Ruínas do São Francisco: ruínas que já nasceram ruínas
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Na maioria dos casos, ruínas não nascem ruínas; ruínas são os restos de algo que foi sonhado, projetado, realizado e enfim desfeito, tornando-se ruína. Mas em Curitiba tem um caso que foge a essa regra: as Ruínas do São Francisco, na Praça João Cândido.
Como disse o poeta Paulo Leminski, “
Nunca houve uma igreja de S. Francisco naquele lugar. Nossas são as ruínas que já nasceram ruínas”. E complementa: “no Alto de S. Francisco as ruínas da igreja que poderia ter sido, mas não foi, monumento sobranceiro a todas as nossas frustrações, nossos fracassos, nossas pequenas derrotas, obelisco gritando a falência de todos os nossos grandes sonhos”.
Diante disso, você pode se perguntar: ‘Por que as Ruínas do São Francisco já nasceram ruínas?’
Eis a explicação:
Na década de 1790, Curitiba era uma pequena e campeira vila com um pouco mais de 3.000 moradores — distribuídos em cerca de 200 casas, quase todas localizadas no perímetro entre a Igreja da Matriz, a Igreja da Ordem e a Igreja do Rosário. A pequena vila já mantinha, portanto, uma igreja católica para cada 1.000 habitantes.
No ano de 1798, o bispo Mateus de Abreu Pereira, de São Paulo — província da qual Curitiba fazia parte, passou por Curitiba e ficou insatisfeito com o estado de conservação de todas as igrejas da vila. Em vez de ser proposta a reforma de alguma delas, um rico proprietário local, chamado Manoel Gonçalves Guimarães, que hospedou o bispo em sua fazenda, pediu sua autorização para a construção de uma nova igreja na vila de Curitiba, sob seus auspícios.
Manoel Gonçalves Guimarães era um imigrante português que criava gado nos Campo Gerais — era um dos mais ricos da região, pois dispunha de milhares de cabeças de gado e utilizava mão-de-obra escravizada. Era também devoto de São Francisco de Paula, santo cultuado na Igreja da Ordem pelos frades franciscanos, que lá estavam desde 1746. Como São Francisco de Paula não tinha igreja própria, Manoel solicitou à câmara de vereadores um terreno para a construção de uma dedicada ao santo.
O terreno doado pela câmara ficava distante do centro da pequena vila, num morro descampado a oeste, onde praticamente não havia moradores. Em 1809, com o trabalho dos escravos (provavelmente do próprio Manoel), já estava pronta a capela com a imagem do santo e a sacristia, cuja benção ocorreu dois anos depois. A intenção era que, ao seu redor, aos poucos fosse construída uma igreja portentosa, de frente para a Serra do Mar (e não para o Sul, como era costume), para que de longe fosse vista por aqueles que viessem do litoral.
Quando os escravizados já haviam feito, com rochas, parte da fundação e da entrada da nova igreja, Manoel Gonçalves Guimarães faleceu, em 1815, interrompendo as obras. Desde então, embora na capela fossem feitos cultos e para ela fossem designados padres, a arquidiocese (sobre quem recaiu a responsabilidade da obra), nunca mais deu sequência à construção da igreja. Mais de dois séculos se passaram e, até hoje, a quase-Igreja de São Francisco de Paula se encontra praticamente do mesmo jeito de como estava em 1815 — feito um sonho interrompido, transformado em ruínas antes mesmo de ser realizado.
A obra ficou empacada não tanto por desinteresse das autoridades religiosas, mas por ser a última de suas prioridades. Em 1812, Curitiba passou da condição de vila para cidade, e em 1842 transformou-se na capital da 5ª Comarca de São Paulo (atual Paraná). Devido a isso, a prioridade tornou-se reformar a mais importante igreja da cidade, a Matriz, e a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas. Não por menos, na década de 1860 as pedras da fachada das ruínas foram utilizadas para a construção das torres da Matriz, que depois vieram a desabar.
Nesse meio tempo, as Ruínas do Alto São Francisco serviram para uma atividade, no mínimo, peculiar:
“Em Curitiba, o primeiro registro de um espaço escolar é de 1836, quando após insistentes solicitações ao governo provincial, o professor João Baptista Brandão conseguiu ‘uma boa, decente e grande sala que serve de consistório da começada igreja de São Francisco de Paula, igreja que se acha em completo abandono’. A primeira escola de Curitiba localizou-se, portanto, em uma ruína.”
(Elizabeth Amorim de Castro citada por Flavio Antonio Ortolan, do blog Fotografando Curitiba)
Anos depois de sediar a céu aberto a primeira escola de Curitiba, as Ruínas deixaram de frutificar a vida para ser descanso para os mortos. Para não deixar a capela de São Francisco completamente abandonada, além de serem realizados cultos, o terreno ao seu redor passou a ser cemitério. Se, na Matriz, eram sepultadas pessoas da elite da cidade, nas ruínas não: eram enterrados pagãos, suicidas e todos aqueles considerados indignos da misericórdia de Deus.
Quando o ato de enterrar os mortos em igrejas, dentro e fora delas, passou a ser questionado pelos sanitaristas, novamente as ruínas serviram como material de construção: as pedras das ruínas foram transplantadas para as obras do Cemitério Municipal São Francisco de Paula.
Essa situação de ser sempre deixada de lado, e de ser um cemitério de indignos, tornou as Ruínas de São Francisco um local propício para o surgimento de lendas: ali vagariam almas penadas, incluindo a de um vigário que cuidava da construção inacabada, e também piratas e tesouros escondidos (o famoso Pirata Avarento, que teria escondido seu tesouro no cemitério), além de uma serpente gigante que vivia no subterrâneo da cidade, num suposto túnel entre o Alto do São Francisco e a Igreja Matriz.
Em função dessa crença de que o local era cercado e vigiado por almas penadas, decidiu-se, por fim, não mexer mais nas ruínas. Somente a capela e a sacristia, de tijolos, foram demolidas em 1914 para a construção do Belvedere. Em permuta, a prefeitura doou um terreno situado na esquina das ruas Saldanha Marinho e Desembargador Mota, onde em 1936 foi criada a Paróquia São Francisco de Paula.
Preservação e novos usos
Em 1966, todo o conjunto da Praça João Cândido, incluindo as Ruínas, foi tombado pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Paraná. Por muitos anos, as ruínas foram protegidas por grades, que atualmente foram substituídas por placas de vidro e jardins floridos. A Praça João Cândido, com a reforma do Belvedere, também ganhou nova vida, dando mais destaque aos resquícios da igreja colonial que nunca foi concretizada.
Hoje, além de um importante local histórico e ponto turístico da cidade, as Ruínas do São Francisco são um marco para a educação patrimonial, e também para várias atividades culturais. Abaixo delas, foi construído um anfiteatro aberto e também uma galeria de arte (as Arcadas de São Francisco), que atendem milhares de pessoas anualmente.
Dessa forma, fruto do trabalho de pessoas negras escravizadas, dos infortúnios que destroem planos e de lendas que as tornam enigmáticas e populares, as Ruínas do São Francisco, lá no topo do centro, são um dos maiores símbolos de Curitiba. É como disse Leminski: é a ruína que dá sentido à cidade.
Texto e pesquisa de Elaine Costa, Gabriel Brum Perin e Gustavo Pitz
CASTRO, Elisabeth Amorim de. Grupos Escolares de Curitiba na primeira metade do século XX. 1. ed. Curitiba: Edição do autor, 2008.
FENIANOS, E. E. São Francisco: uma história de monumentos. Curitiba: Univercidade, 1998
FONSECA, Poliana Teixeira da. RUÍNAS DE SÃO FRANCISCO: PAISAGENS DE RESISTÊNCIA. Dissertação de Geografia, curso de Pós-Graduação em Geografia, Setor de Ciências da Terra, Universidade Federal do Paraná, 2019.
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos: ensaios. Curitiba, PR: Inventa, 2014.
https://www.fotografandocuritiba.com.br/2017/07/as-ruinas-de-sao-francisco.html