A favela que virou Jardim Botânico
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O Jardim Botânico é um dos pontos turísticos mais famosos de Curitiba, considerado cartão-postal da cidade. Inaugurado em 1991, seu nome completo é Jardim Botânico Francisca Maria Garfunkel Rischbieter, em homenagem à grande engenheira que foi Francisca Rischbieter, a Franchette, que entre tantos feitos foi responsável pelo impedimento da construção de um minhocão sobre a Praça Tiradentes.
Apesar de popularmente também ser chamado de parque, tecnicamente o Jardim Botânico não é um parque segundo a classificação da prefeitura. Como o próprio nome sugere, o Jardim Botânico tem como principal atração uma estufa botânica de 458 m², inspirada no Palácio de Cristal de Londres, com um grande jardim francês em frente. A estufa de três abóbadas é revestida com quase 4.000 peças de vidro e possui 2 andares, dentro dos quais estão dispostas centenas de espécies vegetais que caracterizam a Mata Atlântica. Já o jardim, por ser francês, é dividido em linhas geométricas repletas de flores e arbustos; na convergência dos caminhos formados dentro do jardim, ao centro, está a fonte com a réplica da estátua “Amor Materno”, de autoria de João Zaco Paraná.
A essas atrações arquitetônicas e paisagísticas se somam muitas outras. Ao todo, a área do Jardim Botânico é de 178.000 m². Ou seja, a estufa e o jardim são uma pequena parte do todo. Ao redor de ambos, há um gramadão repleto de árvores e trilhas asfaltadas, lago, fontes e, nos fundos, um imenso Bosque de Preservação Permanente, que resguarda centenas de espécies de fauna e flora, algumas ameaçadas de extinção (como a araucária e o cedro rosa). Por isso, o Jardim Botânico é uma Unidade de Conservação Municipal.
Além disso, do Jardim Botânico também fazem parte o Museu Botânico Municipal/Herbário, o Jardim das Sensações e a Galeria das Quatro Estações/Café Escola, espaços que combinam preservação, educação ambiental e lazer.
O Botânico está localizado na esquina da Rua Engenheiro Ostoja Roguski com a Av. Professor Lothario Meissner, e funciona de domingo a domingo, das 6h às 19h30. Abaixo esta o croqui do Botânico, com todas as suas atrações!
O projeto do Jardim Botânico
Feita essa introdução turística e ambiental, vamos agora às suas origens históricas, destacando o motivo da implantação do Botânico e a história pregressa daquela área.
Segundo o geógrafo Márcio Hassler, a fundação do Jardim Botânico, em outubro de 1991 pela gestão de Jaime Lerner, insere-se num período “marcado pela implantação de parques com a forte presença de construções arquitetônicas emblemáticas”. Então, “a função principal dos parques deixa de ser a preservação de fundos de vale, contenção de enchentes e preservação e passa a ser a mistificação, a criação de símbolos que associam a cidade à cultura europeia, dos seus imigrantes, portanto, com qualidade de vida de países desenvolvidos, ou de primeiro mundo, como muitos ainda denominam”.
Essa política é chamada de city marketing, e teve fins mais estéticos/eleitorais do que históricos e ambientais. O Jardim Botânico, com sua estufa inspirada no Palácio de Cristal de Londres e com seu jardim francês, é resultado direto dessa ideologia. O slogan “cidade ecológica" foi inventado pela prefeitura de Curitiba nessa época.
Abaixo, a matéria de inauguração do Jardim, junto com fotografia da época da construção da estufa.
O Capanema
Hoje, o bairro em que se situa o Jardim Botânico leva o mesmo nome do Jardim; até 1992, entretanto, o nome do bairro era Capanema, que em língua tupi significa mato ruim. No século XIX, basicamente toda a área do bairro era propriedade de uma só pessoa, o Conselheiro Guilherme S. de Capanema, conhecido como Barão de Capanema. Em sua chácara, havia bosques, pomares e plantas exóticas que Capanema cuidadosamente cultivava; muitas delas ficavam em seu “Jardim Botanico”, assim denominado naquele tempo. Coincidentemente, portanto, no antigo terreno onde ficava o Botânico do Capanema é que foi construído o Botânico de Curitiba.
O bairro Capanema, já não mais posse do Barão, mudou bastante com o advento da industrialização em Curitiba no século XX. Na região surgiu a estação ferroviária da Rede Viária Paraná-Santa Catarina (a RVPSC), a vila onde moravam os trabalhadores da ferrovia, além do estádio Durival Britto e Silva - popularmente chamado de Vila Capanema, onde jogou o Clube Atlético Ferroviário e onde hoje joga o Paraná Clube.
Atrás do estádio, na década de 1950, surgiram moradias irregulares que ocuparam a margem do Rio Belém. Aos poucos, a “Favela do Capanema”, a maior ocupação irregular de Curitiba, foi formada sobretudo por pessoas que, tendo perdido seus empregos no campo, migraram do interior do Paraná e de outros estados para Curitiba. Esse êxodo rural marcou o Brasil pós-1950, e afetou a vida de milhares desses brasileiros emigrados que, na impossibilidade de garantir terra e trabalho nos grandes centros urbanos, ocuparam irregularmente as regiões periféricas ou desvalorizadas.
A Favela do Capanema
Na Favela viviam mais de 700 famílias, cerca de 3 mil pessoas, números que representavam 30% da população sem-teto de Curitiba naquele período. Grande parte delas morava nas margens do Rio Belém, mas outra parte se deslocou para mais acima, perto do bosque, justamente onde hoje está o Jardim Botânico.
Em 1976, através de esforços então considerados legais pela legislação da ditadura, a Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab) despejou boa parte dos moradores da Favela do Capanema, eliminando por completo a que estava perto do bosque. Com o desfavelamento, a população do local foi convidada a se mudar para conjuntos habitacionais do Cajuru, Boqueirão e Uberaba, conforme nos conta José Carlos Fernandes.
Mas nem todos foram. Os que estavam mais perto do Rio Belém recusaram-se a sair em cima de caminhões para destinos incertos. O resultado: ficaram ali, e na década de 80 tiveram sua área urbanizada pela prefeitura, já que o direito pela posse daquela terra finalmente foi reconhecido. O nome também mudou para “Vila Torres”, popularmente chamada de “Vila Pinto", em alusão ao líder que controlava a venda de terrenos naquelas ribeiras. "Em 1996, os moradores promoveram um referendo popular e rebatizaram o reduto de 199 mil metros quadrados: "Vila das Torres". Tinha, afinal, se tornado uma comunidade, com 8,5 mil habitantes, um modelo positivo que fascina urbanistas dos quatro costados", reforçam Diego Antonelli e José Carlos Fernandes.
A favela que virou Jardim Botânico
Desfavelizada, a área do Jardim Botânico foi, por mais 15 anos, local de depósito de resíduos de construção civil (um lixão, na verdade). Então, a gestão Lerner pensou em utilizar aquele local, aproveitando-se do bosque, para trazer e preservar “formações vegetais características de todo o estado do Paraná, de acordo com o relevo do terreno”. Para Márcio Hassler, o projeto da prefeitura também teve como finalidade evitar que o terreno fosse ocupado novamente pela população sem-teto.
Fato é que a construção do Jardim Botânico impulsionou o mercado imobiliário no Capanema, principalmente para a classe média. Mas ainda havia um estereótipo enraizado sobre o bairro, visto como uma região de favela, perigosa.
Tanto que, logo após a implantação do Jardim Botânico, em 1992, surgiu um plebiscito popular de alteração do nome do bairro de “Capanema” para “Jardim Botânico”. Não foi uma votação unânime, até porque foi uma minoria da região que se engajou, mas grande parte dos moradores que votaram decidiu pela alteração. Até hoje isso enraivece curitibanos que acreditam que o aposento do Capanema minou a identidade e a história do bairro.
Seja como for, o novo nome caiu como uma luva no projeto da prefeitura de gentrificação do então bairro Jardim Botânico. Superado o estigma, restava apagar da história a existência da favela no cartão-portal da cidade, iniciativa que nos parece exitosa. Hoje, os curitibanos e turistas que chegam na estufa de cristais provavelmente não imaginam que exatamente ali, há décadas, havia um cenário de miséria que poderia ter sido descrito por Carolina Maria de Jesus ou Conceição Evaristo.
A história da favela que virou Jardim Botânico merecia, sem dúvidas, mais estudos, pois mostra uma face de Curitiba sobre a qual o discurso oficial detesta falar.
Outro destino poderia ter sido dado à Favela do Capanema, respeitando-se o direito à moradia?
Não sabemos, afinal de contas o historiador não lida com o futuro do pretérito. Mas fica aqui a nossa pergunta, que não é um protesto contra o Jardim Botânico, que muito oferece a cidade de Curitiba, e sim só uma busca por histórias da Curitiba perdida.
Texto e pesquisa de Gustavo Pitz
Fonte de pesquisa:
Márcio Luís Hassler, "A NATUREZA NA CIDADE: Uma abordagem a partir da percepção da população acerca do Jardim Botânico de Curitiba-PR", dissertação de mestrado em geografia, 2006.
Link de acesso
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/3934/marcio%20hassler.pdf
Reportagens de Diego Antonelli e José Carlos Fernandes
https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/o-melhor-e-o-pior-dos-mundos-1vxrtisiaw03zgyui5s6jfo7i/?fbclid=IwAR39WkRLyMLA5Iw4-zOg2401uL61RUowFGAq77wYNB-SMqwNrKWC2qK9hmA
https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/vida-e-morte-do-capanema-eg92ph2dsc70jwo3ggvgag47i/
Croqui e fotografia do Jardim em
https://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/jardim-botanico-municipal-de-curitiba/287