A Vila Alkinoar: Um Sonho Burguês Desfeito nas Ruas de Curitiba
A Vila Alkinoar: Um Sonho Burguês Desfeito nas Ruas de Curitiba
Em 21 de dezembro de 1916, sob o calor úmido do verão paranaense, o projetista Eduardo Fernando Chaves depositava no Arquivo Municipal de Curitiba os desenhos de uma das empreitadas mais distintas de sua carreira: o Projecto da Vila Alkinoar, destinado ao Dr. Eduardo Leite Leal Ferreira, uma figura de destaque na elite intelectual e profissional da capital paranaense.
Localizada na Avenida São Vicente — uma das vias de expansão urbana mais valorizadas da época —, a Vila Alkinoar não era apenas uma residência; era uma declaração de status, cultura e modernidade. Com 320 m² distribuídos em dois pavimentos, construída em alvenaria de tijolos, essa casa representava o ápice do conforto doméstico burguês em Curitiba no início do século XX.
Infelizmente, como muitos edifícios de valor histórico e arquitetônico, a Vila Alkinoar foi demolida — seu corpo físico desapareceu, provavelmente nas décadas de expansão urbana descontrolada do século XX. Contudo, seu espírito permanece vivo nos traços meticulosos de Chaves, registrados em duas pranchas de projeto preservadas em microfilme no Arquivo Público Municipal de Curitiba — um testemunho raro de uma era em que a arquitetura ainda dialogava com a dignidade, a proporção e o sonho de uma vida plena entre paredes bem concebidas.
O Cliente: Dr. Eduardo Leite Leal Ferreira
Embora os registros biográficos detalhados sobre Eduardo Leite Leal Ferreira sejam escassos, o título de “Dr.” e a encomenda de uma residência de médio porte — na verdade, de porte notável para a época — sugerem que se tratava de um profissional liberal de prestígio: talvez médico, advogado, engenheiro ou professor universitário.
Curitiba, nos anos 1910, vivia um renascimento cultural e institucional. A criação da Universidade do Paraná (mais tarde UFPR) estava próxima, e a elite letrada da cidade buscava expressar sua identidade por meio da arquitetura. A escolha do nome “Vila Alkinoar” — evocativo, poético, talvez inspirado em referências mitológicas ou literárias (Alkinoar, rei da hospitaleira Fráquia na Odisseia de Homero) — reforça essa ligação com o mundo das letras, do saber e da civilidade.
Para o Dr. Leal Ferreira, a casa não era apenas um abrigo; era um espaço de representação social, onde recepcionar convidados, criar filhos com educação refinada e viver com elegância eram partes integrantes do projeto de vida.
O Projetista: Eduardo Fernando Chaves em Plena Maturidade
Em 1916, Eduardo Fernando Chaves já havia demonstrado versatilidade ao projetar desde residências operárias em madeira até casas burguesas em alvenaria. Com a Vila Alkinoar, ele atinge um novo patamar de complexidade e sofisticação.
O projeto, apresentado em duas pranchas, inclui:
- Planta do pavimento térreo
- Planta do porão — um elemento de luxo e funcionalidade raro nas residências comuns da época, usado para depósito, adega ou área de serviço
- Croqui de implantação no terreno
- Fachada frontal detalhada
- Elevação do muro de fechamento — sinal de preocupação com a privacidade e a integridade do lote
- Corte arquitetônico, revelando a articulação vertical dos espaços
Esses elementos mostram um projetista atento não apenas à estética, mas à integração entre forma, função e contexto urbano. A alvenaria de tijolos, material nobre e durável, era a escolha natural para uma residência que pretendia perdurar — simbólica e fisicamente.
A fachada, embora os desenhos não permitam uma reconstituição fotográfica exata, provavelmente combinava elementos ecléticos com traços neoclássicos ou neocoloniais: molduras em torno de janelas, platibandas decorativas, talvez colunas leves na entrada ou uma varanda superior com guarda-corpo de ferro forjado — detalhes comuns nas residências da elite curitibana da época.
A Arquitetura: 320 m² de Sofisticação Doméstica
Com 320 metros quadrados em dois pavimentos, a Vila Alkinoar era generosa em espaço — especialmente considerando que a média das residências da classe média mal ultrapassava 100 m². Sua planta certamente incluía:
- Sala de visitas e sala de jantar separadas, sinal de distinção social
- Cozinha ampla, possivelmente com copa e área para empregados
- Quartos privativos para os donos da casa e filhos
- Escritório ou biblioteca, indispensável para um homem de letras como o Dr. Leal Ferreira
- Banheiros internos, ainda um luxo relativo em 1916
- Área de lazer ou terraço, aproveitando a vista da Avenida São Vicente
O porão, detalhado no projeto, era um recurso estratégico em Curitiba, cidade de relevo acidentado e clima úmido. Além de oferecer isolamento térmico, permitia armazenar alimentos, vinhos ou lenha — e, em alguns casos, abrigava a moradia da empregada ou do caseiro.
A implantação cuidadosa no terreno e o muro elevado com tratamento estético indicam que a casa não apenas ocupava o lote, mas o dominava com elegância, criando um microcosmo privado dentro da cidade em expansão.
O Destino: Demolição e Memória
Em 2012, o levantamento do patrimônio arquitetônico de Curitiba registrou a demolição da Vila Alkinoar. O local provavelmente deu lugar a um edifício comercial, um prédio de apartamentos ou um estacionamento — sinais inequívocos da transformação radical do uso do solo urbano ao longo do século XX.
A perda física é irreversível. Mas o projeto arquitetônico sobrevive — não como ruína, mas como documento vivo, acessível a qualquer cidadão, pesquisador ou descendente que queira compreender como se vivia, se pensava e se construía em Curitiba há mais de cem anos.
A demolição da Vila Alkinoar é mais do que a destruição de uma casa; é o apagamento de uma camada da identidade cultural da cidade. Ela nos lembra que nem toda história precisa de concreto para existir — mas que o concreto, quando bem feito, pode carregar memória por séculos.
Legado: Entre o Sonho e a Realidade
A Vila Alkinoar encarna um momento singular: quando Curitiba ainda acreditava que o progresso podia caminhar de mãos dadas com a beleza, a proporção e o respeito pelo passado. Eduardo Fernando Chaves, com seu traço preciso e sensível, e o Dr. Leal Ferreira, com seu sonho de uma vida civilizada e digna, juntos ergueram — mesmo que temporariamente — um abrigo para a alma burguesa paranaense.
Hoje, ao percorrer a Avenida São Vicente, nada lembra aquela casa. Mas quem consulta os microfilmes do Arquivo Público encontra, nas linhas de tinta sépia, o eco de um tempo em que construir era também cuidar da alma da cidade.
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Porque algumas casas são feitas de tijolos — mas outras, de sonhos. E mesmo quando os tijolos caem, os sonhos permanecem nos arquivos da memória coletiva.
Eduardo Fernando Chaves: Projetista
Denominação inicial: Projecto da Vila Alkinoar para o Dr. Leal Ferreira
Denominação atual:
Categoria (Uso): Residência
Subcategoria: Residência de Médio Porte
Endereço: Avenida S. Vicente
Número de pavimentos: 2
Área do pavimento: 320,00 m²
Área Total: 320,00 m²
Técnica/Material Construtivo: Alvenaria de Tijolos
Data do Projeto Arquitetônico: 21/12/1916
Alvará de Construção: Talões Nº 1966 e 1967; N° 444/1916
Descrição: Projeto Arquitetônico para construção da Vila Alkinoar.
Situação em 2012: Demolido
Imagens
1 - Projeto Arquitetônico.
Referências:
CHAVES, Eduardo Fernando. Projecto da Vila Alkinoar para o Dr. Leal Ferreira à Av. S. Vicente. Plantas do pavimento térreo e do porão, croquis de implantação, fachada frontal, elevação do muro e corte apresentados em duas pranchas. Microfilme digitalizado.
1 - Projeto Arquitetônico.
Acervo: Arquivo Público Municipal de Curitiba.

