segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

A maré turbulenta que fez do Paraná uma colônia anarquista

 A maré turbulenta que fez do Paraná uma colônia anarquista

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Anarquia geralmente é entendida como um estado de desordem, de caos e subversão. Quando usada segundo essa definição, a palavra anarquia tem sentido pejorativo.

 

Se vista pelas lentes da história e da ciência política, porém, a anarquia tem muito mais profundidade. Do grego, “anarkhia” significa "negação da autoridade” ou "negação do governo”. Ou seja, ela carrega um sentimento de oposição.

 

Desde o século XVII, a anarquia se constitui, também, como uma ideologia política que atingiu seu ápice entre o final do século XIX e início do XX. Assim, da anarquia surgiu o movimento anarquista ou simplesmente o anarquismo. Seus principais teóricos foram italianos e russos, embora a experiência anarquista tenha chegado ao poder somente na Espanha, anos antes da trágica Guerra Civil.

 

No Brasil, o movimento operário foi majoritariamente anarquista pelo menos até a década de 1920 . Os imigrantes italianos que vieram ao país trouxeram consigo a ideologia anarquista e a desenvolveram no seio das organizações trabalhistas. Um desses imigrantes foi Giovanni Rossi, toscano natural de Pisa.


Giovanni Rossi e a vinda ao Brasil

 

A bordo do navio Città di Roma, Giovanni Rossi (1856-1943) e seus companheiros embarcaram no porto de Gênova em 20 de fevereiro de 1890, com destino ao Rio de Janeiro. Além de Rossi, estavam: Evangelista Benedetti, Lorenzo Arrighini e Giacomo Zanetti.  Segundo o anarquista, também teriam viajado Cattina e Achille Dondelli, além de um casal de espanhóis, mas não há registro de sua entrada no Brasil.

 

Inicialmente, o grupo desejava fundar uma colônia anarquista no Uruguai, mas, inexplicavelmente, os planos mudaram e o Brasil entrou na rota. A ideia não era nova: agrônomo, veterinário de formação e versado em ciências naturais e políticas, Giovanni Rossi pretendia fazer do anarquismo um experimento científico. Seu intuito era criar uma comunidade igualitária e sem autoridade nem governo (anarco-socialista) para testar a sua eficácia e, assim, mostrar às pessoas uma nova possibilidade de vida.

           

Ainda na Itália, Giovanni Rossi já havia fundado uma sociedade anarquista autônoma, a Association agricole coopérative de Cittadella. A ideia se baseava num livro que Rossi (ou “Cardias”, seu pseudônimo) havia escrito anos antes, que descrevia os princípios do anarquismo; o livro se chamava Une Commune socialiste. O experimento não vingou, sobretudo porque ele não conseguiu cooptar pessoas para a colônia. Anos depois, o idealista decidiu mudar de país, até que chegou ao Brasil em 18 de março de 1890, junto dos 4 amigos que havia convencido.

 

No Rio de Janeiro, Giovanni Rossi escreveu uma carta endereçada ao jornal anarquista francês La Révolte:

 

“Nós pretendemos constituir aqui uma colônia anarquista, que possa dar à propaganda uma demonstração prática de que nossas ideias são justas e realizáveis, e à agitação revolucionária na Europa auxílios financeiros."

 

Ou seja, Giovanni e os companheiros não vieram para fazer a revolução, e sim para colocar em prática um experimento social.

 

No dia 26 de março, após ficarem uma semana na Ilha das Flores (hospedaria de imigrantes na ilha homônima, próxima ao porto no Rio), o grupo embarcou novamente, desta vez no navio Desterro, com destino a Porto Alegre, onde desejavam fundar a colônia. Em menos de 48 horas de navegação, porém, 2 integrantes sofreram com enjoos, possivelmente porque o mar estava muito agitado. Assim, para evitar os próximos 5 dias de viagem, Rossi decidiu aportar em Paranaguá.


A fundação da Colônia Cecília

 

Os dias ali foram poucos, pois o clima litorâneo e abafado de Paranaguá extenuava os imigrantes. Então, logo eles chegaram ao Planalto de trem, entusiasmados com a exuberância da natureza e com os inúmeros anúncios de venda de terras. Na Inspetoria de Terra e Colonização, destinado a organizar as terras desocupadas, eles avaliaram uma propriedade de São Mateus do Sul, e depois outra em Santa Bárbara, no município de Palmeira, que compraram com dinheiro levantado na Itália (existe uma lenda segundo a qual Dom Pedro II havia doado as terras especialmente a Giovanni Rossi, mas não existem documentos comprobatórios, nem mesmo uma possibilidade histórica, ressaltam os pesquisadores Isabelle Felici e Miguel Sanches Neto).

 

Palmeira agradou muito. O clima ameno, as fartas terras e a proximidade com teatro, clube literário e com personalidades notáveis, como o republicano socialista e médico Franco Grilo, convenceram Rossi e seus companheiros a ficarem no local. Grilo, inclusive, deu moradia aos colonos que chegaram a Palmeira na noite de 1o de abril, depois de uma longa e tortuosa jornada que terminou com temporal e muito barro nas canelas. No dia seguinte, os 4 (ou seis, dependendo da fonte), fizeram o reconhecimento da propriedade, que contava com laranjeiras e um casebre de madeira, onde se instalaram.

 

De fato, não existe um consenso sobre quantos anarquistas fundaram a já batizada Colônia Cecília (nome em homenagem a Cecília, heroína anarquista de um romance de Rossi, Une commune socialiste. Mas eram poucos, certamente, e entre eles havia uma única mulher, Evangelista Benedetti. Contudo, as cartas de Giovanni Rossi enviadas à Europa, com forte caráter propagandístico, influenciaram a chegada de mais imigrantes. No auge, em maio de 1891, a Colônia Cecília teve 250 habitantes; meses antes, Rossi havia viajado à Itália para divulgar os avanços conquistados no Paraná. Será que ele exagerou na construção dessa imagem positiva?


A vida anarco-socialista da Colônia Cecília


Ninguém mandava em ninguém. Não havia hierarquia entre as pessoas, menos ainda entre homens e mulheres. Acreditava-se que o casamento monogâmico era a causa de subordinação da mulher, então na Colônia Cecília o amor era livre e as pessoas podiam se relacionar com quem quisessem. Quando havia uma gestação, o filho não deveria ser de uma família, mas da comunidade. Assim como os descendentes, tudo o que era produzido na comunidade e pela comunidade, era repartido igualmente.

 

Para o escritor Miguel Sanches Neto, "o melhor experimento que eles fizeram foi o amor livre, o casamento poliândrico", justamente para “destruir a célula familiar tradicional".

 

Na Cecília havia criação de animais e se cultivava milho, verduras e frutas. Giovanni descrevia esses primeiros meses no Paraná com muita alegria, pois a comida, embora não muito variada, era farta. Eles comiam arroz, feijão, polenta, porco, carne de vaca, salame, café, leite, tudo em grande abundância e produzido ali mesmo. Mas farto também era o trabalho, que esgotava o dia a dia da comunidade.

 

Nesses escritos de Rossi, porém, nem tudo era contado, pois seu objetivo era convencer outros imigrantes a virem à Cecília. Segundo a pesquisadora Isabelle Felici, Giovanni deixou de escrever que a vida ali:

 

“é muito rude, que as refeições são frugais, os cobertores sempre

insuficientes, o trabalho difícil; ele fica feliz de anunciar que a vida

comunitária, apesar de alguns "incidentes desagradáveis", das querelas e

do ciúme do marido da única mulher do grupo, desenvolve-se de maneira

satisfatória, "sem regulamentos nem chefes”.

 

 

Para Sanches Neto, a vida na Colônia Cecília era uma bagunça, ou “inorganizada”, como escreveu Rossi. Não havia pactos orais ou escritos, não havia uma divisão lógica de trabalho ou mesmo regras de convivência. O dinheiro arrecadado pelos colonos, por exemplo, era posto no barracão comunitário, numa pequena latinha ao alcance de qualquer um. Ali também se cozinhava comunitariamente. Além disso, a maioria dos colonos não possuía técnicas de agricultura, o que dificultava a autossuficiência da Cecília.


Ciao Ciao, bambina Cecília

 

O aumento da povoação da Colônia Cecília, longe de ser a solução, tornou-se o seu pesadelo. A produção de alimentos não dava conta de nutrir todos, e muitos que chegavam, vendo a situação, preferiam comprar outras terras a prazo. Estes, em maioria, foram trabalhar na construção das estradas de ferro: embora o dinheiro fosse pouco, assim não se passava fome.

 

Além disso, poucas eram as mulheres que topavam a experiência do amor livre, sobretudo porque os seus idealizadores (homens) não pensaram na continuidade de opressão de gênero (contra as mulheres), mesmo com a abolição do núcleo familiar tradicional.

 

Nesse cenário conflitivo, os comerciantes de Palmeira se tornaram os fiadores dos colonos, mas isso só gerou desentendimentos. Muito se diz, inclusive, que a existência de uma comunidade polonesa católica, nas vizinhanças da Cecília, isolou os anarquistas, pois eles eram vistos com desconfiança por serem ateus.

 

Em 1894, a única experiência anarquista da América, e uma das mais famosas do mundo (já que Rossi e os jornais a popularizaram), estava totalmente desmembrada. A maioria de seus integrantes foi para outras cidades, tornaram-se jornalistas, operários, e certamente por onde passaram eles difundiram contundentes críticas ao regime vigente no país, tanto o político quanto o econômico. 

 

Com isso, a Colônia Cecília restou a uma única família. Hoje, o local é uma propriedade particular e, onde antes havia um povoado anarquista, cultiva-se soja. Recentemente, ali próximo ao local, foi inaugurado um memorial em homenagem aos colonos italianos, de autoria do pesquisador e escritor Arnoldo Monteiro Bach, autor do livro Colônia Cecília.

 

Quanto a Giovanni Rossi, ele ficou mais alguns anos no país, onde ministrou disciplinas agrícolas em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Ironicamente, Rossi voltou à Itália em 1907, após contrair uma relação monogâmica com uma antiga moradora da Colônia Cecília. Lá, ele continuou ligado a cooperativas anarquistas até a sua morte, em 1943.

 

Para a história, Rossi deixou inúmeras cartas sobre sua experiência na Colônia, além de um livro chamado Colônia Cecília e outras utopias, traduzido pela editora do estado do Paraná, a Imprensa Oficial, em 2000. Isso contribuiu para que a passagem única dos colonos anarquistas no Brasil não fosse esquecida. Não à toa, Cecília se tornou cenário de romances históricos, estudos acadêmicos, minisséries e até de um filme dirigido por Valêncio Xavier.

 

Assim, persiste aos efeitos do tempo uma passagem rebelde e utópica do Paraná, de quando o futuro era aguardado com fartas expectativas. 


Texto e pesquisa: Gustavo Pitz


Fontes:


https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ael/article/view/2469/1879


https://www.bbc.com/portuguese/geral-52973847


http://www.gazetadepalmeira.com.br/geral/memorial-anarquista-e-inaugurado-e-registra-a-experiencia-da-colonia-cecilia/


https://emigrazioneveneta.blogspot.com/2019/11/passageiros-do-paquete-italiano-citta.html


https://globoplay.globo.com/v/4946282/


https://www.tripadvisor.com.br/Attraction_Review-g1936500-d11871647-Reviews-Memorial_Colonia_Cecilia-Palmeira_State_of_Parana.html

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