UMBANDA EM CURITIBA – 90 ANOS DE RESISTÊNCIA
Texto José Pires
Pesquisa Rafael Pires de Mello
– Era macumba!
– Em Curityba?
Ficamos transidos de admiração, curiosidade e pavor!
Batemos e um moleque abriu a porta.
– O que querem?
– Entrar.
Entramos… Sentamo-nos assombrados na extremidade de um banco longo e rude.
E vimos tudo.
Ao canto do salão de aterro, uma panella fumegava sobre um tripé de ferro. Uma velha, lentamente e com sincronismo, mechia o cangirão e gritava:
– Macumba, catimbó, Xangô!
E os negros estribilhavam.
– Xangô, nosso senhor. Xangô!
Uma hora da madrugada de 18 de abril de 1929. Jornalistas visitam uma casinhola na região periférica de capital paranaense. Sem luz, em meio à escuridão, a dupla acompanhou atônita os primórdios da umbanda na conservadora e fria Curitiba. A crônica, publicada no extinto jornal “Diário da Tarde”, mostra o quão alarmista foi a notícia e o quanto seguidores da umbanda e do candomblé haveriam de perseverar, sofrendo perseguições de todas as espécies, para firmar seus ritos na beata Curitiba do início do século XX.
Noventa anos depois, em 2019, num período de 10 dias, dois terreiros de umbanda foram incendiados em Curitiba. Há indícios de que ambos os incêndios tenham sido criminosos. Em 24 de julho dois homens ainda não identificados atearam fogo em um centro que fica no bairro Portão. Câmeras de segurança flagraram a invasão da dupla ao local. A segunda ocorrência foi em um terreiro na Vila Izabel, na madrugada de quinta-feira (1°). As chamas começaram por volta das 2h30 e consumiram, em minutos, boa parte do imóvel.
Os dois crimes levam Curitiba de volta no tempo, pois durante décadas, como é possível acompanhar no acervo online da Biblioteca Nacional Digital (Hemeroteca), imprensa, política, justiça e “cidadãos de bem” investiram esforços para minar a ascendência de umbanda e candomblé na católica capital paranaense. No acervo, por meio de palavras-chave e períodos de tempo específicos, encontrasse, narrada por meio de notícias, a saga de pais e mães de santo que decidiram cultuar sua religião na provinciana capital.
O acervo mostra também (e talvez principalmente) o papel primordial de jornais como o “Diário da Tarde” que empreendeu verdadeira cruzada contra os terreiros. O impresso, que era de São Paulo, mas circulava também no Paraná, era aqui editado por Adherbal Stresser, jornalista e político que trabalhou na Gazeta do Povo e ajudou a fundar o Diário do Paraná.
O Diário da Tarde, e é o que fica evidente por meio das edições disponíveis na Hemeroteca, se empenhava em alardear a umbanda e o candomblé (definidos pelo impresso como “macumba”), como causadores de grandes males à família tradicional paranaense. Entretanto, esse tratamento não era dispensado apenas aos umbandistas e candomblecistas daqui, o jornal trazia notícias e artigos opinativos condenando a prática de tais cultos em diversos lugares do Brasil. Uma edição de 1930 traz um artigo que define a macumba (umbanda e candomblé) como um “cancro moral, próprio de gente bárbara”.
Em uma edição de setembro de 1931, o Diário da Tarde traz uma matéria investigativa sobre macumba e feitiçaria em Curitiba. Com o título “O mal de todos os tempos augmenta assustadoramente”, a reportagem destaca que Curitiba estaria infestada de macumbeiros e que, como acontecia no Rio de Janeiro, as autoridades deveriam aumentar a repressão sobre os cultos já que muitas famílias curitibanas estariam sofrendo as mazelas provocadas pela mandracaria.
Centro Flor de Arruda
Em 27 de julho de 1933 o Diário da Tarde traz uma matéria que dava conta da existência de um terreiro chamado “Flor de Arruda” na região do Juvevê. Nesse local, segundo o texto, Mãe Benedicta e Pai Antó (provavelmente mãe e pai de santo da casa) cantavam e invocavam em volta de uma fogueira. Mas a ênfase do texto se dá na prisão de uma mulher chamada Olinda Vieira, detida pelo delegado de polícia ao ser flagrada deixando um pacote com velas, fitas e ossos em frente a uma casa. “O degado deu-lhe um susto trancafiando-a no porão da central onde ela passou toda a noite invocando seu deus Ogum”, diz o texto em tom de deboche.
As prisões eram comuns para aqueles que se atreviam a praticar tais cultos. De novo o Diário da Tarde, desta vez na edição de 3 de janeiro de 1934, dá destaque à perseguição de mais uma “macumbeira”. Desta vez “Nhá Tiburcia” era acusada de fazer uma pobre senhora (por meio de feitiçaria) vomitar cabelos, peles de sapo e outros detritos. O jornal descreve que o esposo da “vítima” destacava que aquilo com certeza era obra “dessas feiticeiras africanas que tanto asco e repugnância nos causam”.
A mesma edição diz que um político foi pego pela equipe de reportagem em flagrante em uma casa de macumba, e o jornal dava um ultimato para que o tal representante público se apresentasse à sua redação para justificar esse fato, sob a pena de ter seu nome divulgado para todos os leitores.
A Federação Espírita: Perseguição refinada
A umbanda surgiu por conta do “refinamento espiritual” dos Kardecistas que não aceitavam trabalhar com espíritos simples como caboclos e pretos velhos. A história da Umbanda teria início em 1908 quando foi fundada pelo médium Zélio Fernandino de Moraes. Na época, esse homem estaria doente e teria sido levado a um “centro de mesa” (ou seja, kardecista), por um parente.
Neste centro, sentado na corrente, Zélio teria recebido um espírito que ordenou que ele fosse buscar uma rosa branca. Depois de sair para buscar a rosa branca, ao voltar, muitos outros irmãos de corrente receberam espíritos de pretos e índios e foram coibidos pelo dirigente, com o argumento de que eram “espíritos atrasados”.
O conservadorismo dos espíritas, entretanto, não se limitava apenas a não comungar com espíritos de “menor estirpe” tão comuns nos terreiros de umbanda. Em Curitiba, a Federação Espírita do Paraná, no ano de 1938, ao lado da Polícia, prometia uma campanha enérgica para acabar com os cultos afro na capital. Conferências e debates foram travados por médiuns, intelectuais e autoridades da época para acabar com a macumbaria.
Longa história
A partir de pesquisas realizadas em processos contra feitiçaria em Curitiba no período de 1763 a 1777, a pesquisadora Danielle Wobeto destaca que “o perfil dos acusados de feitiçaria, tanto pela Igreja quanto pela justiça comum, era de mulheres pobres. Negras, pardas ou índias”. Dentre os casos destaca-se o da “negra forra” Sipriana Rodrigues Seixas acusada e condenada por fazer feitiços em associação com mulheres denominadas de fua.
Durante a pesquisa histórica realizada pelo projeto Lugares de Axé, Inventário dos terreiros de candomblé de Curitiba e Região Metropolitana, um dos registros mais antigos de denúncias feitas em Curitiba ao Santo Oficio da Inquisição, é registrada na no dia 31 de marco de 1780 pelo então Capitão-mor da Vila de Curitiba, Dr. Lourenco Ribeiro de Andrade, que acusa a Manuel Preto, escravo do Vigário de Curitiba, por fazer coisas sobrenaturais, dentre elas a pratica de adivinhação e realizar práticas de cura, consideradas como feitiço pelo declarante e pelas quais o dito Manuel era procurado por pessoas da localidade. Os documentos relativos ao desdobramento do processo inquisitório possibilitam não apenas ter acesso a detalhes sobre as práticas de adivinhação e cura, como a informações sobre outros escravos que realizavam praticas da mesma natureza. Pessoas da elite comercial local apelavam para Manuel Preto curar enfermidades de familiares, como foi o caso do comerciante Manuel Torres Vaz, que interrogado durante o processo declarou que durante a cura de uma filha sua presenciou o curandeiro “deitar em hum Pratto de Algumas fructas que pareciam carossos de azeitona”, com as quais interpretava se o doente sararia se “os fructos 15 índios” flutuassem na agua ou morreria se os mesmos “focem ao fundo”. Outra testemunha menciona que notava que há dias “o dito preto tem estado no sitio de Manuel Torres Vaz e Mathias Corra Simões onde se apresentam vários com m.to segredo para serem curados”.
Resistência
O Diário da Tarde era reflexo da sociedade curitibana na primeira metade do século XX, e parece que ainda representa o pensamento de muitas famílias em 2019. A perseguição promovida pela imprensa, por policiais, políticos e cidadãos de bem da época não se resumia apenas a ameaças. Muitos e muitos terreiros eram apedrejados e invadidos pela polícia. Pai Antônio Ogan, um dos mais antigos pais de santo de Curitiba, cujo barracão ainda existe no bairro Uberaba, tinha a casa de candomblé invadida pela cavalaria da polícia de quando em quando.
Muitos terreiros fechavam as portas, era uma tarefa árdua manter o culto em uma cidade conservadora e racista. Outros, porém, perseveravam. Chico Boia, pai de santo que fundou um terreiro no início da década de 1950 no Bairro Alto era um deles. Caminhoneiro, policial e lutador de luta livre. Chico Boia não era um sujeito que se amedrontava com facilidade. Foi preso várias vezes por conta dos batuques no seu terreiro. Sempre continuava, no final de semana seguinte lá estava ele, batucando de novo, e de novo, e de novo.
A insistência de personagens como Chico Bóia foi fundamental para a umbanda e o candomblé se consolidassem de vez em Curitiba. Nomes como Tola Malembe, Rolando Calopreso, Orlando Lopes, Pai Veco, Mãe Cida de Oxum, Pai Cafú, Mãe Izolina, entre tantos outros, trabalharam com afinco na consolidação de umbanda e candomblé. Elementos como a vinda de muitos imigrantes do estado de São Paulo, nas décadas de 50 e 60 para Curitiba, também contribuíram com a afirmação dos terriros.
Além disso, diversos centros cumpriam o papel do estado em regiões carentes e levavam mais do que consolo espiritual, mas também ajuda material a diversas famílias. Assim, por meio da caridade, as casas foram se enchendo, mais filhos de santos sendo formados e outros terreiros surgiam.
Era impossível frear uma religião que caía no gosto popular, que ganhava adeptos inclusive na política, que conquistava frequentadores de classes sociais mais abastadas. E a popularidade da umbanda e do candomblé se deu não apenas pelos trabalhos dos pretos velhos e caboclos, mas também pela resistência e coragem de pais e mães de santo que enfrentaram a imprensa, a justiça, a política, a polícia e as “famílias de bem”. A umbanda e candomblé não acabaram, pelo contrário, os filhos de santo das nações de candomblé continuam cultuando os orixás, e os médiuns das correntes umbandistas continuam dando passagem pra caboclos e pretos velhos. Nada que o racismo e preconceito façam podem para isso…
Referências e links das matérias no acervo da Biblioteca Nacional Digital
http://www.centroespiritaurubatan.com.br/estudos/historia-da-umbanda.html
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/33687
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/35013
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/35331
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/36088
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/40593
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/41446
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/41454
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/42014
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/42590
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/43533
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/45395
http://memoria.bn.br/DocReader/800074/53090
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