravidão, pois Curitiba é uma cidade com origem colonial, ou seja, a escravidão era absolutamente aceita e amplamente utilizada. E mais, Curitiba também foi uma cidade do Império do Brasil, quando o regime escravocrata atingiu seu auge. 

Desde quando foi fundada, a capital paranaense conviveu com a escravidão, mantendo-a até a abolição em 1888. Foram quase 200 anos de influência da cultura negra na história da cidade e do estado e que se estende até os dias atuais.
Uma escravidão diferente?

Também há quem diga que a escravidão em Curitiba foi diferente das demais cidades, principalmente daquelas onde havia a prática da agricultura em grande escala e, portanto, mais mão-de-obra escrava (como o caso do plantio de café em São Paulo ou da cana-de-açúcar no nordeste). Como Curitiba não teria esses condições, o número de cativos era menor e, com isso, a escravidão teria sido mais branda. 

É verdade que em Curitiba não havia grandes plantações que utilizavam largamente a mão-de-obra escrava. Nos séculos XVIII e XIX (pelo menos até 1880), a cidade era pequena e se restringia aos arredores da Igreja Matriz (atual Praça Tiradentes e Centro Histórico), tendo não mais que 400 casas. Assim, era um local de características urbanas. Justamente por isso os escravos serviam a funções domésticas, ofícios artesanais (construção, reparos) e cultivo de pequenas plantações para seus senhores. Porém, tal escravidão não diferia das demais, pois na capital os negros cativos também eram mercadorias sobre as quais uma minoria de elite afirmava posse, através da violência, da exclusão e até da pena de morte (veja os documentos abaixo). Sendo assim, os castigos e ausência de direitos se davam da mesma forma que em qualquer outro lugar.

Resistência à escravidão

Se a escravidão em Curitiba existiu, também existiu resistência a ela. Documentos do Arquivo Público mostram que a reação dos escravos foi variada: fuga (geralmente para Quilombos), assassinato dos seus senhores, reivindicação de liberdade, alforrias e associação em Irmandades (espaços criados pelos negros para auxílio mútuo, em caso de doença, enterro e assistência a órfãos e viúvas; de arrecadação de recursos para a alforria; e manutenção dos traços culturais africanos). Além disso, os escravos também mantiveram hábitos culturais (como as religiões de matriz africana) e participaram ativamente do processo de construção física e cultural da cidade (casas, igrejas e demais obras públicas).

Exemplos de resistência documentados pela polícia de Curitiba (do Arquivo Público):

Autor/cargo Antônio Francisco de Azevedo, Juiz de Direito.
Destinatário/cargo Zacarias de Goes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná.
Ref. Informa a condenação, à pena máxima, do réu Pedro, pardo*, por ter assassinado o senhor Ignácio Mariano de Oliveira e o menor Vidal, tendo como cúmplice o escravo João.
Local Curitiba, 30 de julho de 1853
Autor/cargo Antônio Francisco de Azevedo, Juiz de Direito.
Destinatário/cargo Zacarias de Goes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná.
Ref. Envio da cópia do processo que condenou o réu Joaquim à pena de morte por ter assassinado seu senhor, Bento Alves Fontes, em sua fazenda em São José dos Pinhais.
Local Curitiba, 22 de dezembro de 1853
Autor/cargo Amâncio José Ferreira, a rogo de João, escravo de Antônio Vicente, suplicante.
Destinatário/cargo José Antônio Vaz de Carvalhaes, Vice-presidente da província do Paraná.
Ref. Solicita ajuda para conseguir sua liberdade, visto que seu senhor não a quis conceder-lhe por meio amigável.
Local Curitiba, 13 de outubro de 1856
Autor/cargo Sebastião Gonçalves da Silva, Chefe de Polícia da província do Paraná.
Destinatário/cargo Antônio Barbosa Gomes Nogueira, Presidente da província do Paraná.
Ref. Informa que foi presa, por ter fugido, a escrava Rosa, pertencente a Pedro Ezequiel de Araújo. 
Local Curitiba, 28 de junho 1861
Autor/cargo Luiz Francisco da Câmara Leal, Chefe de Polícia da Repartição de Polícia da província do Paraná.
Destinatário/cargo Francisco Liberato de Mattos, Presidente da província do Paraná.
Ref. Esclarece que a insurreição de escravos que se supunha iria acontecer em Antonina não passava de boato levantado contra a Irmandade de São Benedito, formada em sua maioria por escravos, que estavam reformando sua igreja de Nossa Senhora do Rosário, conseguindo arrecadar mais dinheiro do que a igreja matriz, que também passava por reformas. O boato faria com que os escravos desviassem sua atenção das obras da igreja.
Local Curitiba, 23 de janeiro de 1859

As heranças de um passado também negro
São muito comuns os livros de história que não mencionam a memória e as histórias dos afrodescendentes no Paraná e em Curitiba. Também é comum ouvirmos discursos que negam a escravidão e a importância da presença negra no estado e na cidade. Em geral, esses livros e essas ideias sociais valorizam e muito a importância dos imigrantes europeus, que fizeram de Curitiba uma “cidade europeia”. Em geral, quando citados, os africanos são um mero apêndice da história que se iniciou com portugueses e se findou com a chegada dos estrangeiros brancos.
 
Pois bem, contra esse silenciamento da história e da memória negra, desde o final do século XX houve iniciativas acadêmicas e do movimento negro para o resgate e valorização desse passado escondido da história do Paraná. Uma decorrência dessa revisão histórica foi o projeto AfroCuritiba: passeios pela história e memória da presença negra na cidade, que é um trabalho de pesquisa sobre a história dos afrodescendentes, cujo resultado foi a construção de um percurso histórico em Curitiba nos locais em que a presença dos negros se fez sentir. Idealizado pela professora doutora Joseli Mendonça (DEHIS/UFPR), o percurso refaz um caminho que perpassa mais de 10 locais de Curitiba, e conta com a mediação de graduandos da UFPR. Ele é realizado pelo menos 1 vez ao mês, após a professora e seus orientandos divulgarem as datas do percurso e da inscrição para realizá-lo (para saber mais e marcar uma mediação, acesse o site: https://afrocuritiba.afrosul.com.br/). 

Aqui estão alguns locais do percurso AfroCuritiba que afirmam a história dos negros em Curitiba:

1. Ruínas do São Francisco: a gente já contou um pouquinho da história delas aqui no Turistória 
Ainda que inacabada, essa construção só foi possível através do trabalho dos escravos especializados em obras, empenhados a construir o que era para ser uma igreja em homenagem a São Francisco de Paula. 
Foto: Vista lateral da capela-mor, confessionário e arcos das ruínas (Acervo: Casa da Memória)
2. Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito: como é possível ver, a foto da atual Igreja do Rosário está bem diferente daquela pintura do início do texto. A Igreja, aqui, está reformada e recentemente foi pintada de azul; a de lá, é branca e bem menor. Mesmo diferente e reconstruída, ela continua a representar um dos principais marcos da união entre escravos, que a construíram há quase 300 anos.

3.Sociedade Operária Beneficente Treze de Maio: fundada em 1888 por ex-escravos, foi construída e idealizada para amparar os negros após o regime escravocrata (por isso seu nome faz referência ao 13 de maio). Localizada na Rua Desembargar Clotário Portugal n.274, no centro da cidade de Curitiba, ela é reconhecida como a primeira sociedade negra do Paraná e a terceira mais antiga do país. Atualmente, eventos e atividades são realizados nela, como o “Forró com Areia Branca” e a “Roda de Samba.

4. Rua das Flores: onde hoje é o calçadão da Rua XV de Novembro, antigamente era chamada de Rua das Flores por conta da grande quantidade de flores que a ornamentava. Nela, principalmente na segunda metade do século XIX, encontravam-se sedes de jornais, lojas de comércio e serviços, além de casas de elite. Essas casas, além de serem construídas pelos escravizados (assim como as casas do Largo da Ordem), eram habitadas por escravos domésticos. Um exemplo disso pode ser lido num anúncio no jornal curitibano Dezenove de Dezembro, em 8 de abril de 1854: Rua das Flores em 1870.
Resistências passado e no presente

Iniciativas de resgate da história e da memória afrodescendente como as mostradas acima são fundamentais para tornar a história do Paraná mais plural e inclusiva: elas afirmam que todos os povos têm um passado igualmente importante. Elas, além disso, colaboram para a construção de uma Curitiba mais diversificada e, por isso, mais fidedigna ao real. A capital paranaense foi e é também negra e deve parte de sua trajetória à presença de africanos e afrodescendentes. 

Reconhecer esse aspecto do passado paranaense, de escravidão, resistência e negritude, significa também dar voz às lutas dos negros por igualdade no presente.
Texto e pesquisa: Gustavo Pitz
Fontes

ARQUIVO PÚBLICO DO PARANÁ. Catálogo Seletivo de Documentos Referentes aos Africanos e Afrodescendentes Livres e Escravos.

CINTRA, Jorge Pimentel. Os limites das capitanias hereditárias do sul e o conceito de território. São Paulo, 2017.

GUTIÉRREZ, Horácio. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. São Paulo, 2006.

PENA, Eduardo Spiller. O Jogo da Face: A Astúcia Escrava Frente aos Senhores e à Lei na Curitiba Provincial. Dissertação de mestrado, DEHIS/UFPR, 1990. 

WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. Curitiba: Editora Gráfica Vicentina, 1988.
Jornal Comunicação: http://jornalcomunicacaoufpr.com.br/a-resistencia-13-de-maio/

Hemeroteca digital (fonte do jornal Dezenove de Dezembro)
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

A Guerra da Carne em Curitiba

 A Guerra da Carne em Curitiba

O ano de 1952 se iniciou em crise, pois alguns gêneros alimentícios da cesta básica dobraram de preço no Brasil. O leite e seus derivados chegaram a casa de 10 e 20 cruzeiros. A carne bovina e suína de segunda passaram a custar o preço dos cortes nobres. Esses, por sua vez, tornaram-se inviáveis, ao ponto da classe média curitibana renegá-los.


Esse fenômeno de alta de preços atingiu as regiões de maior demanda, ou seja, as maiores cidades do Brasil, com destaque para o Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba. Questionado pela sociedade, o governo Vargas explicou que a oferta de produtos da pecuária havia diminuído, em virtude de uma forte estiagem que destruiu os pastos nas zonas de produção.


Nos jornais, essa desculpa do governo não foi bem recebida. Getúlio Vargas, então, teve a sua popularidade, que já estava em baixa, dilacerada pelos críticos. Questionava-se, sobretudo, o porquê as exportações de carne se mantinham volumosas, enquanto se esvaziavam os armazéns e açougues nacionais.


Getúlio Vargas, em defesa, jogou a culpa sobre os vendedores de carne, que foram chamados pelo presidente de "tubarões da carne”. Segundo o estadista, apesar da diminuição da demanda, os preços somente estavam altos porque os comerciantes diminuíram propositalmente a oferta para aumentar o valor das carnes, numa espécie de especulação da fome. Contrariados, os sindicatos do comércio ressaltaram a queda no fornecimento do insumo, enquanto os produtores reforçaram o argumento da estiagem. Ou seja, ninguém assumia a responsabilidade.


Frente a isso, alguns grupos sociais, revoltados, passaram a boicotar os estabelecimentos que vendiam carne, e a fazer greves contra o governo e pela tabulação justa desse produto. As primeiras e maiores manifestações se iniciaram na cidade do Rio de Janeiro, mas em pouco tempo Curitiba foi tomada por essa efervescência.


A crise da carne curitibana, em números


Apesar dos discursos que justificavam os preços abusivos, os fatos nos mostram o seguinte. Segundo Fernando Schinimann, o gado bovino estava em franca produção no Brasil, ou seja, não havia estiagem. De acordo com o historiador, enquanto Vargas exportava 113 toneladas de carne para a Itália, ele importava 40 toneladas da Argentina, porém de má qualidade.


Somado a isso, tem-se o caso do Paraná. No estado, inexistia uma organização dos frigoríficos. Em Curitiba, por exemplo, o matadouro municipal do Guabirotuba estava em péssimas condições de funcionamento, aspecto que contribuiu para o desperdício do produto. Além disso, na região se pagava mais aos invernistas e criadores (cerca de 10 cruzeiros o quilo), preço que encarecia a carne vendida nos açougues (vendida a 17 cruzeiros, em média).


A culpa então era dos produtores? Nem sempre. Em virtude do baixo lucro, muitos açougueiros inflacionavam o preço da carne, diminuindo a sua oferta. Outros, passaram a recusar compras pequenas, em que a quantidade pedida pelo consumidor era menor do que meio quilo. Há relatos, inclusive, de que alguns comércios vendiam carne de segunda ou terceira pelo preço das carnes nobres, ou que repassam produtos com excedente de ossos ou mesmo podre.


Frente a isso e as notícias de boicote de consumo de carne em outras capitais, a população curitibana começou a diminuir o consumo de carne espontaneamente. E não era por menos: viver na capital estava caro, mas o salário mínimo se mantinha em 1.200 cruzeiros.


 

A Guerra da Carne, em fatos


A partir do dia nove de fevereiro, a “greve branca” (nome que se dava aos boicotes ou paralisações) começou a ser promovida por telefonemas anônimos às donas de casa. Dizia-se: "Não compre carne". De boca em boca, as mulheres, principalmente das classes baixa e média, organizaram um movimento de boicote aos açougues que chegou aos jornais. Estes, então, passaram a incentivar e a promover a greve.


A participação central delas não foi por acaso. Eram elas, naquele contexto, as responsáveis pela economia doméstica. A diferença naquela década de 50 foi que, após o relativo aumento da participação feminina na esfera pública vivenciada na guerra e no pós-guerra, o espaço às reivindicações das mulheres era maior. Por isso elas se manifestaram e se organizaram em fevereiro de 1952.

No dia doze de fevereiro, no jornal Diário da Tarde, foi divulgado o primeiro dia oficial da greve em Curitiba, juntamente com seu primeiro comunicado:


 1 - O início da greve será no próximo dia 12 (terça-feira). Ninguém comprará carne a começar deste dia.

 2 - A greve terá a duração necessária, ou seja, até que o custo da carne sofra redução honesta.

 3 - Só deve comprar carne em casos de extrema necessidade: em caso de doenças e para a alimentação de crianças.

 4 - Depois de iniciada ou terminada a greve, nao se deve comprar carne, porque tendo ficado em frigorífico muitos dias, não servirá para a alimentação. Após a vitória de nossa greve, devemos aguardar comunicado da saúde pública, avisando a população que a carne à venda se encontra em condições para consumo.

5 - Novo comunicado expediremos no dia 13, neste mesmo jornal. 

A Comissão da "Greve Branca"


A atuação da Comissão da greve, que já neste momento contava com mulheres, operários e estudantes, foi decisiva, pois o consumo chegou a reduzir-se em 70%. Durante o dia, em bairros como o Cajuru, o Santa Quitéria e o Prado Velho, muitas mulheres fiscalizavam os açougues para impedir que a carne fosse comprada, e incentivavam o consumo de outros alimentos. Por meio das reuniões de bairro, das conversas com as vizinhas e da ocupação das ruas, o movimento ganhou corpo.


Schinimann conta um episódio desse boicote:



“No Bairro Carmela Dutra, cinqüenta mulheres davam o exemplo de como boicotar, fazendo a fiscalização de todos os açougues das redondezas. Impediam a entrada dos produtos nos estabelecimentos, bem como a sua venda. O exemplo era seguido: "Ontem uma senhora no Bairro do Bacacheri, quis penetrar num açougue, a fim de adquirir carne, sendo porém, obstada por resolutas donas de casa, que deram na "furona" tremenda lição. (....) Num açougue da Praça Tiradentes se repetiu.”



A partir do dia quatorze de fevereiro, o número de reuniões da comissão aumentou. Delas participaram os representantes da UNE (União Nacional dos Estudantes), da UPE (União Paranaense dos Estudantes), da UPES (União Paranaense dos Estudantes Secundaristas), o Sindicato da Construção Civil, representantes de várias associações, além de, provavelmente, a Federação das Mulheres do Paraná e os Diretórios Acadêmicos de Direito e Medicina (pois as reuniões eram na Sede do DANC, Diretório Acadêmico de Medicina Nilo Cairo).


A guerra


Até aquele momento, a greve permanecia sendo um boicote. Mas isso mudou no dia dezoito de fevereiro. Nessa data, algumas mulheres que fiscalizavam o boicote aos açougues do Santa Quitéria foram atacadas por um policial civil. Ao mesmo tempo, mas do outro lado da cidade, um funcionário público foi vaiado ao comprar carne.


Com essa intensificação dos ânimos, a UPE, a UPES, a Federação de Mulheres do Paraná e a União Sindical dos Trabalhadores do Paraná decidiram criar o Comício Contra a Carestia. Este seria um evento de protesto na Boca Maldita, no dia vinte de fevereiro, às 20 horas, que teria como mote a diminuição do preço da carne por meio da intervenção do governo.


A situação já era insustentável. Há quase 7 dias sem comer carne vermelha, a população estava inconformada, pois os açougues mantinham os preços abusivos e se recusaram a vender poucas quantias.


Em decorrência disso, na manhã do dia dezenove, no Cajuru e no Prado Velho alguns açougues foram invadidos e as carnes atiradas ao chão. Logo depois, o açougue da Avenida Sete de Setembro com a João Negrão foi atingido e teve as carnes expostas e queimadas. Em outros estabelecimentos da região central, o mesmo ocorreu. Nos bairros, o tumulto aos poucos cresceu e terminou com a invasão de alguns comércios.

 

A polícia foi chamada. As mulheres revidavam arremessando pedaços de carne, os açougueiros utilizavam facas e cacetes, e outros manifestantes manejavam coquetéis molotov. Era o caos em Curitiba, que durou o dia inteiro. Na Praça Tiradentes, na esquina da Rua Monsenhor Celso, a polícia trocou socos com a população.


Abaixo, manchetes do Jornal Diário da Tarde, dos dias 19 e 20 de fevereiro, respectivamente. Depois, fotografia de uma manifestante publicada pelo periódico.

 

A batalha final


A Comissão Central de Organização da Greve foi considerada culpada pela revolta, embora não se tivessem provas de que os responsáveis pelo vandalismo fossem vinculados ao movimento grevista. Com isso, o Comício do dia vinte foi cancelado. Segundo Schinimann, porém, a polícia censurou a greve porque alguns órgãos, como a Federação das Mulheres do Paraná, não estavam regulados na Delegacia Regional do Trabalho


O conflito era certo. A Praça Osório estava tomada por militares, e os demais bairros contavam com a presença maciça de policiais. Milhares de pessoas, contudo, chegaram na região do Comício cancelado a partir das 20 horas. Tropas policiais foram chamadas e o corpo de bombeiros agiu, jogando água sobre a aglomeração. Aqueles que protestavam e vaivam eram detidos ali mesmo, no Bras Hotel.


Houve até casos de tortura, como a que sofreu o estudante de direito Palino Andreolli. Segundo seus colegas, ele foi agredido pelo guarda de trânsito Francisco Pignatari, e depois pelos outros policiais. O corpo dele ficou estendido no chão. Já outros estudantes fugiam e gritavam palavras de ordem. Muitas mulheres, homens e crianças foram atendidos nos hospitais com ferimentos graves. Os conflitos adentram a madrugada, até serem finalmente silenciados na manhã seguinte.




Decorrências


Em menos de uma semana, as autoridades tomaram providências (sobretudo porque a repressão quase atingiu a casa do governador, Bento Munhoz da Rocha, que morava pertinho da Osório). A carne do tipo popular voltou a ser vendida, e as carnes de primeira retornaram ao preço de 14 cruzeiros.


Quanto aos manifestantes, não se sabe da existência de vítimas fatais, nem de pessoas que ficaram presas por algum tempo. De fato, os ânimos se arrefeceram.


Lideranças


Apesar das circunstâncias trágicas, a chamada “Guerra da Carne” e todo o movimento do qual ela fez parte deve ser reconhecida pela imponência das ações das mulheres.


Como exemplo dessas ações, citamos o caso de Nair Bismaierf, uma das líderes do movimento grevista. Ela residia na região do Cajuru, em Curitiba, e, apesar de ser amiga pessoal de Ney Braga, sempre foi ativa nas questões voltadas ao consumidor. Depois, porém, ela se mudou para o Estado da Guanabara, em virtude da transferência de seu marido para a região.


Além dela, poderíamos citar mais casos de lideranças nos bairros, principalmente no Cajuru, Santa Quitéria e Prado Velho. Como essas regiões eram distantes da repressão, muitas agiram contra os açougues locais. Vale ressaltar, também, que grande parte da população desses bairros era de funcionários da Rede Ferroviária Federal e simpatizantes do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB.


O depois


É importante destacar que, apesar da queda dos preços, dois anos após o ocorrido as carnes já estavam hiper faturadas. A população, porém, já não se manifestou de igual forma.


Em Curitiba, resistiu a memória de tempos em que homens e mulheres se manifestaram pelos seus direitos, numa cidade que vivenciava disputas de classe e tensões com o governo. Sim, em Curitiba há passado de luta.



REFERÊNCIAS


Fernando Schinimann. A batalha da Carne em Curitiba: 1945-1964. Dissertação de mestrado em História, UFPR, 1992.

Ricardo Mocellin. Historia Concisa de Curitiba. Curitiba: Editora Remo, 2020.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Avenida Batel em 1942.

 Avenida Batel em 1942.