Histórias de Curitiba - O Campinho da "Veia"
O Campinho da "Veia"
Jorge Eduardo Mosquera
Quando Mauro Ramos de Oliveira repetiu no Chile o gesto de Bellini, e ergueu a "Jules Rimet"para o planeta reverenciar o escrete canarinho, bicampeão mundial naquele 1962, o melhor futebol do mundo era jogado num terreno baldio, na Rua Dr. Faivre, lá belas bandas do Cículo Militar, entre a casa dos Pirilima e a residência de um militar (militar não mora, reside). Era lá que a pi-azada do bairro exercitava sua arte com requinte, e por lá passaram pelo menos tres gerações de craques.
Craques injustiçados, diga-se, pois apenas o Gil seguiu carreira e chegou a reserva do goleiro Rogério, no time juvenil do Coritiba.
Nosso Maracanã tinha seu campo de jogo espremido entre dois muros (o do major era coberto de cacos de vidro), o que nos permitia e recurso da finta com tabelinha.
Lateral, só quando a bola caía no terreno do vizinho.
Atrás do gol da Dr. Faivre havia um imenso matagal, onde se recolhia munição de mamona para as sangrentas batalhas de es-tilinge.
Mas o gol mais famoso -como o de entrada do Couto Pereira, e do Ginásio, na antiga Baixada, ou o da concha acústica, na Vila Capanema - era do outro lado.
Atrás dele ficava a casa de dona Ana (na General Carneiro, quase junto do Hospital de Clínicas); uma germânica afável nas horas vagas, mas de prusiana irritação quando havia jogo.
Musa forçada, foi ela a madrinha do nosso estádio.
"Campinho da Véia", tascou o Ronald num dia qualquer de muitos anos atrás (seriam mais de 30?). É engraçado.
Em toda cidade brasileira há um terreno baldio e atrás de todo terreno baldio mora uma velhinha simpática cuja tortura diária é ouvir inocentes palavrões e ter a vidraça quebrada por um torpedo desferido por um candidato a Jair da Rosa Pinto.
Sua doce vingança é apoderar-se da redonda e, com a faca de destrinchar frango, deixá-la em frangalhos.
No "Campinho da Véia"era assim, mas nossa convivência tomou como cúmplices de uma relação de amor e ódio.
Nosso ódio por causa da bola que vez por outra visitava sua casa sem ser convidada. O amor recíproco, nos (raros) momentos de trégua:
- "Bom diá, dona Ana, como vai a senhora?"
- "Bom dia, meu filho. Dê lembranças à sua mãe".
E justiça seja feita: dona Ana nunca levou seus lamentos às vizinhas, mães daqueles craques de joelhos ralados. Hávia entre nós um acordo tácito de resolvermos nossas pendengas sem envolver pessoas alheias ao nosso universo.
Já marmanjos de barba na cara, primeiro emprego, cigarro Hollywood, Cuba Libre e boati-nhas de diretório acadêmico, mantínhamos as peladas aos sábados, como um compromisso histórico de nunca abrirmos mão de nossa referência.
Estávamos a caminho da idade adulta, dona Ana envelhecia com altivez, havia outras coisas a descobrir.
Mas o "Campinho da Véia", cada vez menor debaixo de nossos pés, era
nossa ligação com o passado.
Nosso inimigo instalou-se ao lado da casa de dona Ana, na forma de uma faculdade de economia. O militar vendeu sua casa e , pouco tempo depois, o dono do terreno onde havíamos erguido
o "Campinho"negociou-o com a tal faculdade, sem resistir.
Aliás, quem será esse latifundiário que por anos incontáveis nos permitiu ser Pelé, Garrincha, Tostão, Jairzinho?
Dona Ana morreu faz tempo, livrou-se de nós e muitos choramos a ida de nossa algoz, que foi sem se despedir. O "Cam-pinho da Véia" é hoje o estacionamento da faculdade e nada ali provoca o não-iniciado viajar no tempo e lembrar nosso cotidiano exercício de correr atrás da bola e marcar um gol de placa, expirando com força para imitar o grito da torcida inexistente. Há fotos e alguns encontros esporádicos para recordarmos o "Campinho da Véia". Mas na verdade ele está onde sempre esteve - suas ondulações, buracos, touceiras de capim, as traves e a bola imortal o que já era, pois ali repousa à nossa espera, em qualquer tempo, nossa verdadeira matéria de sonhos.
Jorge Eduardo Mosquera é jornalista.
Jorge Eduardo Mosquera
Quando Mauro Ramos de Oliveira repetiu no Chile o gesto de Bellini, e ergueu a "Jules Rimet"para o planeta reverenciar o escrete canarinho, bicampeão mundial naquele 1962, o melhor futebol do mundo era jogado num terreno baldio, na Rua Dr. Faivre, lá belas bandas do Cículo Militar, entre a casa dos Pirilima e a residência de um militar (militar não mora, reside). Era lá que a pi-azada do bairro exercitava sua arte com requinte, e por lá passaram pelo menos tres gerações de craques.
Craques injustiçados, diga-se, pois apenas o Gil seguiu carreira e chegou a reserva do goleiro Rogério, no time juvenil do Coritiba.
Nosso Maracanã tinha seu campo de jogo espremido entre dois muros (o do major era coberto de cacos de vidro), o que nos permitia e recurso da finta com tabelinha.
Lateral, só quando a bola caía no terreno do vizinho.
Atrás do gol da Dr. Faivre havia um imenso matagal, onde se recolhia munição de mamona para as sangrentas batalhas de es-tilinge.
Mas o gol mais famoso -como o de entrada do Couto Pereira, e do Ginásio, na antiga Baixada, ou o da concha acústica, na Vila Capanema - era do outro lado.
Atrás dele ficava a casa de dona Ana (na General Carneiro, quase junto do Hospital de Clínicas); uma germânica afável nas horas vagas, mas de prusiana irritação quando havia jogo.
Musa forçada, foi ela a madrinha do nosso estádio.
"Campinho da Véia", tascou o Ronald num dia qualquer de muitos anos atrás (seriam mais de 30?). É engraçado.
Em toda cidade brasileira há um terreno baldio e atrás de todo terreno baldio mora uma velhinha simpática cuja tortura diária é ouvir inocentes palavrões e ter a vidraça quebrada por um torpedo desferido por um candidato a Jair da Rosa Pinto.
Sua doce vingança é apoderar-se da redonda e, com a faca de destrinchar frango, deixá-la em frangalhos.
No "Campinho da Véia"era assim, mas nossa convivência tomou como cúmplices de uma relação de amor e ódio.
Nosso ódio por causa da bola que vez por outra visitava sua casa sem ser convidada. O amor recíproco, nos (raros) momentos de trégua:
- "Bom diá, dona Ana, como vai a senhora?"
- "Bom dia, meu filho. Dê lembranças à sua mãe".
E justiça seja feita: dona Ana nunca levou seus lamentos às vizinhas, mães daqueles craques de joelhos ralados. Hávia entre nós um acordo tácito de resolvermos nossas pendengas sem envolver pessoas alheias ao nosso universo.
Já marmanjos de barba na cara, primeiro emprego, cigarro Hollywood, Cuba Libre e boati-nhas de diretório acadêmico, mantínhamos as peladas aos sábados, como um compromisso histórico de nunca abrirmos mão de nossa referência.
Estávamos a caminho da idade adulta, dona Ana envelhecia com altivez, havia outras coisas a descobrir.
Mas o "Campinho da Véia", cada vez menor debaixo de nossos pés, era
nossa ligação com o passado.
Nosso inimigo instalou-se ao lado da casa de dona Ana, na forma de uma faculdade de economia. O militar vendeu sua casa e , pouco tempo depois, o dono do terreno onde havíamos erguido
o "Campinho"negociou-o com a tal faculdade, sem resistir.
Aliás, quem será esse latifundiário que por anos incontáveis nos permitiu ser Pelé, Garrincha, Tostão, Jairzinho?
Dona Ana morreu faz tempo, livrou-se de nós e muitos choramos a ida de nossa algoz, que foi sem se despedir. O "Cam-pinho da Véia" é hoje o estacionamento da faculdade e nada ali provoca o não-iniciado viajar no tempo e lembrar nosso cotidiano exercício de correr atrás da bola e marcar um gol de placa, expirando com força para imitar o grito da torcida inexistente. Há fotos e alguns encontros esporádicos para recordarmos o "Campinho da Véia". Mas na verdade ele está onde sempre esteve - suas ondulações, buracos, touceiras de capim, as traves e a bola imortal o que já era, pois ali repousa à nossa espera, em qualquer tempo, nossa verdadeira matéria de sonhos.
Jorge Eduardo Mosquera é jornalista.