quarta-feira, 30 de julho de 2025

Os relatos de um dos primeiros historiadores do Brasil do século XVIII, Frei Gaspar Madre de Deus, filho e neto de bandeirantes, sobre a vida que eles levavam, a realidade da época, e as críticas às fábulas dos jesuítas.

 Os relatos de um dos primeiros historiadores do Brasil do século XVIII, Frei Gaspar Madre de Deus, filho e neto de bandeirantes, sobre a vida que eles levavam, a realidade da época, e as críticas às fábulas dos jesuítas.


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Os Caboclos, conhecedores da terra, renegados, rebeldes e bastardos:
"Mamelucos chamam no Brasil, aos filhos de branco com índia, ou de índio com branca. Ignoro a origem desta denominação, e não creio que fosse a assinada pelo Autor, por me parecer, que nestas partes se ignorava a história dos soldões do egito, quando se principiou a falar por aquele modo. O que sei com toda a certeza, é que os jesuítas castelhanos aborreciam sumamente os mamelucos dos paulistas, e a causa, que eles para isso tinham era a mesma, que nos tais paulistas concorria, para os amarem com excesso.
Eram os mamelucos os melhores soldados dos exércitos paulistas assoladores das missões: eles muitas vezes foram os chefes das tropas conquistadoras, e por eles mandavam seus pais atacar os índios bravos, por conhecerem a suficiência destes filhos bastardos, criados na guerra, e acostumados ao trabalho, e por isso mais robustos, e mais aptos do que os brancos para suportarem os incômodos dos sertões. O seu préstimo, valor e também as suas vitórias deram ocasião aos jesuítas para os aborrecerem, como a instrumentos principais da destruição das suas missões. Devo confessar, que aos mesmos se atribui maior parte dos homicídios frequentes noutro tempo nas Vilas de Serra acima:
como eram gente rústica, desconfiada, muito sensível, e acostumada às guerras faziam pouco escrúpulo de tirar a vida a qualquer qualidade de pessoas, não só por mandado de seus amos, mas também por leves agravos, e alguns só presumidos."
"... O que admira, e o que talvez impediu, que os paulistas não tomassem o Paraguai em os princípios as suas medidas contra os mamelucos, é que estes não tinham necessidade de saírem do seu Distrito para viver em abundância, e para gozar de todas as comodidades da vida. Respira-se em S. Paulo de Piratininga um ar mui puro debaixo de um céu sempre sereno, e um clima mui temperado, ainda que por 24° de latitude austral. Todas as terras são férteis, e dão muito bom trigo; as canas-de-açúcar produzem bem; nelas se acham muitos bons pastos de criação de gado, e assim não por outro motivo, que pelo espírito de libertinagem, e pelos atrativos da pilhagem, é que eles por longo tempo correram com fadigas incríveis, e contínuos perigos, essas vastas regiões bárbaras, que despovoaram de dois milhões de homens. Sem embargo que nada é tão miserável como a vida, que eles passavam nos sertões, em que andavam ordinariamente, muitos anos seguidos. Um grande número deles pereciam, e alguns achavam na sua volta suas mulheres casadas com outros: enfim o seu próprio país estaria sem habitantes, se aqueles, que a ele não voltavam, não substituíssem os cativos, que faziam nos sertões, ou os índios, com quem tinham feito amizade.”
As críticas de Madre de Deus às falas reproduzidas e acusações feitas pelos jesuítas do Paraguai sobre os bandeirantes:
"As asseverações de Charlevoix, relativas aos trabalhos
dos moradores de S. Paulo nas suas conquistas, são verdadeiras, os
quais trabalhos, e fadigas melhor compreendeu este francês, do que alguns portugueses ingratos, e invejosos, que afirmam não serem dignos de prêmio os descobridores das minas, e sertões, com o falso, e escandaloso fundamento, de que os paulistas antigos se recreavam, e faziam gosto de discorrer pelas brenhas e terras incultas. Não falavam desta sorte os reinos, nem os brasileiros naturais de outras capitanias, que algumas vezes os acompanharam nas suas viagens dos sertões, os quais ordinariamente retrocediam do caminho, em tendo ocasião para isso, por se não atreverem a suportar as fomes e incômodos, que nele sofriam.
Também é certo, que os moradores da capitania de S. Vicente, principalmente os de Serra Acima, se esqueceram algumas vezes
das leis divinas e humanas, respectivas à inteira liberdade dos índios: mas é necessário confessar, que a esperança moralmente certa do perdão,e a experiência das condescendências com eles tantas vezes praticadas nesta matéria por interesses do estado, descobrimentos de ouro sumamente recomendados pela Corte aos paulistas, foi a causa principal de transgredirem as leis, abusando daqueles únicos casos em que as mesmas permitiam o cativeiro, ou a administração dos índios. Porém é certo também, que se os antigos habitantes da dita capitania foram até certo tempo repreensíveis a este respeito, não o foram menos os outros
portugueses das outras colônias brasílicas principalmente os do Maranhão, Bahia e Pará, como consta de alguns de nossos autores, e dos arquivos das mesmas, e das leis promulgadas em diferentes tempos sobre os mesmos índios. Há contudo uma circunstância que faz grande diferença neste caso: os paulistas tiveram desgraça (se tal nome convém) de se embaraçarem com os jesuítas do Paraguai e da sua capitania, e por consequência de ofenderem a toda sociedade, cujos os escritos voaram por toda parte a denegri-los à face do universo. Mas enfim o tempo veio a manifestar que estes mesmos jesuítas, que tanto clamaram a favor dos
indígenas da América foram os que na maior parte dela os tiveram em uma rigorosa sujeição.
O mais que Vaissette e Charlevoix referem contra os paulistas, são calúnias publicadas pelos sobreditos jesuítas, e também por alguns espanhóis, a quem eles destruíram as Cidade de Xerez, Ciudad Real, e Vila Rica, por julgarem que estavam situadas em terras de Portugal.
A existência da república de S. Paulo foi um segredo revelado aos estrangeiros por algum profeta falso, e oculto a todos os portugueses. Se eu não lera o que Vaissette, e outros autores franceses escreveram a respeito da capitania de S. Paulo, certamente não havia de acreditar, que em França no presente século se escreve com tanta falta de critério; e que homens ilustrados dão assenso a semelhantes imposturas. Não é só daquela capitania, e das mais do Brasil, que falam os mesmos autores com tanta falsidade e extravagância; é também de todos os
mais povos existentes fora da Europa polida. Relações falsas, pelas quais se guiam; ânimo de meter a ridículo, e de desprezar tudo o que não é conforme aos costumes franceses; e finalmente a presunção de querer decidir no gabinete aquelas mesmas coisas, que custariam a perceber-se com exames oculares, são cousa de tantos erros grosseiros que inundam a República das Letras.
Muitas vezes tenho advertido, que as fábulas respectivas
à capitania de S. Vicente, publicadas pelos estrangeiros nas suas histórias, todas, ou a maior parte delas, se originaram de algum fato verdadeiro, viciado pelos escritores. A esta classe pertence a impostura, de que os mamelucos sacudiram o jugo da autoridade divina, e humana, como se explica Charlevoix."
Gaspar Teixeira de Azevedo, melhor conhecido como Frei Gaspar da Madre de Deus, nasceu em 1715 em São Vicente-SP, e faleceu em 1800 em Santos.
De família bandeirante, era filho de Domingos Teixeira de Azevedo, coronel do Regimento de Ordenanças de Santos e São Vicente, provedor da Real Casa de Fundição de Paranaguá, e neto de Gaspar Teixeira de Azevedo, antigo bandeirante e capitão-mor da Capitania de São Vicente (1697-1699) e provedor dos reais quintos do ouro, e de Amador Bueno. Pertencia portanto às mais antigas famílias de povoadores vicentinos, sendo os seus pais proprietários de terras de cultivo de cana-de-açúcar e de arroz.
-Felipe de Oliveira

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