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sábado, 3 de dezembro de 2022

O herói perdido – Conto de Dalton Trevisan

 

O herói perdido – Conto de Dalton Trevisan

Essa criatura não me tira os olhos. Coragem da fulaninha, acompanhada como está! Verdade, alguns tipos não ligam. São eles que as empurram nos braços do outro – isso os excita. Acabei o meu caso com a Lili, não sei se sabia. Quero descanso por algum tempo. Não olhe agora. Me comendo com os olhos. É aquela, sim, na mesa do fundo.

Não te conto nada. Meu velho, a Lili foi uma experiência. Quando a conheci não sabia quem era.

Apresentados numa festinha. Assim que lhe apertei a mão, adivinhei tudo: úmida e quente. Aquele olhar – corruíra de asinha quebrada – inquieto e subentendido. No meio da frase a voz quebra-se num soluço… Olhar desconfiado, com seu segredo. Como se não desse a pinta. No toque da mão, no arrepio da pálpebra, no próprio rebolado. Uma abre o jogo: Adoro o tipo forte, que amassa na cama, que dá na cara – é certo, gosta de ser maltratada. Outra é preciosa: fala pausada, gesto manso, o anel do dedinho apontando isso e aquilo. Acompanhada de velhota, mãe ou tia, da qual beija a mão trêmula. Ou de coleguinha feia, na esperança que você diga: Veja a Lili, um coração de ouro.

Os olhos assim de anemia perniciosa. Não piscam, crescem, crescem a fim de engolir. Lili do tipo difícil, finge que é. Convidou-me a ir no dia seguinte ao seu apartamento. Entre, sente-se aqui. Mais perto, não mordo. Ai, meu velho, sou herói perdido. Não te conto nada (tosse). Tomar um xarope de agrião. Então expliquei: Não sou disso, Lili. Eu sei, eu sou viva – e molhava dois dedos na boca para colar a franjinha. Ai, como é gostoso o amor. Gostoso? Sim. É maravilhoso. Visita de cerimônia. Nada houve entre nós. Na porta, ela me envolveu o pescoço – nua debaixo do quimono de seda. Quis me beijar, acendi logo um cigarro. Horror de beijo de língua, preciso cuspir – não na frente dela, claro, não tem culpa – para tirar o gosto. Soube que teve um caso com fulano. Não queira negar, Lili. Mentira daquele safadinho. Não sou o que está pensando – se o meu homem souber ele me mata. Não tem medo? Imagine se alguém vai contar. Ai, ele me mata. Ah, Nelsinho, como você é forte – eu não pareço, não é? Me ofereceu cigarro de maconha, desconfio que é viciada. Louquinha, quer beliscar, gosta de morder – olhe o resultado (o rosto chupado, uma espinha no queixo). Desde pequeno fui assim. No olhar das primas eu descobria a paixão. O drama de ter sido bonito demais. (Ora, você ainda é, Nelsinho, ainda é.)

Por este retrato pode ver. Aos cinco anos, em roupinha de marinheiro. Lili me deixou quase doido por causa deste retrato. Bebia e depois se arrastava no tapete para que eu vestisse a farda. Uma de marinheiro, ela mesma improvisou. Imagine só – um marmanjo deste tamanho! – de calça curta e gorrinho, a fita em legenda prateada. Sonhava em voz alta, eu não podia dormir. No sonho ela que estava de marinheiro. Não te conto nada. Embalada no bercinho pelo maestro Carlos Gomes. O maestro de fraque e botina com polaina de veludo, sabe quem era? Um sátiro disfarçado de músico. Que a despia com luva de couro, sofria de erisipela no dedinho torto de velho. Não me pergunte o significado. Ela se recusou a contar – iria ficar chocado.

Me olha, a safadinha, se estivesse nu. Não sei o que vê (exame demorado no espelho da parede). Parece que sou o tipo. Lili se roía do meu sucesso entre as amigas. No cinema ficava me espiando em vez de prestar atenção ao filme – olha para a tela, minha filha, depois se queixa que não entendeu. Não se vire, pelo amor de Deus. O tipo já reparou. Grisalho, ar tão distinto. Muita criatura prefere o pai de família, acho que é insegurança. Lili me confessou a primeira experiência. Um pobre gordo, não sei quantos filhos. Tanto a perseguiu, deixou quase louca. Para se ver livre, a coitadinha acabou aceitando. A mulher soube, exigiu satisfação. Você escolhe entre mim e essa. Já escolhi, anunciou o pai de família. Na mesma hora despediu- se dela e dos quatro filhos. Mais tarde Lili o abandonou – um velho de cinqüenta anos! Ele ameaçou: Se não me quer, só posso morrer. Respondeu a bichinha: Pois que morra. Dias depois, o tipo se suicidou: cortando o pulso, bebendo veneno, abrindo o gás. Quando soube, ela comentou: Bem feito! Eu, hein, com meu marinheiro?

Acertei pelo velho as contas com ela – não deve tratar bem essas criaturas, ainda que o deseje. Olhe a bichinha provocando. Doida de fazer isso na frente do tipo. Quando uma se agarra a você, não o deixa para o resto dos dias. Todas iguais, furiosas de ciúme: Não gosta de mim. Não é mais o mesmo. Onde você foi? Olhou para outra. Se eu demorava, ia me esperar na porta. Bebia no mesmo copo, no lugar da boca. Não suporta tomate, queria comer, entre engulhos, só porque eu gosto. Para me excitar, despia-se diante da janela – no prédio vizinho todos os tarados de Curitiba se agarravam aos binóculos.

De noite gemada com vinho branco. Pela manhã, maçã assada servida na cama – por que não deixa de beber, querido? Não chateia, Lili. Deixe você de fumar. Ah, só me quer para uma coisa. Exibia a cicatriz do pulso, com diversos pontos. Se você me abandona, juro que me mato. Antes escrevo uma carta aos jornais – e saia nua do banheiro rebolando na rumba com a toalha na cintura.

Na esperança de ressuscitar o amor perdido, pede para apanhar. Judie de mim, meu amor. Toda bicha gosta de ser castigada. Não tapinha leve, bofetão de cinco dedos. Deixe-a se lastimar que, cara inchada, não pode ganhar para você. Deixe estar, nunca se desculpe. Se ela perde o respeito, meu velho, está acabado como gostosão.

Contos dos bosques de Curitiba – Dalton Trevisan

 

Contos dos bosques de Curitiba – Dalton Trevisan

NELSINHO encostou a porta, encurralada a moça no canto:

– É hoje.

Roçou a sombra do lábio, a espinha na asa do nariz. Ela voltou-lhe a face: beijou-a ferozmente na boca.

Fechou a porta, empurrando-a com o pé. Certa que iriam ficar nos toques e blandícias, pendurou-se ao seu pescoço. Pousou a mão no peitinho, ela se encolheu, vergonha do seio pequeno? Era dona experiente, sem provocá-la não conseguia nada:

– Duvido seja carne – é borracha!

– Não faça isso. Vem gente. – Suspirosa, pesando cada vez mais no seu ombro. – Se vem gente?

O herói estendeu a mão, deu volta à chave:

– Vem não.

Arquejante, estalou os dois colchetes, ergueu lhe a blusa. Ela que baixou o sutiã. Surgiram dois bocados cor-de-rosa:

– Nunca vi coisinha mais linda!

Ai, mãezinha do céu, aquilo sim era seio – dois de uma vez, sem mentira.

Se apertasse o biquinho espirrava leite?

Brasão de família, ela confidenciou que o da mãe era mais bonito.

– Depressa. Vem gente.

Risinho abafado, queixou-se de cócega.

– Que maravilha – a mão cheia, ele sopesava o fruto. – Ó perfeição da natureza!

Ares de distraída, olho ausente no teto:

– Sou nervosa. Hoje estou fria.

– Como é que você gosta?

– Sem inspiração eu não posso.

– Ah, é…

Beijava-a raivoso, lábio inchado de mordida. Ela titilou a língua no céu da boca. O herói, sem sair do lugar, descreveu duplo salto mortal.

Deslizou a mão no joelho, debaixo da saia cinza. Magra, usava anágua.

Assustadiça, arregalou o olho:

– Não. Não. Aqui não.

– Seja boba.

Conversinha em sussurro, na ânsia louca do mais cobiçado prêmio da terra.

– Querido, pode vir alguém.

Na última resistência, vencida pela surpresa. Levantou-lhe a anágua e viu

– o que ele viu? Babados, brincos e rendas da ilha da Madeira!

– Ai, você me machuca.

Da vacina contra varíola, queixou-se de íngua no braço.

– Já faço benzedura de íngua.

A bela soltou o botão da saia e correu o fecho. Agora de blusa e anágua. Sem blusa. Sem anágua, desfeita aos pés. Magrinha e branca, dava pena – deitou-a no sofá de couro vermelho.

– Espere, meu bem.

Ela derrubou o sapato, raspando na beirada o calcanhar. De joelho no tapete, Nelsinho babujou-lhe o seio.

– Me olhe. Abra o olho.

Toda trêmula, escondeu o rosto no seu ombro:

– Sinto vergonha. Gemido abafado de terror:

– Tenha pena de mim!

– Juro que…

Quem me dera um espelho, uma almofada, um anel mágico.

-… não faço mal.

Sem inspiração, a bela enterrou-lhe a unha no pescoço:

– Me beije. Ai, meu amor – e rilhando com fúria os dentes. – Ai, me beije.

Na pontinha da orelha – Conto de Dalton Trevisan

 

Na pontinha da orelha – Conto de Dalton Trevisan

Nelsinho abriu o portão, equilibrou-se nos tijolos soltos e, diante da porta, conchegado no saco de estopa, onde limpava os pés, deu com o Paxá. Tarde o cachorro descobriu que era ele, havia rolado os três degraus com o pontapé. Velho e doente, nem rosnou, apenas gemeu de dor; tremulo, arrastando a perna, perdeu-se no fundo do quintal. O rapaz bateu na porta e, sem esperar, entrou na cozinha deserta. Ouviu as vozes do rádio e, pontinha de pé, dirigiu-se para a sala.

Do corredor espiou a velha na cadeira de balanço, tigela erguida ao peito, a engolir com avidez o caldo de feijão. Imóvel à porta, ele não a tinha enganado: a velha sorvia ruidosamente a sopa, sem deixar de seguir a novela. Nada que denunciasse a atenção – nem piscar de pálpebra, nem arfar de narina, escancarada a boca quando a colher ainda na tigela -, sabia de sua presença desde que saltara do ônibus na esquina. Sob a ladainha dos atores percebia o chio do sapato na areia, o leve toque na porta. Jamais lhe deu as costas – não seria ela, velha matadora, quem se descuidasse do touro. O herói espreitava o dia em que a surpreendesse no sótão, à beira da escada…

– Boa noite, dona Gabriela. Já veio a Neusa?

– Trocando de roupa. – E segundo a regra do jogo: – Que susto, meu filho, me pregou! – e a colher raspava o fundo da tigela. – O Paxá, coitado, não tem força de latir.

Aviso de que não subestimasse as velhas matadoras: sabia do pontapé no guapeca do coração. Depositou a tigela na mesa do lado. Mão trêmula, alcançou o copo.

– Tomando sua cervejinha, dona Gabriela? Expressão obscena de gozo, bebia de olho fechado.

– Ganhei do Noca.

– A primeira?

– É, sim.

– Acabou a garrafinha de rum?

Bigode de espuma na boca encarquilhada.

– Fale baixo, a Neusa escuta.

Exibiu entre as raízes podres o último canino amarelo.

– Um restinho só.

– Que tal mais uma?

– Minha perdição é você, meu filho. Emprestada, hein? Faço questão de pagar.

– O Zezinho não aliviou a carteira?

– Nem queira saber.

Suspiro nas entranhas da velha, que emborcou o copo. Apressou-se o rapaz em servi-la.

– Bem que escondi – e deu um arrotinho. – Essa tosse. Quero ver se descobre.

– Tem muito dinheiro, não é?

A velha girou o rosto – não desvie o olho, conde Nelsinho, que está perdido.

– Ai de mim. Tivesse dinheiro, estava gemendo e sofrendo nesta cadeira?

Pensa que tenho, é?

No buço da velha secavam as bolhas de espuma.

– Quer outra garrafa?

O dedinho inchado de nós catou fiapos da saia.

– Conte para ninguém, meu filho. Senão eles escondem. Não me dão um gole.

– Fique descansada. É segredinho.

– Cuidado, a Neusa.

Ele virou-se, não disfarçou a careta de desgosto.

– Que foi, meu bem?

– Esse vestido.

Até que engraçadinho, xadrez azul e preto.

– Que é que tem?

– Sabe que tenho pavor.

– A virgem há que fazê-la rastejar. Lavar meu pé, enxugá-lo no cabelo perfumado.

– Quer que mude?

Alguma vez iria enfrentá-lo, não hoje:

– Bobinha de mim.

Neusa ergueu-se para beijá-lo. Ele voltou o rosto e, franzindo a sobrancelha, designou ali a múmia, pescoço torto a fim de aproveitar a última gota. A garrafa vazia deixou a velha amarga. Mal o percebeu instalado na cadeira:

– Ai, meu filho. O que é a doença. Deus te livre sofrer como eu. Velho pode morrer, ninguém liga.

Cruz na boca, ó diaba agourenta.

– Disse bem, dona Gabriela. Cadê o pessoal?

– Lígia no cinema com o Artur.

– E o Zezinho?

– Acha que podiam ir só os dois? Afogá-la no barril de rum – ela e o chantagista do Zezinho.

– Não tem medo de ficar sozinha?

Ela reclinou-se na cadeira, à mostra o tornozelo inchado – um labirinto de grossas varizes roxas.

– O velho sempre só. Nem queira saber o que é viver assim. A ninguém desejo o que sofro. Eu que sei. Isso não é vida. Deus me perdoe. Deus não existe. Se existisse, me deixava tanto sofrer?

Faraó sentado no sarcófago, crispava no joelho pontudo a mão transparente. Ali grudadas duas, três moscas.

– Justo cada um pague os seus pecados. Não eu, que nunca desejei mal. Me matei de bater roupa no tanque. Gastei os dedos de esfregar a chapa do fogão. Perdi os olhos de costurar à noite. Se alguém devia sofrer não eu – era o Carlito. Devia ter acontecido para o Carlito.

– Ele não morreu?

– Levou uma vida feliz. E não sofreu para morrer. Os dias bebendo com as vagabundas. Me arrebentei de trabalhar, condenada a esta cadeira. Ele se regalou e morreu na força do homem.

– Morreu de quê?

– Tumor na cabeça. Sem ninguém. Pedindo o meu perdão. Que o fosse ver na hora da morte. Rezei no velório, isso sim. Perdoar é que não.

Mão no bolso, Nelsinho batia-se pela saleta, encurralado. Fingindo admirar a Santa Ceia, careta medonha para o papagaio pesteado. Apontou- lhe espingarda imaginária na nuca. Se bem não espantasse as moscas, ela coçou o alvo no pescoço. – Me ouvindo, meu filho? Não queira ficar igual a mim. Fui moça feito você.

Lá estava a praguejá-lo, rainha louca. Bem feito, castigo do céu.

Sempre a falar, dirigiu-se à escada, abriu a porta da despensa. Um passo na escuridão, dobrou a cabeça e, sem acender a luz, afastou as latas de açúcar, feijão, arroz, desentranhou outra garrafa.

– Reze por mim, meu filho. Não sei o que é dormir. Sentada na cama, à escuta… A bulha do morcego. Um grilo preto no canteiro de couve. Lá no degrau os dentes do Paxá estalando. Se não é a cervejinha…

– Não se trata com médico?

– Única esperança é um milagre.

Fez-se o milagre: Neusa assomou à porta. Num salto o rapaz agarrou-lhe a mão. Atravessando o corredor, arrastou-a para a sala vizinha; primeiro exibiu a língua para a velha, entretida em derramar a bebida sem fazer espuma.

Tirou o paletó, estendeu-se com gemido no sofá. Neusa fechou a janela – Zezinho, oito anos, era o olho da diaba. Ao erguer o braço, a blusa branca revelou nesga de carne: sei que não devo, muito magro, uma tosse feia – se não me cuido, nasce cabelo na palma da mão. A bela sentou-se na ponta do sofá, ele cruzou os pés na mesinha.

– Por favor, Neusa. Nunca me deixe só com ela. Para aguentar tua avó precisa ser santo. Por que não serve vidro moído na sopa?

– Fale baixo. Ela escuta.

– O rádio ligado.

– Ela entende através da parede.

– Bem desconfiei. Ouviu o pontapé no Paxá.

– É bruxa.

– Mudá-la para o sótão. Acaba rolando da escada.

– Não diga bobagem, querido. Chega dessa velha horrorosa.

– Que você fez?

Abriu os braços no espaldar. Neusa apoiou a cabeça no seu ombro.

– Trabalhei.

– Faz tempo que chegou?

– Pouco antes de você.

– Teu patrão paga extraordinário?

– Nem um tostão.

– Não quis se fazer de engraçadinho?

– Seja bobo, querido. É casado.

– E daí?

– Tenho noivo particular.

– Como é que ele sabe?

– Você nunca foi me esperar?

– Que foi que falou?

– Achou você muito simpático. Até pergunta quando são os doces.

Ah, os doces, e? Esses doces, quem vai comer é o Paxá. Ela aninhou-se no peito e, erguendo a cabeça, beijou-o na pontinha da orelha.

– Tenho de esperar muito, querido? Não posso com essa diaba.

– Faça isso não. Todo arrepiado.

A moça prendeu-lhe a cabeça nas mãos, deu um beijo frenético: a língua se oferecia no lábio entreaberto.

– Não para de chupar bala de hortelã.

– Quer que jogue?

– Mania essa!

A oportunidade de me salvar: fazer uma cena e adeus, beleza!

– Não fique bravo, meu bem.

Com os olhos procurou um lugar: o vaso de violetas? A janela, fechada.

Fitou-o chorosa.

– Que eu engula?

– Se gosta de mim, engole.

Deglutiu a bala inteirinha. Doeu, uma lágrima saltou de cada olho. Esta não me escapa – é minha.

– Falei brincando.

– Tudo que você quiser.

– Tudo, Neusa? Tudo mesmo? Ofereceu-lhe, sim, a boca inchada de beijos.

Crisparam-se as mãos do rapaz no espaldar – sei que não devo, é loucura. A velha na saleta, assim não adianta xarope de agrião. De leve afagou o braço lisinho. Sabe o delírio de uma carne em flor? A mão escorregou – sou fraco, Senhor, não mereço – até empalmar a pêra descascada do seio. O que é prender um pintassilgo no alçapão? O herói apertou a pálpebra: o biquinho do pintassilgo beliscava a mão do dono.

Esmagada pelo abraço, a moça libertou uma das mãos e introduziu-a sob a camisa – cinco patinhas úmidas de mosca a arrepiá-lo da nuca à ponta do pé. Derretido de gozo, comprimiu segunda vez a pálpebra – uma cóceguinha no céu da boca, prestes a uivar.

Estalavam as molas do sofá. Ó Deus, se a velhota, de repente? Sentou-se penosamente, suportando o peso da moça. Ofegante, respirou de boca aberta, dedo tremente abriu a blusa. Afastou-a do sofá para desprender a blusa, espirrou o sutiã no colo da moça. Sempre nova a descoberta do pequeno seio, metade exata de limão – e precipitou-se para beijá-lo. Diante do peito alvacento de pombinha as dores do mundo perdiam o sentido.

Mal o tempo de esconjurar a velha – afogado que afunda terceira vez a cabeça – e rolou, e rolaram os dois pelo sofá, pequeno demais para os acolher. Não podiam deitar-se, suspendeu-a pela cintura, ficaram de pé.

Largou-a um instante, com repelão desfez-se da camisa. Beijou a bela que desfalecia, filhotes famintos roubando alimento um da boca do outro. Mão frenética nas prendas deliciosas, encontrou a lasca da saia, libertou o único botão. Aos poucos a saia preta devassava a calcinha rósea. Um passo atrás, a saia deslizou ao pé da moça: Neusa ai, Neusa! Cheia de aflição, gemeu baixinho – Por lavar, por favor! Desesperado – tomara a velha pense que é o Paxá -, ergueu-a com as duas mãos, que ficasse do seu tamanho. Ela entendeu, alçou-se na ponta do pé, um coube direitinho no outro.

O herói pairou a nove centímetros do chão. Ao tatalar da asa da loucura: Qual é teu nome? Responda depressa: Quem é você? Depressa — e antes que pudesse, dona Gabriela entrou na sala.

Separaram-se, cambaleando cada um de seu lado. O coração de Nelsinho disparou a mil por minuto. Uma veia, de que nunca suspeitara, latejava na testa a ponto de rebentar: Me acuda, mãe do céu.

– Que é… a senhora quer, vovó?

Da garganta de Neusa – não era a sua voz. A velha recolheu o braço estendido, balançou a cabeça em silêncio, olho bem aberto. Na teia escura de rugas lampejo azul de desconfiança.

– Por que tão quietos?

O herói estupefato diante da velha que os enfrentava sem piscar.

– Por que está de pé, menina?

– Eu… trocando a lâmpada.

– O foco queimou?

– Agora mesmo.

– Vocês se comportaram? O Nelsinho é de confiança. O que esperando, minha filha? Pegue um foco na despensa.

Neusa pisou o monte de roupa. Ao alcance da megera, junto da porta. Agora estende a mão, agarra a menina – tenho de fazer uma carnificina. Quase um grito, para que o olhasse:

– Quer que eu – a voz partiu-se, continuou sem fôlego – outra cervejinha?

– Muito gentil, meu filho. Daqui a pouco… Se soubesse. Tão só, lá na sala. Uma dor fininha no coração. Pensei que era o fim.

A moça tornou de mansinho, o seio na mão:

– Aqui o foco, vovó.

Descalçou o sapato, subiu na cadeira:

– Pronto.

Sentou-se ao lado do rapaz, que enxugava o suor frio da testa. Sempre a vigiar a velha, quase sem vê-la, óculo embaçado. Com um suspiro, a anciã afundou-se na poltrona, repuxou o xale negro polvilhado de caspa.

– Ah, minha filha, você soubesse… Contava para o Nelsinho – e o pé sacudido por tremores, um pangaré que espantasse as varejeiras. – Pagando o pecado de outro. Ah, meus filhos, o que é sofrer como eu – e deu um arroto.

A bruxa de pilequinho.

– Mais uma garrafa, dona Gabriela? Mil garrafas não a fariam calar a boca.

– Gosto de você, Nelsinho. Como de um filho. Deus o livre e guarde da minha doença. Reze por mim.

Derrotado, baixou a cabeça, prendeu três botões da camisa,

– Não queira ficar como eu. Só eu sei. Isso não é vida.

Observando a avó cega e concordando com ela – Sim, vovó. Pois é, vovó. É sim, vovó – Neusa desabotoou um, dois, três botões e voltou a beijá-lo na pontinha da orelha.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Visita à professora – Conto de Dalton Trevisan

 

Visita à professora – Conto de Dalton Trevisan

Girando o pacote no laço do barbante azul, Nelsinho deteve-se diante do prédio esquálido. Conferiu o endereço no embrulho – o santíssimas mães de Curitiba! Ao longo do corredor sinistro, o bafio do lixo nos cantos. Que dona Alice não estivesse em casa – quatro da tarde, escolhida a hora de propósito – e, limpo no seio das famílias, deixaria o regalo com o porteiro. Livre para a sua dama dourada no bar dos marinheiros.

Aos trancos, arrastou-se o elevador ao segundo andar. Não fosse herói de caráter, esquecia o embrulho ali na porta e adeus, dona Alice. Gemeu baixinho – afinal, a primeira professora da gente, ensinara-o a ler, escrever o nome, as quatro operações – e apertou a campainha. Nenhum som do outro lado. Sabia o que era uma antiga professora, acha você o eterno menino de calça curta. Impossível dar o recado e despedir-se: o pacote era a maçã no primeiro dia de aula. Não o largaria sem que aceitasse um cafezinho e ouvisse os queixumes de solteirona. Vou tocar outra vez e, se não atender, caio fora. Apalpou o objeto – fofo, um cachecol? -, decidiu abandoná-lo na porta. Era tarde: chinelos cansados arrastavam-se em surdina. Duas voltas na fechadura – solteirona guardada a sete chaves.

– Como vai a senhora, dona Alice? Lembra-se de mim?

No corpo magro a cara gorducha, pisada de sono, olheira doentia. Pela fresta, a voz rouca, que a fisionomia era familiar, do nome não se recordava.

– O Nelsinho, de Curitiba. Seu aluno no grupo Tiradentes. Escancarou a porta e o sorriso de dentinho amarelo:

– Menino, como cresceu! Meu Deus, quanto tempo…

Um caco de velha – o piolho que se oferece ao machado do estudante. Surpreendeu-o fosse menor que ele. Bem se lembrava, arco-íris de braço nu com o quadro-negro ao fundo, cacho de glicínia azul perfumando a sala – ah, como era linda ao olho míope da infância. No chinelo de pano alcançava-lhe o ombro – o mesmo dentinho separado, a sombra de buço no rosto sem pintura.

– Sábado eu cochilo depois do almoço. Acanhada, alisou o negro cabelo, um e outro fio branco.

– Entregar este pacote. Dona Eponina que mandou.

– Mamãe sempre a abusar dos outros – apertou o embrulho nos dedos trêmulos. – Meia de lã. Muito gentil, Nelsinho. A mãe não sabe da invenção do correio.

Com olho de espanto:

– Então o Nelsinho! Um bonitão. Não precisa encabular. Meus alunos são os filhos que não tive.

Ele, quieto: é da velha professora falar demais.

– Sempre caladão? Não quer entrar?

– A senhora me desculpe. Estou com pressa.

– Deixe de cerimônia. Conversar um pouco. Saber de sua vida. Os colegas como vão? Nelsinho entrou na sala e, a porta aberta do quarto, avistou a cama larga de casal. Ela encostou a folha:

– Não repare a desordem. Levantei agorinha. Sentou-se no canto do sofá e foi respondendo. Maldição, esquecera a machadinha no outro paletó! – às perguntas sobre os colegas. Uma, casada, mãe de dois filhos – Virgem do céu, como passa o tempo! Outro, morto em desastre de avião.

– O de cachinho, Sérgio, seu preferido.

– Tinha raiva de mim, Nelsinho? Uma vez eu o botei de castigo. De joelho sobre grãos de milho, que horror! Bruxa pavorosa, não era?

A mais querida das bruxas pavorosas – intacta na memória, saia preta e blusa alvinitente de rendinha.

– Capaz de me perdoar, Nelsinho?

– Bem que eu merecia.

– Me conte. Os seus planos. Gostaria de ser médico?

– Não sei, dona Alice. Ando meio perdido.

– Bobagem, menino. Um rapagão feito você! Quantos anos tem?

– Vinte e um – exagerou um ano e, o carão purpurino de donzel aflito, de novo o aluno de mão pecaminosa no bolso. Disfarçando a perturbação, em tom dramático, o desejo de romper com a família. Ser ele mesmo. Dar as costas à velha cidade era nascer segunda vez.

– A vida inteira pela frente, Nelsinho. Pensativa, cruzou a perna – ai, quanto lápis o menino derrubara a fim de espiar-lhe o joelho roliço. Na coxa branca – ó mãe do céu – a famosa liga: preta e não roxa, como imaginava. Ai, naquele tempo ainda se usavam ligas… Não era tão idosa, dez anos mais, vinte que fosse.

– Nunca devia ter saído de casa.

– Arrependida, dona Alice?

– Menino, por favor. Não me dê senhoria. Deixa tão velha. Olhe, fazer um trato? Dois colegas recordando os anos de escola.

Sem se distrair com nenhum lápis, mal sentado no sofá, ouviu mais de uma hora os tempos que vão longe: não lhe serviu licor de ovo, ao menos um cafezinho.

Da casa para o emprego e do emprego para casa. Chamar de casa àquele apartamento sem ar, sem luz, sem sol? As tipas da repartição, vulgares e fáceis, uma promiscuidade horrorosa. Mocinha que vive só, dar-se ao respeito. Mãe do céu, como era difícil! Assediada a toda hora, em todo lugar. Homem? Um grande porcalhão. A moça esteja só, exibe ares de conquistador. Chegavam a bater-lhe na porta. Mal dormia, um ladrão debaixo da cama? Amigos não tinha. Noiva dois anos, o rapaz ganhava pouco, sem meios de casar. Cinco meses antes, transferido para São Paulo.

Tivesse ficado em casa, mas como podia? O escândalo com o diretor do grupo, senhor casado, fora inocente envolvida. Triste, com tosse: um ano no sanatório. O médico proibiu a friagem do sul.

– Ah, Nelsinho, você soubesse… Anoitecia, aquietavam-se os bondes.

Era sábado, apertou-lhe a mão:

– Doce alegria o encontro de um curitibano.

Interessado nos quadrinhos da parede – pinheiros ao pôr-do-sol -, sem interromper o monólogo do coração oco na casca vazia da cigarra. Alguns dias em casa para as bodas de ouro dos pais. Fim do ano, a licença suspensa no emprego. Natal, a pior época de estar só. Sozinha no apartamento, a alegria em todos os lares. Blusa nova e luva de crochê, estendida na cama, olho pregado no teto. Os bondes, a discussão dos bêbados, os vizinhos em volta da mesa.

– Esse teu noivo? Gosta tanto de você. Como é que a deixou?

A mãe dele, grande sirigaita, morria se o filho a abandonasse. Manhã seguinte, a bela abriu os olhos desesperada e chorou três dias, sem coragem de fitar-se no espelho, ir ao emprego, sair à rua. Sem lavar a pintura do rosto, sem cozinhar, passando a leite e bolacha Maria. Noite e dia a imaginar-se com a família. Sua alegria eram as visitas a Curitiba. Hóspede de honra, todos cuidavam de agradá-la. Era fevereiro – um soluço partiu a palavra, Nelsinho não desviou o olhar dos pinheiros – e só voltaria em dezembro.

– Não sabe quanto é feliz, menino. Encolhida no canto, fez-se ainda menor:

– Quando viaja?

– Semana que vem.

No silêncio, entre as frases, o gorgolejo das entranhas famintas.

– Largar tudo e cair na orgia. Em Curitiba falam de mim. Que sou de bacanal. Pobre de mim, uma vida de freira. Se meu noivo não se decide, eu perco a esperança.

Perseguida na repartição, as colegas recebiam aumento, ela se defendia das mãos imundas – todo patrão é porco. Em dúvida se o pai a aceitaria de volta.

– Alberto não se decide, eu perco a esperança. Capaz de uma loucura. O que as outras fazem. Boba, esperando carta do menino, agarrado à saia da mãe.

Piedade ou fome, Nelsinho acudiu:

– Tem algum programa, dona Alice? Se não tem, quer jantar comigo?

Mordeu a língua, arrependido: pouco dinheiro, não podia gastar com a professora. No Rio para uma bacanal com a dama pintada de ouro.

– Pronta em cinco minutos. Fique à vontade. Ouvir música?

Ele deu alguns passos pela sala em penumbra. Cubículo escuro: a cozinha. Na mesa, copo de leite coberto por um pires. E o prato vazio: nem lima só migalha. Dona Alice surgiu à porta do quarto.

– Uma condição: pago a metade.

– A senhora é minha convidada.

– Que mal tem? Aqui é costume.

– Aqui pode ser. Não de onde eu venho.

– Bem paranaense, hein? No terceiro disco, ela voltou:

– Estou pronta.

Toda de azul, luva de crochê, salto alto. Uma fita no cabelo, não se pintara. Sem brinco ou pulseira – não tinha anel de noiva?
– Quer ir ao banheiro?
Bem paranaense, embora com vontade, o herói recusou.

– Tem restaurante por perto?

– Restaurante é que não falta.

No elevador desceram com um sujeito que, mão no bolso, ficou a encará- la de alto a baixo.

– Reparou no tipo? O prédio é meio suspeito. No quinto andar uma colega promovia festinha. Sugeriu restaurante onde ia com o noivo. Os automóveis em corrida louca e, para atravessar a rua, segurou-lhe o braço. Ao manso toque, Nelsinho examinou-a de relance – gesto natural de defesa. Na calçada, Alice retirou a mão.

– Envergonhada do triste papel. Chega de falar de mim. Conte alguma coisa. Como vai de namorada?

Primeiro assunto que o interessava: a catástrofe da última paixão! Nunca mais gostaria de outra mulher.

Oito horas de uma noite quente de fevereiro: casais à sombra das árvores, escondidos nos portais, ao longe deitados na praia.

– Cuide-se, menino. Aqui dá muita vigarista. O olhar dos outros, chocados da diferença de idade entre Nelsinho e a companheira, confundindo-os com um par de namorados. O senhor gordo atalhou o caminho.

– O rapaz é da minha terra. Veja o ar saudável. Apalpando-lhe o braço, o sujeito em voz baixa:

– Olhe, querida. Não faça isso, minha flor. A bela ria-se – o brilho suspeito do dentinho de ouro. Outra, não a moça infeliz do apartamento, debruçada no ombro do gordo, muito íntimo.

– Mais respeito, Moreira. Olhe que é do Paraná. O menino pensa que sou bandida.

O herói mordeu-se de raiva. Com ares protetores, ah cadelinha.

– Paciência, Moreira. Não pode ser. Que tal amanhã?

Luz vermelha acendeu na testa de Nelsinho, bruxuleou um momento, apagou-se.

– Vamos, meu bem.

Ela o chamara meu bem. Única mulher que, aos oito anos, meu bem o chamara, nunca mais esqueceu.

No restaurante, Alice beliscou a carne branca do frango. Sem apetite, jantava a hora tardia, essa vida de cidade grande.

– A senhora…

– Me chame de você.

– Mais um pedacinho. Muito magra… Cala-te, boca! Era tarde: olho cheio de terror.

– Magra, não é? Me achou magra, não é? Não tenho passado bem. Uma gripe muito forte.

– Outro conhaque. Não bebe nada?

– Suco de laranja. Fazer companhia.

A bela evocou o noivo. Nelsinho bebericava mais uma dose. Alice acabou aceitando uma cerveja. Falava de futebol, Alberto era fanático. Aprendera tudo a fim de conversar com ele. Triste consolo de sua ausência, no domingo ouvia os jogos de São Paulo.

– Não fumo, obrigada. Me faz mal – e tossiu no lenço machucado entre os dedos.

Outra vez, cala-te boca. Sentimento delicado, a saúde delicada: ano inteiro no sanatório. Nelsinho sonhava com a orgia do doente, a febre o excita. Marcada na cidade natal: moça fraca do peito, falada demais para casar. Bancando a virgem: o tal noivo devia ser amante, quem sabe gigolô. Ai, ai, estou de pileque.

– Pronta?

O programa era o bar dos marinheiros. Chamou o garçom.

– Vamos dividir.

– Que é isso, Alice? Senão me ofendo. Refizeram o caminho, ele um pouco na frente, tomado de pressa. Ofegante, Alice falava menos. Deixo-a no elevador, nunca mais me vê. Empurrou a porta, bem agitado:

– Que horas serão?

Ela espiou o relógio de pulso:

– Onze e meia. É cedo. Entre um pouco. Uma caminhada e tanto.

Brilhou o foco na testa e não se apagou. Pena, tão abatida, a cara balofa no ressequido corpo.

– Um cafezinho. Depois livre de mim. Abriu a porta, já descalça:

– Mulher é boba. Só usa sapato apertado. Foi botar o chinelo e, no caminho, um disco na radiola.

– Entre aqui. Ouve melhor.

A bela dirigiu-se ao banheiro. Ele sentou-se na beira da cama. Alguns discos ao pé da radiola: Para a querida Alice, com o amor do… A querida Alice, do seu querido… Alice, sempre querida, com o amor do … Na capa, em cada dedicatória um nome diferente.

Ela tornava do banheiro, sem o casaco. Ó não, pintara o lábio carnudo. Uma senhora gasta e cansada, a mãe da professorinha – enganar a filha com a mãe seria trair a mais doce lembrança da infância.

Perturbada, Alice encontrou o seu olhar. Arrastando o chinelo, abriu a cortina, debruçou-se na sacada.

– Venha ver.

Grupo de meninos ensaiava marchinha de carnaval.

– O tempo de professora foi o melhor de minha vida.

Sacada estreita e, ao indicar um dos pretinhos, roçou-lhe no braço o peito mirrado.

– Ai, que frio! Toda arrepiada.

– Dormir com esse barulho?

Mão na boca, sofreu acesso de tosse. Em Curitiba a notícia de que desenganada. Durante o jantar, tossiu mais de uma vez, sem largar o lencinho. Arregalada de pavor quando a achou magra. Enxugando as lágrimas, o barulho da rua não era nada. O inferno eram os bondes. Primeiros meses debatia-se na cama até de manhã. Com o tempo a gente acostuma. As vezes um sedativo, não queria se viciar – muito nervosa.

– Como estou arrepiada…

Entrou no quarto para mudar o disco. Nelsinho cuspiu na rua. Já que não fazia o café:

– Preciso ir.

Ocupada com a radiola, nem ergueu os olhos:

– Alguém esperando? Se não tem, fique aqui. Sem responder, Nelsinho insinuou-se no banheiro – estou perdido, e agora? Duas voltas na chave e urinou, cuidado de não fazer barulho. Como se lançar da janela, se não havia janela? Bonitão no espelho, assim calado, deu um arrotinho: puxa, estou bêbado. Abriu o armário e, atrás do pote de creme, uma caixa de preservativo. Boca amarga, cigarro demais: esfregou a pasta nos dentes. Ensaiou uma frase de despedida. Abro a porta, aceno de longe – Adeus, beleza! e me atiro pela escada.

Abriu a porta e estacou: a luz apagada. O quarto na penumbra vermelha do painel da radiola, um disco em surdina. Imaginou Alice na sacada. Ou na cozinha preparando o café. Então ela se mexeu na cama.

Alguns passos, hesitante no meio do quarto. Outra vez, ela se agitou na cama. Devia-lhe alguma coisa pelas primeiras letras? Arrastava o pé, receio de tropeçar no tapete: não havia tapete. Calcou objeto macio, o pacote das meias, ainda fechado. Na sombra distinguiu a cama, os dois travesseiros, a dona inteirinha nua.

Suplicante, estirou-lhe os braços, crispando os dedos no vazio. Irresoluto, o moço apoiou o joelho na cama.

Chio de triunfo no peito, Alice prendeu-lhe as mãos na nuca. Rosto sanguinolento à luz mortiça, a boca aberta de vampiro descarnado e lascivo – sem poder esperar, a ponta da língua dardejava entre os dentes. Ele se deixou beijar – o soluço azedo de cerveja -, adeus para sempre ao menino. A agulha recorreu o último sulco e passou a arranhar o disco, sem que nem um dos dois a desligasse.