quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Cartão Postal da Praça Tiradentes, Curitiba, década de 1940.

 Cartão Postal da Praça Tiradentes, Curitiba, década de 1940.


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Penélope – Conto de Dalton Trevisan

 

Penélope – Conto de Dalton Trevisan

Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

— Que vai fazer?

— Queimar.

Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.

— Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.

O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

— Não vai ler?

Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

— Já sei o que diz.

— Por que não queima?

É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.

Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.

Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?

No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras… Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou.

Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão — no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente… Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.

Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca… Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.

Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.

Afinal compra um revólver.

— Oh, meu Deus… Para quê? — espanta-se a companheira.

Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha.

Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher.

De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?

Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.

Havia um primo no passado… Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma.

Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la.

No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.

Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?

Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca.

Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto.

Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.

Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.

Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas… Por engano na sua.

Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova.

Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta…

Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.

Incidente na loja – Conto de Dalton Trevisan

 

Incidente na loja – Conto de Dalton Trevisan

NELSINHO marcou o cartão, desceu pelo elevador com o guarda-livros. Pediu que o justificasse perante o gerente, no caso de se atrasar: almoçava com o tio chegado de viagem.

– Por que não fala com o homem?

O herói mordia o canto da unha e, de instante a instante, sugava uma gota de sangue.

– O bruto me deixa aflito.

No bar da esquina o primeiro cálice – um gole só.

– Cuidado, rapaz. Bebe muito depressa.

Metendo-se na vida alheia, não se queixe a guarda-livros quando mergulhe no poço do elevador. Nelsinho virou mais dois tragos, saiu para a rua ensolarada. Olhava o relógio de pulso, embora sem pressa nem rumo, seguindo de longe as damas; ah, esquecera o óculo escuro, admirar-lhes as prendas sem se denunciar. Não resistiu a um chope bem gelado e enxugou o bigodinho.

Graças a Deus pelas mulheres, tão bem feitas para serem acariciadas – ratinho branco, gato angorá, porquinho-da-índia. Algumas gostaria de embalar no colo. A outras pediria, virando o olho, que lhe queimassem o cabelo do peito na brasa do cigarro. Para onde girasse a cabeça, lá estavam elas, braços nus, a penugem dourada arrepiando-se aos seus beijos soprados na brisa fagueira. Seguiam a passo decidido, estremecendo as bochechas rosadas, indiferentes e tão distraídas que, se olhavam para ele, era através dele: nuvem, folha de papel, gota d’água. Voltando-se irritado, acompanhava o balanço dos cabelos na nuca, a ondulação das saias no boleio aliciante dos quadris.

Cão sequioso, a língua de sol resfolegava-lhe no pescoço. Jogou o paletó ao ombro, o toureador no seu manto de glória. Estava para o amor, não fosse a humilhação da carteira vazia – até a última das mulheres tem o seu preço. Mais um vale no caixa, o guarda-livros iria denunciá-lo ao gerente: o poço do elevador era o fim do espião. Sonolento da bebida, os bancos da praça convidavam-no para o descanso reservado aos pais de família. Resistiu impávido, desviou-se para uma rua transversal, observou a mocinha na calçada oposta – É ela. Agradeceu com falsa modéstia – Obrigado, Senhor. Eu não mereço.

Sem perdê-la de vista, preparava a abordagem. Os cartazes na parede sugeriam que fosse ao cinema. Vestiu o paletó para bem impressionar, atravessou a rua. Ultrapassou-a alguns passos, fingiu que lia os anúncios. Na vitrina a figura sinistra de galã barato: desde quando se reflete a imagem do Nosferatu? Esfregou o lenço no nariz, onde latejava uma espinha – tarde demais para espremê-la. Então o coração de Nelsinho disparou: um amigo da família vinha ao seu encontro. Ainda não o avistara, escondeu-se atrás de uma coluna do saguão – vai saber que persigo a menina.

Ela admirava os deslumbrantes cartazes de Ava Gardner, não havia reparado em Nelsinho. Antes que pudesse olhar através dele – folha de papel, nuvem, gota d’água -, cumprimentou-a risonho e cuidadoso de não revelar o dentinho preto. A ingênua correspondeu ao sorriso. Aguardou um pouco, atrás da coluna, não fosse o amigo da família aparecer. Aflito, rompeu em marcha batida, esbarrou na menina, que estava abrindo a loja vizinha.

– Já vai entrar, meu bem?

Quase gritou, a mão no decote da blusa amarela:

– Puxa, que susto!

Meio sorriso, verificou se era seguido.

– É aqui que você trabalha?

– Trabalha com quem? Ah, sozinha, é? Que importante.

– O teu patrão?

– Está doente.

– Loja de que é?

Era casa decadente, duas portas. A moça abriu uma das folhas, guardou a chave na bolsa com alça de bambu. Nelsinho relanceou os olhos na escuridão.

– Colchão, acolchoado, travesseiro.

– A que hora você sai?

– Fico até às seis.

– Se a encontrasse na saída?

Não roa a unha, desgraçado, que está perdido.

– Como é? Posso ou não posso?

Ela sorriu, no lábio uma gotinha de suor: sim.

– Ah, seu nome, qual é?

Ó, Senhor, não tens piedade; cometera o primeiro erro, voltando para a menina a orelha boba. Escapou-lhe o nome, já não teria coragem de repetir a pergunta. A seus pés, a nuvem de fogo tremulando no asfalto, como resistir à sedução da fresca penumbra?

– Será que podia entrar?

Avançou na frente dela, que ainda protestou:

– Não tem nada para ver.

Apertava os olhos, sem distinguir na sombra: pilhas de colchões erguiam- se pelos cantos. Curvou-se a menina, o trinco da segunda folha. O herói descortinou a face calipígia – quem diria, aquela mocinha magra! -, ficou tremendamente excitado. Estou cansado, Senhor, são tantas mulheres e eu tão sozinho. Ela não conseguia suspender a lingüeta, ergueu-se a soprar o dedinho:

– Veja se faz alguma coisa. Puxe o trinco ao menos.

Sem beber, voltava ao que era: cão lazarento. Na penumbra, o bafio da loja decrépita Encaminhou-se a menina para a outra porta. Nelsinho, ao sacudir o torpor, sentiu debaixo do pé o soalho vacilante e, cruzando com ela, alisou-lhe em furtiva carícia o cabelo ruivo.

– Não. Não me pegue.

Nelsinho inclinou-se para o trinco, o acento lânguido e perverso – Não, não me pegue -, em recusa que, tão indolente, era antes um convite, mudou de idéia e empurrou a porta com o pé. Lá fora, sentado no carro, um motorista gordo bocejando volveu a cabeça tarde demais.

Para surpresa de Nelsinho, não ficou no escuro: os dois quadros luminosos das bandeiras no soalho. A moça, ainda sem entender – meu Deus, terei de fazer uma carnificina? -, bulia na segunda porta. Chegando- se por trás, mãos em concha empolgou-lhe o busto. Sua longa busca recompensada e, sob as barbatanas, encontrou a mansa paz de dois pequenos seios. Surpreendida, sem largar a tranca, inocente do que lhe acontecia:

– Nojento… Seu nojento!

Ao ouvido bom do herói queixume de amor, algum travo de fúria. A moça cravou-lhe as unhas na mão. Ela enterrava as unhas, Nelsinho esmagava os seios com força. Crispando a mão, alegrou-se de roer as unhas, não a machucava mais do que devia. A menina não resistiu e gemeu, a cabeça inclinada para trás. Deixou que se voltasse. Soltando os seios, agarrou nas duas mãos o rosto.

Ela girou e bateu com a bolsa na sua perna direita.

Beijou-a duramente na boca. Ela se opôs, sem conseguir afastar o rosto. O herói descolou os lábios para recobrar fôlego. A menina fitava-o com susto atrás do óculo de gatinha. Daí a beijou novamente. Continuava se recusando, mas não muito: abateu o braço, a bolsa escorregou. Nelsinho recuou um instante a cabeça para respirar. Na terceira vez a menina retribuiu, ainda de boca fechada – ele sopesava na palma um dos seios, precioso e frágil ovo quente do ninho.

Suspendeu o beijo, olhou ao redor: a luz das bandeiras na chita encarnada dos edredões e travesseiros azuis. O rosto nas mãos, arrastou-a até a pilha de colchões. A moça tombou com um gemido, o vestido suspenso descobriu a combinação branca enfeitada de rendas. De joelho, quis voltar a beijá-la, os dedos agarrados no seio. A bela fugiu com o rosto. Como também usava óculo, constrangido a retirar o seu, que rolou fora do leito e quase deu um grito no susto de quebrá-lo. Imobilizou lhe o rosto, alcançou os lábios e, a beijá-la, subia o vestido, desde o joelho redondo até a amplidão da coxa alvacenta. A calça de malha, teria de rasgar.

Óculo embaçado da moça, estava de olho aberto? Ela não se mexia, ofegante de medo ou prazer. Nelsinho enterrava-lhe o nariz nos longos cabelos vermelhos – ai, Senhor, de nós dois qual a vítima?

Tateou o soalho empoeirado até achar o óculo. Morcego condenado à caça nas trevas, observou a boca infantil, antes agressiva de batom, indefesa nos lábios finos e entreabertos. Ergueu-se e, a seus pés, na trêmula faixa de poeira luminosa, a pecinha de malha rósea.

Bem educado, deu-lhe as costas para se abotoar, recolheu as medalhas bulindo na corrente. Por sua vez, a bela ajeitou a anágua e as pregas da saia, alisando-a diversas vezes com a mão.

Voltara a sua timidez, uma vontade de chorar, como agir em face das damas? Não queria chegar tarde, podia perguntar a hora.

Também ela se atrasara na abertura da loja; dirigiu-se à porta, apanhando a bolsa no caminho, deslocou a tranca. Em galanteio, Nelsinho abriu a outra porta. Escancarou uma das folhas e abaixou-se para o trinco, que correu fácil. E o gordo que o tinha ouvido ou visto bater a porta? Piscou o olho: o carro lá não estava. A moça entretida com a máquina de escrever. Ah, Senhor, deste-me a voz, não as palavras. Pedir desculpa, combinar encontro, perguntar a hora? Antes que ela se voltasse, partiu sem se despedir.

Bateu o ponto, olhou o cartão. Chegara em tempo: o incidente na loja consumado em poucos minutos. Sentou-se à sua mesa, enrolou o papel na máquina: a mão suja de sangue. Foi ao banheiro lavá-la com receio de infecção. Ao procurar o lenço, não o achou, perdido na loja – o seu nome bordado no canto.

De repente viu-se no espelho, pálido de susto. Umedeceu o cabelo, penteou-se devagar: o cabelo fabuloso de Nelsinho. Sorriu entre surpreso e satisfeito, baixou a cabeça e murmurou: Obrigado, Senhor.


As Uvas – Conto de Dalton Trevisan

 

As Uvas – Conto de Dalton Trevisan

O HERÓI subiu pelo elevador com o velho, um a examinar o outro. Saltaram ambos no quarto andar. Ele apertou a campainha. Na porta ao lado, o velho escolhia uma chave. Nelsinho entendeu na sua careta zombeteira — Olha aí mais um…

– Como vai o doutor? — cumprimentou Ivone, cerimoniosa. Fechou a porta e sorriu:

– Tratei você de doutor. Esse velhote não me deixa em paz.

Na mesa um vaso minúsculo de cacto. Espetada em areia, na haste negra luzia pontinho escarlate.

– Incenso indiano, querido, para roubar teu coração!

Na janela a tarde bruxuleava. Envolto na nuvem adocicada, tossiu de leve: Ai, só me falta crise de asma.
– Muito distinto!

O herói tomou-lhe as mãos e quis beijá-la, mas desviou o rosto.

– Que tanta pressa! Nem me achou bonita.

Um passo atrás, que a pudesse admirar: cetim negro, três voltas do colar dourado. Boca inchada de batom. Cabelo preto retinto, olho de sombra roxa – a última encarnação de Mata Hari.

– Está linda, meu bem.

A menina que escrevia bilhete no intervalo das aulas: Desta mujer que te quiere mucho, mucho, mucho! Travou das mãos, cruzou-lhe os braços nas costas:

– Agora não escapa.

O herói beijou o ar, galinha cega bicando às tontas. Ela sacudiu a cabeça com gritinhos de terror.

– Por que me convidou?

– Falar com você.

– Insistiu que estava sozinha. Não pensei que para conversar.

– Cruzes! Nunca imaginei você queria isso. Afastado na ponta dos braços:

– O mesmo olhar inocente do menino. Você é inocente?

– Você bem sabe — e forcejando para atraí-la, conseguiu derrubar um brinco.

– Viu o que fez?

– Depois eu acho.

– Ai, que horror! Me solte um pouco. Que tal um cigarro? Com dedos de ponta amarela acendeu um fósforo.

– Fuma demais.

– Tão aflita. . .

– Se quer, vou embora.

– Não — e segurou-lhe a mão, ainda com o fósforo. — Olhe: do lado que cair a cabeça está o meu amor.

A cabecinha negra rolou para ele.

>– Gosta de mim, querido? Preciso tanto de alguém. Tão só desde que a mãezinha morreu.

– E teu marido?

– Coitado do Vivi.

Espreguiçavam-se nos cantos as primeiras sombras da noite.

– Quer umas uvinhas, querido?

Na ponta do filete ardia a brasinha — Ivone apresentou-lhe o prato com uvas geladas e um guardanapo engomado. No outro lado da mesa, o rosto em nuvem azul de fumaça. Cruzou a perna, exibiu o chinelinho de pompom vermelho.

– Nervoso?

– Nem um pouco.

– Eu sim. Nunca enganei o Vivi. Boa a uva, não é?

– Ótima. Você quer?

– Já provei.

Batia o cigarro no vasinho de cacto. Ali no ombro uma pinta de beleza.

– Um beijinho na tua pinta! No estremeção de peixe arisco:

– Sinto cócega. Ah, se o Vivi. . . Nem quero pensar!

– Onde é que ele está?

– Por aí.

– É bom para você?

– Muito. Atencioso, bem educado.

Apanhou na radiola o retrato de moldura prateada.

– Se não é parecido com você. Por isso goste dele. O primeiro beijo lá na varanda?

– Eu podia esquecer? — e roçou o lábio no ombro, errou a pinta. — Você era virgem?

– Que pergunta.

– É certo o que dizem do Vivi?

– Bem que noivo diferente. Pobre de mim, chorei de alegria. Moço prendado, falava línguas.

Só beijinho de muito respeito. Uma educação inglesa. Depois você sabe.

– Que foi que houve?

– Abri de repente a porta: aos beijos com o filho do porteiro! Aspirou o cigarro ao ponto de recolher as bochechas.

– Simpático teu apartamento.

– Quer conhecer?

Ivone indicou a cozinha. Abriu a porta do quarto:

– Desculpe a desarrumação.

O quarto em perfeita ordem, duas camas de solteiro. Desta vez conseguiu beijá-la, sem que retribuísse.

– Espere. Limpar os lábios.

– Mais um beijinho.

– Não quero manchar tua camisa.

Apanhou lenço de papel sobre a penteadeira.

Ele observou as costas até achar a pinta — agora deixá-la nuazinha. Junto da cama, a lâmpada no garrafão azul.

– Muito original.

Olhando-o pelo espelho:

– Não é mesmo?

Voltou-se: rubros como antes, grossos de batom. Ele começou a beijar- lhe o pescoço, uma veia pulsava forte. Correu os dedos, esquecidos na nádega — louco por vestido com botão.

– Como é que é?

– O que, meu bem?

– A gente tira?

– Que pressa, cruzes! — o biquinho de contrariedade. — Conversar um pouco.

– Tenha paciência, filha. Não é hora. Aborrecida, afastou-se dois passos:

– Está bem. Tire a roupa.

Sacou o vestido pela cabeça, tanta prática que nem se despenteou. Ele tirou o paletó.

– Um cabide?

– Penduro aqui mesmo.

De costas, jogou a calça ao pé da cama. Virou-se e o que viu? Ela de sutiã, anágua, chinelinho de pompom. Em cueca, nosso herói investiu. Ergueu a saia, surpreendeu a coxa no espelho — a matrona é avó torta da donzela. Para se consolar, fechou o olho e fungou-lhe no pescoço. Repelão violento o fez cambalear:

– Que é? Que foi?

– Espere um pouco.

Acendeu o cigarro, apanhou no guarda-roupa uma toalha, que estendeu sobre a colcha encarnada.

Nelsinho despiu a cueca, apenas de camisa e sapato. Ela o encarou e, a mão atrás, abriu o sutiã: horrendo peito flácido. Excitadíssimo ao vê-la tirar a calcinha, só de anágua. Que se debateu aflita:

– E o brinco?

– Que brinco? Ah, depois eu acho.

– Como é apressado, que horror! Vou lavar as mãos.

– Agora não. Depois.

– Tem de ser já.

Sem se confessar deprimido, o herói exibiu-se no espelho, admirou as suas graças. De frente e de perfil, erguendo a aba da camisa — grande cadela, deixa estar, ela me paga!
Ivone saiu do banheiro, soltou a anágua, pisou sobre ela — nua, cigarro na boca! Desviou-se mais uma vez do abraço:

– Não tira o sapato?

Foi sentar-se na cama, acendeu novo cigarro na brasa do outro.

Nelsinho livrou-se do sapato. Trêmulo, beijava-lhe o braço, o pescoço, a orelha — lembra-se, querida, a noite na varanda?

– Cuidado. Eu te queimo.

Fumava sem pressa, a boca feroz, olho no teto.

– Sossega, meu bem. Olha a cinza na colcha.

Ergueu-se no cotovelo, amassou o cigarro no cinzeiro. De repente envolveu-o num abraço apertado. Sem explicação, deitou a gemer alto: Ai, ai, ai! Empurrou-o, sacudiu a cabeça:

– Bonito o teu olho esquerdo!

Agarrou-o com violência, entre ais lancinantes. O rosto afundado no cabelo, Nelsinho espirrou duas vezes.

– Que foi, bem? Resfriou?

– A velha asma.

Sem aviso, a defender-se com unha e cotovelo:

– Me machucando. Trocar de posição. Mais para baixo. De mau jeito.

Não desmanche o penteado.

Ele seguia as instruções, frustrado e miserável. Ivone enlaçou-lhe o pescoço e beijou-o, a gemer fora de tom. No meio do beijo, estremeceu a pálpebra, aos poucos abrindo o olho. Fixou-o no fundo da pupila, franziu a testa. Nelsinho começou a resfolegar, lavado de suor frio.

– Nervoso, bem? — melíflua, suspirou a bela.

Em desespero, fechando o olho, tornou a beijá-la: boca escarninha, cheia de dentes. Fio de baba escorreu no queixo, ela desviou o rosto:

– Incomodou-se hoje, não foi?

Inibido pela expressão de censura, o sulco na testa acusadora, ainda pediu:

– Me beije, querida.

– Não fique nervoso. Já passa.

– Você é que sabe — a voz sumida.

– Isso acontece.

Na separação dos corpos suados um estalo obsceno. Nelsinho deixou-se rolar de costas.

– Pois é. Acontece a qualquer um — com amargura medonha na alma.

– Bem quietinho — as palavras untuosas de doçura. — Como eu e meu marido.

Compassiva, afofou o travesseiro, que descansasse a cabeça. Alcançou lencinho na gaveta, enxugou-lhe a testa em agonia. Dois cigarros na boca, acendeu-os, estendeu-lhe um.

– Primeira vez? — a menina inocente na varanda. Não queria conversa, preocupado em não se distrair.

– Nunca me aconteceu.

– Será que das uvas? — os seios sacolejando com o risinho de pouco caso.

– Se a gente ficasse de pé?

De pé, não deu resultado: a visão medonha da nádega no espelho. Depois, sentados. E deitados retomaram os cigarros. Nelsinho de costas, ela apoiada no cotovelo, a soprar-lhe a fumaça no olho. Com a mão livre, Ivone ofereceu entre o indicador e o polegar o seio opulento; sem entusiasmo, ele sorveu o leite mais triste. O coração pulsava no travesseiro e rangia no colchão. Tornou o suor a escorrer-lhe da testa.

– Igualzinho ao Vivi.

Ivone aspirou fundo, soprou deliciada pelo nariz: uma vez com um homem. Abordada na rua. Na própria lua-de-mel. Nunca soube quem era. Em vez de indignar-se, recolheu-o no apartamento. Tristonho, Nelsinho observava o desejo afoguear-lhe as faces, rouca de perturbação. Engoliu em seco: esmagou a boca de beijos, com receio de que o empurrasse para rematar a frase. Entreabriu o olho a gozar o triunfo, notou a ruga incrédula na testa. Ai dele! a exaltação gloriosa esvaiu-se em derrota sem remédio.

– Não se canse tanto, meu bem. Pode ter uma coisa!

Concluiu em sossego a história, na verdade muito interessante.

– Com calor? Que abra a janela?

– Fique quieta. — E com humildade. — Não sei o que… A primeira vez.

– Meu maridinho é bem assim.

A vez do herói acender os cigarros. No silêncio, choro de criança no apartamento vizinho, um relógio ao longe deu as horas. Último clarão do crepúsculo na janela. Chegou até ele a fragrância enjoativa do incenso: Deus, ó Deus, por que não morri de asma aos cinco anos?

Ivone saltou da cama, os peitos bamboleantes, foi apanhar um fósforo na sala. Voltou com o pratinho:

– Não quer acabar as uvas?

Deitado, beliscou dois e três grãos. Chupou o sumo, devolveu a casca ao prato. Apanhou outro bago. Tão desconsolado, em vez de cuspir, engoliu a semente e a casca.

O vampiro de Curitiba – Conto de Dalton Trevisan

 

O vampiro de Curitiba – Conto de Dalton Trevisan

Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo, beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada — ai, querida, é uma folha seca ao vento — e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.

Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita — e são tantas. Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? O, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro aos seus pés. Por Deus do céu não lhe faço mal — o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado. Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou — oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho dabolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu? Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto — o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho… Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!

Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atraio pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama — acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.

Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho — rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. O bracinho nu e rechonchudo — se não quer por que mostra em vez de esconder? —, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.

Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco — ó mãe do céu! — desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico — conheci cada pai defamília!

Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova — à palavra alcova um nó na garganta.

Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.

Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta — como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.

Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão. Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. O morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer — de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?

Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar — nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, á Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca?

Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida — á curvas, ó delícias — concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro — os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo — beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo.Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz.