A História tradicional da cidade ainda disputa qual a data efetiva da fundação de Curitiba e quem teria sido seu verdadeiro fundador. A versão predominante do patriarca, na opinião dos primeiros cronistas e nossos historiadores até mais recentes, recai habitualmente em Ébano Pereira, o capitão das canoas de guerra e o entabulador das minas de ouro do distrito do Sul.
As primeiras notícias sobre a fixação do homem branco no planalto de Curitiba remontam aos fins do século XVI e se tem feito coincidir com a origem da Vilinha (depois Vila Velha), situada à margem esquerda do rio Atuba, cuja localização foi feita "in loco" e por pesquisa inédita do historiador Júlio Moreira, de que resultou, em 1972, a criação do Parque Histórico da Cidade, por lei municipal, aberta ao público desde 1985. Conta-se ainda, com sabor de lenda, que das paragens da Vilinha saíram os moradores em 1654 para se instalar no outeiro que divide os rios Belém e Ivo, onde vai surgir a vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, que em 1720 assume o topônimo definitivo de Curitiba.
Na verdade, não há dados que credenciem a adoção da data e do autor da fundação da vila, fora da sua versão oficial, correspondente a 29 de março de 1693, com documentação em ata, que registra a ocasião em que, por solicitação e reunião do povo, foram eleitas as autoridades da vila, encarregadas de sua administração e distribuição da justiça. Porém, por força da legislação vigente, o ato da criação se desdobrou em dois episódios distintos, mas consequentes, que se completam para dar ao povoado o foro de vila. O primeiro correspondeu à ereção do pelourinho, e se perfez através de singela cerimônia realizada na praça central do povoado, presidida pelo capitão-mor de Paranaguá, Gabriel de Lara, na presença de 17 dos seus moradores, isto em data anterior a 4 de novembro de 1668. E o outro, em 1693 (um quarto de século depois), através do qual lhe assegurou o predicamento de vila (civitas). Ao cabo, faltou-lhe apenas a carta régia, como ato originário ou confirmatório da criação da vila, seja oriundo da autoridade real, do donatário ou de preposto deste. Nesse aspecto, porém, ambos os atos foram historicamente validados, porque foram produto da iniciativa do próprio do povo, correspondente à manifestação afirmativa de sua vontade e determinação, reclamando das autoridades os foros tardios do seu reconhecimento político e dos poderes de sua organização permanente.
Um dos segredos, porém, que permeia essa distância entre os dois atos, tem despertado a curiosidade de quantos percorrem essa quadra da nossa história. O que teria levado o capitão-mor Gabriel de Lara a se restringir à ereção do pelourinho da praça e deixar transcorrer tantos anos sem promover a eleição da Câmara, para que o povoado assumisse enfim a condição de vila? Nesse sentido, há diversas sugestões que correm por conta da interpretação de cada historiador. Francisco Negrão, por exemplo, justifica a demora à falta da ordem régia, pois os donatários só tinham autorização para criar vilas ao longo da costa e dos rios que desaguassem nos mares; e, no sertão, a distância seria de 6 léguas uma da outra. Edilberto Trevisan invoca a restauração portuguesa. Quando Portugal pôs fim definitivo à união ibérica com a aclamação do Duque de Bragança, seu rei com o nome de D. João IV (Tratado de Lisboa 1668), o governo da metrópole teria fomentado as iniciativas de avançar o domínio de Portugal sobre as terras da América espanhola, antecipando posições além da linha de Tordesilhas. Por outro lado, porém, há quem desqualifique ambas as datas oficiais, alegando que na ocasião os campos de Curitiba já estavam povoados de gente, principalmente de faiscadores e mineradores de ouro, ocupando arraiais dispersos às margens dos ribeirões auríferos ou das minas de pedra. Havia ainda os que ocupavam os campos férteis para a criação do gado vacum ou o cultivo de lavouras de subsistência. Igual, portanto, às notícias que se tem da existência da Vilinha, como origem de Curitiba, cujo monumento histórico mandado construir tinha anteriormente uma placa oficial indicativa de que ali existiu um povoado, substituída depois por outra confessando que naquele mesmo local teria existido um povoado.
A bem de ver, no entanto, foi a atração do ouro, que provocou o deslocamento humano, espontâneo, ou mesmo induzido, para o planalto curitibano, de aventureiros, famílias inteiras e seus agregados, provindos de São Paulo, S. Vicente, Cananéia e Iguape. Porém, não é a só presença do homem que cria o momento histórico. No caso, o ato da criação deve corresponder a um sentimento definido e comum, em que o grupo manifesta seu intento de se organizar em comunidades para lhe dar expressão orgânica e assegurar sua preservação e a segurança dos seus membros. Observe-se ainda que, segundo as Ordenações Filipinas, para que então o povoado adquirisse a representatividade de vila, além da carta régia, fixando-lhe o termo, deveria ao mesmo tempo erigir o pelourinho e eleger seus juízes e oficias da Câmara. Vale observar, também, que tantas vezes a datação histórica provém de lendas ou foi estabelecida como eleição simbólica. Assim, São Paulo não teve foral nem foi fundada em 25 de janeiro. Essa é a data da missa que os jesuítas rezaram numa tosca cabana levantada nos campos de Piratininga. Anos depois o local passou a sediar a vila de Santo André, fundada em 1553 por Tomé de Souza, porque ela se mostrava desguarnecida. A data e o nome do santo preponderaram. O Rio de Janeiro surgiu no morro do Cão, na península do Pão de Açúcar, mas dois anos depois, mais seguros do assédio dos franceses e dos índios, o núcleo da cidade foi transferido para o morro do Castelo, de defesa mais protegida. Também Salvador da Bahia começou como arraial do Pereira (1536), mas ganhou outra data (1549), quando se tornou capital da Colônia e se preparou para receber o primeiro governador-geral, Tomé de Souza.
Assim, pelo visto, os primeiros habitantes do planalto constituíam uma população aventureira, errante, ocupada em batear ouro de aluvião em mais de 30 ribeiros vistoriados por Gabriel de Lara ou a extrair ouro beda ou de mina, vivendo ainda em arraiais intermitentes, dispersos pelo planalto. Se até então não havia entre eles manifestação de uma forma maior de convivência e organização social, é justo que o historiador, na falta de precedente, procure se fixar apenas nos registros oficiais, a partir de quando a comunidade passou a manifestar seu propósito de assumir modelo político, que é sempre a forma mais duradoura de preservar a vida da sociedade e garantir sua autonomia.
Ilustração do autor
E quanto a Eleodoro Ébano Pereira, foi ele o patriarca da cidade? Na verdade, seu nome e seu título de preeminência na fundação da cidade constam da nomeação dos que primeiro se ocupavam da origem da cidade, embora sua presença, em geral, esteja registrada em notas breves, sem apoio de documento ou subscrito de autoridade.
Assim, seguindo o passo de Maria Cecília Westphalen, teremos por primeiro Pedro Taques de Almeida Paes, da "História da Capitania de S. Vicente" (1772), onde Ébano Pereira aparece como fundador da cidade, mas sem data de referência e sem qualquer menção a outros protagonistas conhecidos do evento. Quanto a Pizarro e Araújo ("Memórias Históricas do Rio de Janeiro", 1820-1822), só repetem a data da fundação e o nome de quem lhe deu origem. O sábio Saint-Hilaire era apenas um viajante estrangeiro e a origem da vila faz parte da sua resenha de viagem, mas sem registro da data da fundação e do nome do fundador. Nosso historiador Vieira dos Santos ("Memória Histórica da Vila de Morretes", 1850) repete o que "os antigos contavam", mas ainda assim menciona a existência da Vilinha e conclui atribuindo a Ébano Pereira a fundação da cidade, datando a fundação de 1654.
No final do século XIX e parte do XX, outros dos nossos melhores historiadores, como Rocha Pombo, Sebastião Paraná, Ermelino de Leão, Francisco Negrão e Romário Martins, em definitivo ou provisoriamente, filiaram-se ou aceitaram a versão de Ébano Pereira. Por sua vez, Rocha Pombo do "Paraná do Centenário" admite a presença de Ébano Pereira entre os fundadores da cidade, mas reduz seu papel ao de preposto do governo de São Vicente. Um aventureiro que não deixou notícia do seu paradeiro. Romário Martins, na primeira edição da "História do Paraná" (1899), acolhe a versão de Vieira dos Santos e o inclui entre os primeiros moradores; fez menção da Vilinha e da sua transferência para o local que passou a ser Curitiba de hoje. Em suas obras posteriores, porém, embora conceda a Ébano Pereira "magna parte na alvorada dos dias históricos dos curitibanos", nega, no entanto, que ele tenha sido realmente um povoador, "no sentido social do termo". Veio ao planalto curitibano em missão oficial e quando o ouro já havia sido descoberto, acrescenta. Nessa altura, porém, a publicação de documentos do interesse da história paranaense, extraídos dos arquivos portugueses e incluídos na obra do historiador Jaime Cortesão, “Pauliceae Lusitana Monumenta Historica", comemorativa do IV Centenário da cidade de São Paulo, vão repercutir sobre o conhecimento dos primeiros tempos da nossa história colonial, particularmente sobre a figura de Eleodoro Ébano Pereira e a existência da Vilinha, como núcleo inicial de Curitiba.
Apesar dessas novas revelações, que motivaram o professor Júlio Moreira a empreender um trabalho inédito de localização originária da tal Vilinha, do Atuba, e no sentido de confirmar a presença de Ébano Pereira nos campos de Curitiba, as informações não permitem atribuir o papel histórico de fundador a Ébano Pereira. Assim é que, mais recentemente, o historiador Ruy Christovam Wachowicz diz textualmente na sua "História do Paraná" que, quanto a Ébano Pereira, "é duvidoso atribuir-lhe qualquer participação na fundação de Curitiba". Maria Cecília Westphalen afasta também a ideia do fundador, pois, apesar de Baltazar Carrasco dos Reis, Matheus Martins Leme, João Rodrigues Seixas, etc., terem se radicado em Curitiba, com a família e seus interesses, e, doutra parte, Gabriel de Lara e outros, em Paranaguá, Ébano Pereira não possuía família nem parentes na região e, quanto à origem da vila, a notícia da presença de ouro entre nós foi o que atraiu grande número de mineradores e aventureiros provindos de São Paulo e São Vicente para o plateau curitibano, onde se estabeleceram em diversos arraiais, com ânimo provisório ou definitivo. Porém, tão logo chegou a notícia do porte da riqueza do ouro das Gerais, essa população debandou, levada pela ambição da nova riqueza, e então nossa futura capital, com certeza, foi o arraial que permaneceu, com sua população efetiva e as sesmarias que lhes tinham concedido.
A versão é semelhante à que ocorreu em Paranaguá. Revelada a presença do ouro na capitania, o achado atraiu gente de toda a sorte e em bandos tão numerosos que, na imagem de Francisco Negrão,"pareciam cidades ambulantes". Ora, mais recentemente nosso Edilberto Trevisan sustentou essa obra coletiva ou indeterminada de fundação, argumentando que "os mesmos motivos de ordem militar que aconselharam fazer o povoamento de Paranaguá, com o deslocamento de população, para fins estratégicos, deveriam ter se repetido em Curitiba" ("O Centro Histórico da Cidade"). Assim, no fim das contas, resta indagar: quem dessas multidões chegou primeiro? E quem foi o pioneiro que se adiantou aos outros e fincou a bandeira inaugural da vila? Ou ainda sabemos muito pouco, ou quem sabe, jamais chegaremos a saber.
Rui Cavallin Pinto