O PARQUE LAGO AZUL, EM UMBARÁ
"Domingo. Céu de um azul intenso, poucas nuvens e temperatura agradável. O movimento começa cedo. O vaivém de visitantes à procura do melhor recanto cresce à medida que as horas passam. Carros estacionados à sombra de árvores, ônibus procurando vagas, trazendo um número maior de freqüentadores. Em pouco tempo, churrasqueiras tomadas, times para o futebol armados, pescaria iniciada e botes navegando pelos dois alqueires de águas mansas e límpidas do lago. A venda de refrigerantes, Chrush, em especial, aumenta na mesma proporção que a temperatura com o passar das primeiras horas da manhã.
As crianças correm, rolam no gramado, divertem-se à beira d’água sob o olhar atento das mães. O som vindo dos rádios portáteis, ou dos automóveis mistura-se à algazarra das brincadeiras. Moradores da vizinhança ali confraternizam, junto à gente nova que, por curiosidade, chega para conhecer o lugar, enquanto freqüentadores mais antigos reencontram os conhecidos.
Ao entardecer, o movimento aos poucos diminui e seu Ângelo Segala, o proprietário, depois de uma tarde inteira contando causos aos amigos e a quem mais se achegasse, fecha o pequeno bar. Sinal repetido semanalmente, e por todos reconhecido como o momento de ir embora. Os carros saem, as luzes se apagam e a segunda-feira se aproxima.
Os finais de semana transcorriam dessa forma no parque Lago Azul, reduto de lazer que entrou para as reminiscências de muitos curitibanos, particularmente dos moradores do Umbará. Finais de semana agitados, mas dias úteis nem por isso mais calmos. Além do trabalho diário da família de Ângelo Segala na propriedade, ocasionalmente a área do parque também era utilizada pelo exército para treinamento.
Localizado no Umbará, o lago teve a sua criação diretamente relacionada à trajetória e ao cotidiano das famílias que, desde as décadas finais do século 19, ajudaram a construir o bairro. Cotidiano de um trabalho voltado para o pequeno comércio, às olarias e ao cultivo hortifrutigranjeiro, pois foi para movimentar o moinho existente nas terras da família que Ângelo Segala represou o rio Ponta Grossa, quando fez nascer o lago. [...]
A porção de terra onde se localiza o Lago Azul foi adquirida, no nal do século 19, pela família Micheleto. Originários da Itália, os Micheletos foram primeiramente para Santa Felicidade antes de fixarem residência no Umbará. Quem guarda a memória da família e boa parte da história da formação do lago que originou o parque é dona Angelina Filomena Zonta, nascida e criada no Umbará. Sorridente, ela conta as histórias ouvidas desde criança sobre a vinda dos familiares e lembra dos tempos de infância, quando acompanhou o trabalho do pai, responsável pelo represamento do rio Ponta Grossa, que originou o lago.
Dona Angelina foi a última moradora da família a residir em terras hoje pertencentes ao Parque Lago Azul. Conta ela que a propriedade foi adquirida por seu avô, Antonio Micheleto, no final dos anos 1800. Como aconteceu em várias outras famílias de imigrantes, os Micheletos enfrentaram muitas dificuldades durante os primeiros anos em terras brasileiras. Dificuldades que, no caso deles em particular, ultrapassaram a mera adaptação a uma terra estranha e ao trabalho para desbravar os lotes coloniais onde foram assentados. A família enfrentou a morte do patriarca em alto mar, no percurso entre a Itália e o Brasil.
Os antepassados de dona Angelina migraram com as primeiras levas de italianos que aportaram no Paraná. As dificuldades começavam na partida, pois eram cerca de quarenta dias de viagem num navio onde o desconforto, a falta de higiene e as doenças grassavam. Ainda criança, ela ouvia contar a trágica história do bisavô que, morto durante a travessia do Atlântico, teve seu corpo enrolado numa mortalha e lançado ao mar. Sua bisavó chegou, portanto, viúva em solo brasileiro e com filhos pequenos para criar; entre eles, Antônio, o avô de Angelina, na época com apenas cinco anos de idade: “(...) meu avô chegou com cinco anos. Moraram em Santa Felicidade primeiro, para depois comprar essas terras ali [no Umbará]”.
Com vinte anos de idade, segundo a neta, Antônio já havia se casado com Ângela Basso, também de origem italiana, e se transferido para o Umbará. Como a maioria dos vizinhos, o casal vivia da lavoura: plantavam milho, feijão e cultivavam um parreiral que rendia um bom vinho caseiro. Da lavoura tiraram o sustento dos doze filhos.
Toda a área era plantada, nem mesmo as declividades do terreno deixavam de ser aproveitadas. O parreiral, por exemplo, cava nas encostas do morro que, na década de 1940, forneceu parte das terras para o represamento do rio Ponta Grossa. A produção de uva era tamanha que a família comercializava o excedente na vizinhança: “(...) o parreiral era coisa de louco, grande, dava tanta uva. Vendíamos uva de tanto que dava. Tinha de todas as qualidades: branca, rosada...”
Antônio morreu cedo. Dona Angelina recorda que o avô faleceu aos cinqüenta anos, de problemas cardíacos, causados, em parte, pelo esforço diário num trabalho exaustivo. Na partilha da propriedade entre os filhos, coube a Luiza, mãe de Angelina, a porção de terra fronteira ao ribeirão Ponta Grossa. Uma verdadeira perambeira, como recorda a filha, totalmente transformada pelo suor e pela boa vontade do pai, Ângelo Segala, com quem Luiza se casara em meados da década de 1930.
Logo após o casamento, começa a aventura capitaneada por Ângelo, um trabalhador tão tenaz quanto o sogro, disposto a transformar a perambeira que coube por herança à mulher numa área mais propícia para se viver. Uma transformação operada quase que exclusivamente com um carrinho de mão: (...) passava um ribeirão na divisa. Meu pai então queria fazer um moinho de fubá ali, e fez. Mas ele teve que trancar, represar esse ribeirão que era na divisa. Foi tirando o barranco, começou com carrinho, um barranco alto. Aquele barranco vinha até quase a beirinha onde está a água, ele vinha assim onde está a casa [residência da família, ainda existente à beira do lago]. Ele começou com um carrinho de mão, porque os cavalos com carroça não podiam fazer a volta ali, de tanta perambeira que era. Até os cunhados do meu pai falaram: vizinho, o que você vai criar? Vai criar só sapo aí. O que você vai fazer com isso aí? [o lago].
Apesar das brincadeiras que ouvia dos cunhados, intrigados com a disposição do vizinho em retirar a terra para uma represa utilizando apenas um carrinho de mão, Ângelo não desistiu. Como lembrou dona Angelina, a própria residência dos pais foi construída, pouco tempo depois, à beira do lago, em local outrora ocupado pelo morro ali existente. A família mudou-se para a casa nova no começo da década de 1940, quando Angelina completou três anos de idade.
Foi um trabalho moroso e de muita paciência: “... demorou porque ele [Ângelo] ia devagar. Todo dia levantava cedo, com o carrinho de mão e ia puxando [terra]. Teve que ir alargando, porque tinha água, a água tem uma força!”. À medida que o lago se formava, Ângelo, para dar conta de toda a extensão que as águas inundavam sem comprometer as terras com as quais fazia divisa, negociou, então, pouco mais de dois alqueires dos vizinhos, área equivalente à metade do tamanho que o lago veio a ocupar depois de concluído. Anos depois, numa matéria publicada na imprensa, ele confidenciaria: “Troquei um pedaço de terra, das boas para plantação, por água, e foi o melhor negócio que fiz até hoje, na minha vida toda”.
A área de aproximadamente quatro alqueires, ocupada pelo lago, mudou a paisagem. Tamanho volume de água que, algumas vezes, deu mostras de sua força. Quando chovia muito, batia o desespero. Certa vez, arrebentou o dique de contenção, como lembra Angelina: “(...) uma vez estourou. Todos os vizinhos ajudaram, veio bastante vizinho, porque eram todos gente boa, gente trabalhadora. Ajudaram bastante. Era no tempo do Ney Braga [na prefeitura], ele veio lá, ficou com dó, mandou máquina, mandou caminhão”.
Nessa época, embora não fosse essa a finalidade, o lago já atraía visitantes das redondezas. Encantados com o local, pediam para visitar. Muitos dos primeiros freqüentadores conheceram o lago ao se dirigir ao moinho construído por Ângelo Segala para trocar milho por fubá. Assim, antes mesmo de o local vir a ser batizado de Lago Azul e tornar-se popular em toda Curitiba, a propriedade dos Segalas era bastante conhecida em virtude do moinho e do gerador de energia ali existente.
Poucos eram os moinhos existentes na vizinhança de Ângelo Segala; por isso, a grande procura pelo moinho da propriedade. Razão principal do represamento do rio Ponta Grossa, em pouco tempo se transformou no principal instrumento de subsistência da família e num gerador de energia, responsável por iluminar vinte e quatro horas por dia a residência dos Segalas. [...]
Quem conta é Ademir Zonta, filho de dona Angelina que, embora fosse criança na época, cresceu ouvindo histórias sobre o moinho do avô: (...) o dinheiro praticamente não entrava. Então o que sobrava, por exemplo, chegava com dez quilos de milho e levava o fubá, levava cinco quilos de fubá em troca dos dez quilos de milho. Chegava lá, ele [o avô] já tinha pronto, só deixava o milho e pegava o fubá. (...) Pegava o próprio saquinho e colocava, já pesava e ia embora. Não precisava ter dinheiro, porque produzia o milho em casa, era um alimento próprio, do cultivo próprio, aí não precisava de dinheiro, era a moeda de troca na época. E a bateria era também a mesma coisa. Os caras traziam a bateria uma ou duas vezes no mês pra carregar, daí traziam uma galinha para ele, então ele tinha criação de porco, criação de vaca... Com o excedente do milho, por exemplo, a casca ele dava, fazia ração pra criação do porco, da galinha, da vaca, então assim ele sobrevivia na época, mesmo sem o dinheiro, mas com a produção dele mesmo. Como ele não gastava nada com energia, que era gerada pela própria água, só custou o que ele construiu. Depois de construído, só usufruiu. A manutenção era muito baixa.
A negociação era simples e conhecida de todos, permitia que até mesmo crianças para lá se dirigissem para efetuar a troca do milho pelo fubá. Geraldo Bobato, nascido, criado e ainda residente na região, lembra do costumeiro pedido de sua mãe para que fosse ao moinho: “... eu lembro do tempo que eu levava ainda um saquinho de milho, a nossa mãe dizia, nossa mãe polonesa: ‘vai lá na Angelim Segala, troca milho por fubá’. A gente levava lá um saco de milho, ou de bicicleta ou nas costas, e voltava de lá com umas dezenas de quilos de fubá pra fazer nossa polentinha. (...) Eu moro a dois quilômetros do parque, me criei naquele Lago Azul, pescando e admirando, trocando milho por fubá”.
A energia gerada no moinho é uma história à parte e traz muito da criatividade do seu construtor. O próprio Ângelo Segala adaptou um dínamo, normalmente utilizado em carros e caminhões, que, movido pela força da água, gerava o suficiente para carregar baterias não apenas dos familiares, mas também de muitos moradores da vizinhança. A luz elétrica chegou ao bairro somente em 1958.
Engenhoso, Ângelo criou um conjunto de polias, como recorda o neto, para dar rotação ao dínamo e produzir a energia responsável pela iluminação da residência da família: “Nós nunca tivemos vela, lampião em casa, era sempre luz [elétrica]. Só que eram doze volts, mas sempre tinha luz e gratuitamente. A despesa era a lâmpada que queimava. Só que ficava dia e noite as lâmpadas ligadas, não tinha problema”.
Pequenos prazeres, como ouvir um programa de rádio, tornaram-se possíveis graças às baterias carregadas no dínamo instalado no moinho. Nem mesmo as estradas praticamente intransitáveis eram empecilhos e, por isso mesmo, histórias curiosas aconteceram ao longo do tempo, envolvendo os conhecidos que se dirigiam ao moinho para esse mister. Dona Angelina ainda se diverte quando lembra de uma prima que, para poder ouvir o rádio, caminhava quase cinco quilômetros carregando uma bateria. Certa vez, durante esse percurso, a bateria, rente ao corpo, soltou ácido. Somente ao chegar à casa dos parentes foi que a moça percebeu que o ácido havia comido parte do vestido: “Quando ela chegou, era sobrinha do meu pai, quando chegou lá em casa, o ácido tinha comido toda a roupa, mas estava caindo a roupa... Imagina o que se fazia para escutar um rádio...”.
O auge da produção de fubá no moinho perdurou até o começo da década de 1960. Nessa época, a produção quase artesanal de fubá decresceu, pois grandes moinhos industrializados despejavam nas vendas e mercados de toda a cidade o produto já ensacado. A procura pelo pequeno moinho dos Segalas, com isso, diminuiu bastante, e não havia mais vizinhos dispostos a trocar milho por fubá. Além disso, a chegada da luz elétrica também diminuiu o vaivém de baterias para carregar. O agradável som produzido no moinho com roda d’água, onde o barulho das pás misturava-se ao ritmado do pilão, transformando milho em fubá, aos poucos, reduziu-se consideravelmente.
O entra e sai de pessoas da propriedade da família, no entanto, aumentou. A partir de então, inúmeros visitantes ali chegavam atraídos por uma nova opção de lazer que se abriu bem defronte à casa dos Segalas: o Parque Lago Azul. Criado ao acaso, sob insistência de um desconhecido que por lá apareceu, o lago, construído para mover o pequeno moinho, tornou- se, em pouco tempo, num referencial de recreação e divertimento, ainda hoje presente nas lembranças de muitos curitibanos.
Os ares bucólicos do lago e do conjunto formado pela residência, paiol e moinho construídos por Ângelo Segala sempre agradaram aos conhecidos e familiares que freqüentavam o local. Uma visita para trocar milho por fubá, ou para dar uma carga em baterias, sempre rendia um passeio à beira do lago ou um bate-papo, com o orgulhoso proprietário, à sombra das árvores por ele plantadas após a conclusão da represa. Qualquer pedido para estender aqueles momentos e desfrutar um pouco mais da paisagem era bem-vindo. Segala não se recusava em abrir as portas de sua propriedade, a nal eram todos velhos conhecidos.
Por esse motivo, a idéia de transformar o local em uma área de lazer, aberta ao grande público, nunca passou pela cabeça do casal Ângelo e Luiza. Ambos lutaram, desde o começo, contra todas as adversidades: primeiro, para transformar uma perambeira em área aprazível para viver e produzir o sustento do dia-a-dia; depois, para criar os filhos. Os anos se passaram, mas continuavam na labuta, principalmente a partir do momento em que a produção de fubá decresceu. Permaneceram com a criação de animais, com o cultivo da terra – o parreiral sempre produziu bem – e com o fubá que, a despeito das di culdades advindas com a concorrência, continuava a ser produzido, embora em menor escala.
Pode-se considerar que foi quase por acaso que a idéia de um parque aberto ao público vingou. Surgiu da insistência de um senhor, até então desconhecido, que visitou o local e lançou a semente: dar início a uma criação de peixes, cobrar pela pesca e colocar botes à disposição de visitantes. Conversa vai, conversa vem e, não demorou muito, a semente germinou.
Homem simples, camarada e sempre disposto a con ar em todos, Ângelo Segala aceitou a proposta, mesmo com as poucas referências obtidas do interlocutor. Dona Angelina, na época já casada, relembra toda a história: "(...) apareceu um senhor, lá de Santa Catarina, um senhor sozinho, não tinha família, nada. Apareceu, ele se chamava Benedito. Chegou e falou para o meu pai... meu pai minha mãe, nós estávamos todos juntos, e disse: “escute, o senhor não que alugar isso aí, esse lago. Eu não vou estragar nada do seu moinho. Eu quero pôr peixe, daí eu vou começar a cobrar, então vou pagar um aluguel pra vocês só do lago”. Então meu pai disse: “ah!, pode fazer”. Aceitou. E o homem começou.".
Em pouco tempo, tudo estava arranjado. O empreendedor de fora comprou umas canoas, montou uma pequena lanchonete, colocou algumas mesas e deu início à divulgação do local logo após ele próprio batizar o espaço com o nome pelo qual ficou conhecido, como recorda Dona Angelina: “... E aí ele começou a fazer umas propagandas numas rádios vizinhas. Ele que batizou Lago Azul, não tinha o nome. Ele chegou e batizou: vai ser Lago Azul. E a propaganda no rádio era: Lago Azul, visite um paraíso... Mas começou a vir gente...”.
Logo, o público aderiu em massa, atraído pelos comerciais que conclamavam a um passeio ao paraíso. Os visitantes lotavam o local nos finais de semana, alugavam barcos, faziam piqueniques sob as árvores, compravam bebida e alimentos no pequeno estabelecimento montado pelo sócio de Ângelo Segala.
Normal em qualquer empreendimento recém-aberto, dívidas foram contraídas pelo então arrendatário do lago, pois havia o custo das canoas que mandara fazer, das bebidas e da alimentação comercializadas, além da própria estrutura da área, adaptada para receber visitantes. Aparentemente os negócios iam bem, Ângelo Segala tinha conhecimento das contas assumidas, mas nunca poderia imaginar que, de um momento para o outro, o sócio desapareceria. Sumiu e nunca mais os Segalas tiveram notícias do seu paradeiro. “De uma hora para a outra ele sumiu, e ficaram todas as contas para meu pai pagar”.
Como proprietário da área onde o parque se formou, Ângelo se viu obrigado a arcar com todas as despesas. Íntegro com os compromissos, não deixou de saldar os débitos, mas as dificuldades, antes já existentes por fatores diversos, como a diminuição do fabrico do fubá, por exemplo, só aumentaram.
O parque continuou em funcionamento, mas a estrutura já não era mais a mesma. O pequeno comércio, aberto com o parque, deixou de funcionar em virtude das contas pendentes com consignações de bebidas, alimentos etc. Foi quando a família recebeu a visita de um parente, ligado à fábrica de refrigerantes Crush, já não mais existente. Abismado com o grande número de visitantes que o local atraía, mesmo com a estrutura defasada, propôs ajudar: “Ele chegou, assim, e disse: meu Deus, toda essa gente. Olha, agora não tem uma bebida aqui, não tem nada pra vender. Vocês não querem que eu dê uma mão? (...) Daí começou a ajudar. Vendiam um caminhão de Crush por domingo. Chegava cheio, vendiam tudo. Eles ficaram dez anos, a Crush ficou lá. Patrocinando, e ela pagava um aluguelzinho para nós”.
Passado o período de dificuldades com a saída do sócio, o parque entrou na sua fase de maior popularidade. Os carros ocupavam todas as áreas disponíveis e possíveis para estacionamento; os ônibus traziam grupos de vários bairros e também tomavam conta do espaço. O Lago Azul tornou-se conhecido em toda a cidade, tanto que, nos idos de 1960, uma linha de transporte coletivo, especial, foi criada para, aos sábados e domingos, fazer o percurso Praça Rui Barbosa/Lago Azul.
Em meio a tantos visitantes, seu Ângelo Segala circulava, orgulhoso de sua criação. Puxava conversa com todos, ouvia muitas histórias, proseava ainda mais, contando causos, piadas, relembrando toda a labuta para formar o lago e tocar o moinho. Por um bom tempo, coube a ele cuidar da pequena venda, misto de bar e restaurante, montado anexo à residência da família. Ali, no balcão, o dedo de prosa com os velhos conhecidos se estendia por boa parte do dia. Era o lugar ideal para: “... tomar uma cerveja e bater um papo lá no Lago Azul; e assistir o saudoso Ângelo Segala contar suas histórias. E tinha muitas”.
Música também não faltava. E era na base do improviso, como recorda o neto, Ademir Zonta: “(...) chegava um grupo com violão, outro com gaita, ou com pandeiro, o pessoal ia muito, mas era só naquele momento. Nós nunca colocamos ninguém lá pra fazer esse trabalho. Sempre tinha gente lá que se reunia, daí começava a tocar um violão, juntava gente, outro tocava uma gaita, juntava gente também, mas sempre tudo de improviso”.
Outro ponto bastante respeitado era o horário de encerramento das atividades no parque. Dificilmente passava-se das oito horas da noite. Era só escurecer, e as luzes se apagavam e o comércio cerrava as portas. Além de seu Ângelo não desejar balbúrdias após determinado horário, os tempos também eram outros e havia a dificuldade dos acessos. A grande maioria dos visitantes atravessava a cidade em busca de momentos de lazer no Lago Azul; retornar, entretanto, era outra aventura. Nos idos de 1960/1970, muitas vias que ligavam o centro da cidade ao Umbará não eram ainda pavimentadas, fato que dificultava, ainda mais, o retorno à noite.
O parque não era desfrutado apenas por famílias e amigos que se reuniam para um piquenique de fim de semana. Encontros de empresas e festividades de grupos maiores também encontravam ali o espaço ideal. Por um bom tempo, os funcionários da Crush, no Paraná, ali realizaram confraternizações; diversas outras empresas da cidade faziam o mesmo. Ademir Zonta relata: “No domingo não cabia carro lá dentro [do parque]. A Crush quando estava lá [período em que comercializou bebidas no local] fazia festas. No dia 1º de maio dava almoço para todos os empregados da firma. Então vinham desfilando... Era a coisa mais linda! Tinha corrida de canoas, parque para as crianças”.6 Grupos religiosos utilizavam o lago para batismos coletivos. Dona Angelina lembra de uma ocasião em que setenta ônibus lotaram o estacionamento, trazendo fiéis para a cerimônia.
Instituições como o Exército e o Corpo de Bombeiros aproveitavam a área para treinamentos e cerimônias de formatura. Ocasionalmente, o Exército fazia uso do espaço do parque, durante os dias úteis da semana, para treinamentos e exercícios. Às vezes, a prática do arvorismo, com cabos presos às árvores e através dos quais os soldados atravessavam. [...]
Guardiã da memória da família, dona Angelina conta com prazer toda a história do lago. Relata as dificuldades do pai ao transportar grandes quantidades de terra apenas com o uso de carrinho de mão, lembra dos vizinhos e parentes trocando milho por fubá, trazendo baterias para carregar e dos primeiros anos do parque. Descreve as pescarias, a balbúrdia das crianças, as partidas de futebol e as grandes comemorações que lá ocorreram. Os infortúnios vividos nos idos de 1970, quando a violência urbana chegou ao recanto e causou comoção entre os moradores do bairro, transformaram-se numa página virada.
No entanto, o vaivém de visitantes um dia cessou. O parque, que atravessara mais de quatro décadas como um atrativo da região, ficou vazio. O silêncio se fez então presente, pois a água, como bem disse dona Angelina, “estragou”. Em vez dos botes, da pescaria e das brincadeiras à beira do lago, foi a vez de uma espuma branca tomar conta da paisagem. Parecia “neve”, conta dona Angelina, encantou seus netos, fotogra as foram tiradas, entraram para os álbuns da família, mas a beleza da brancura da espuma escondia a poluição que no final da década de 1990 tomou conta do lago.
Na época, manchetes como: “Espuma poluente invade recanto Lago Azul, no bairro do Umbará”, ou, “Espuma no Umbará sem solução”, estamparam as páginas dos jornais. Separadas por um ano uma da outra, as duas matérias citavam o mesmo problema: a espuma que, em algumas partes do lago, chegou a quase três metros de altura. “A espuma que aparece no Lago Azul, um recanto particular no bairro Umbará, em Curitiba, voltou a preocupar os moradores da região. Espumas provenientes do tanque formam nuvens de mais de três metros de altura, encobrindo parte do lago, árvores e a vegetação das propriedades próximas. O problema vem se repetindo há mais de um ano”.
A poluição, que lentamente tomou conta do lago no decorrer da década de 1990, chegou ao ápice entre os anos de 1999 e 2000. Afastou visitantes, assustou a vizinhança e causou um grave dano ecológico. Dona Angelina relatou à imprensa, em 2000, que nem mesmo ela se arriscava mais a comer os peixes que ainda sobreviviam nas águas do lago. Adelaide Miqueleto, vizinha que mudara para o Umbará nos anos de 1960, contou que naquela época ela mesma pegava no lago os peixes para o jantar, e afirmou: “Hoje os peixes que sobreviveram devem estar todos contaminados (...) Em princípio é uma cena bonita, pois parece neve. Mas não deixo meus netos brincarem por ali, porque tenho medo que fiquem doentes”.
A poluição tinha origens diversas: provinha da Central de Abastecimento do Paraná, a Ceasa, de postos de gasolina da região e de esgotos domésticos lançados no rio Ponta Grossa. As soluções para amenizar os efeitos causados pelos dejetos lançados, por tanto tempo, nas águas que alimentam o lago não são simples, mas nem por isso impossíveis de acontecer. Seu Ângelo Segala, infelizmente, não viveu para ver o seu parque recuperado. Faleceu dois anos depois, em 2002. Antes, porém, ele teve a felicidade de saber do interesse da Prefeitura Municipal de Curitiba em transformar em parque municipal o lago que construíra havia cinqüenta anos. Uma proposta que começou a se concretizar no final de 2007, quando o Município negociou com dona Angelina a desapropriação da área e deu início ao projeto de renovação e reciclagem dos espaços do parque.
Após mais de quatro décadas de história como parque particular, o Lago Azul foi municipalizado em 2008. No segundo semestre de 2007, técnicos da Secretaria Municipal do Meio Ambiente deram início ao projeto de reforma da antiga estrutura para a inserção de novos equipamentos de lazer no espaço. Uma luz também se acendeu no fim do túnel, indicando que, em breve, a poluição deve ter um fim: na mesma época, a Sanepar solicitou, ao Ministério das Cidades, investimentos para a regularização do esgoto despejado no rio Ponta Grossa.
Atendeu-se, assim, a uma antiga reivindicação da comunidade, principalmente da geração que cresceu passando as tardes de domingo à beira do lago. Mais do que tudo, no entanto, realizava-se o sonho havia muito acalentado por dona Angelina, o de transformar o parque em área pública. Com a poluição, a freqüência do público diminuiu consideravelmente e a família já não dispunha mais de recursos para manter o lugar exatamente como um dia ele fora, no período de maior popularidade. O falecimento de Ângelo Segala, em 2002, agravou ainda mais a situação, pois ele, mesmo com a idade avançada, continuava a ser a força motriz que mantinha o Lago Azul.
Prestar homenagem à memória do pai foi o pedido mais importante feito por dona Angelina durante as negociações com o Município. Como ela bem sabe, melhor do que qualquer um, nada teria acontecido se não fosse a tenacidade do filho de imigrantes que soube transformar uma propriedade que não era mais do que uma perambeira, em um dos mais agradáveis recantos da região sul da cidade. O Lago Azul não nasceu parque, mas essa, certamente, sempre foi a vocação do espaço. [...]"
(Extraído de: pergamum.curitiba.pr.gov.br / Lago Azul, de Tatiana Dantas Marchette)
Paulo Grani
Casa da família Secala, anos 1960.
Foto: Acervo de Angelina Segala Zonta / Casa da Memória.
Foto: Acervo de Angelina Segala Zonta / Casa da Memória.
Moinho construído por Ângelo Segala, anos 1940.
Foto: Acervo de Angelina Segala Zonta / Casa da Memória.
Foto: Acervo de Angelina Segala Zonta / Casa da Memória.
Ângelo Segala conversando com amigos no bar construído junto ao lago, em 1977.
Foto: Acervo de Angelina Segala Zonta / Casa da Memória.
Foto: Acervo de Angelina Segala Zonta / Casa da Memória.
Parque do Lago Azul, em 1980.
Foto: Marcelo Brunetti / Casa da Memória.
Foto: Marcelo Brunetti / Casa da Memória.
Crianças brincando no parquinho junto ao lago.
Foto: Roberto Alves dos Santos/ Casa da Memória
Foto: Roberto Alves dos Santos/ Casa da Memória
Piquenique junto ao lago, em 1971.
Foto: José Tortato Sobrinho/ Casa da Memória
Foto: José Tortato Sobrinho/ Casa da Memória
Parque do Lago Azul, década de 1980.
Foto: Marcelo Brunetti / Casa da Memória.
Foto: Marcelo Brunetti / Casa da Memória.