quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Zoneamento de Curitiba 2: os Códigos de Posturas (1895-1960)

 Zoneamento de Curitiba 2: os Códigos de Posturas (1895-1960)


João Cândido Martins - Data: 13/09/2019
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Continuando à história do zoneamento em Curitiba, o Nossa Memória agora se debruça sobre a virada do século XIX para o XX, indo até 1953.

Detalhe do mapa de Curitiba de 1915 que retrata o zoneamento editado em 1912. (Foto: Acervo Paulo José da Costa)

O pesquisador Rafael Augustus Sêga, em sua monografia “Melhoramentos da capital: a reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916)”, apresentada na Universidade Federal do Paraná em 1996, comenta sobre o Código de Posturas de Curitiba aprovado no ano de 1895. Segundo ele, a norma “denotava a persistência dos legisladores em continuar a esquadrinhar as mais particulares manifestações de seus habitantes”. Em seus 380 artigos, o código abrangia desde temas gerais como a higiene pública e o quadro urbano até pormenores como conservação de árvores e extinção de formigueiros. "É pertinente notar que as posturas municipais eram eficazes porque o não cumprimento de suas normas era passível de penalidade. Seus artigos especificam detalhadamente todos os pormenores das edificações, ruas e avenidas”, dizem Regina Gouvea e Mariza Schaaf, no livro “Significados da urbanização”, mencionado por Sêga em seu trabalho.

“O processo edificatório das duas primeiras décadas do século 20 foi regido pelo Código de Posturas de Curitiba aprovado em 1895, que sofreu algumas alterações. (...) esse período foi caracterizado por uma ação da administração pública mais incisiva no meio urbano. Se as obras públicas de infraestrutura marcaram a forma como os governantes agiram diretamente sobre a cidade, a legislação urbanística regulou a forma como os habitantes deveriam construir, ou seja, estabeleceu a forma como a administração pública induziu a transformação do meio urbano com os aspectos desejados, sempre com o quadro urbano delimitando os espaços onde a legislação incidiria, havendo, com o tempo, a necessidade de se ampliar este controle com a instituição das zonas fiscais”, explica o pesquisador Otto Braz de Oliveira, em seu estudo “O quadro urbano e o processo edificatório em Curitiba: 1919-1953”, apresentado na Universidade Federal do Paraná, em 2016. Todas as leis citadas nessa matéria do Nossa Memória podem ser encontradas aqui, com exceção dos Códigos de Posturas de 1895 e de 1953.

Mapa publicado no Almanach Paranaense para o ano de 1900, Curityba, Correia & Comp, 1899. Com edições de Elizabeth Amorim de Castro. (Foto: Reprodução/As virtudes do bem morar)

Desde o início do século 20, o Município passa a editar legislações que, a partir do quadro urbano, delimitavam áreas com características próprias. Foi o caso, por exemplo, das leis 117/1903 e 177/1906. A primeira delimitava o quadro urbano que se manteve inalterado até 1929. Já nesse momento, a norma subdividiu o quadro urbano em áreas de interesse. “Essas subdivisões, além de obedecerem a critérios de taxas e de cobrança de impostos, também demarcavam restrições e obrigações às edificações”, diz Otto Oliveira. A lei de 1906 estabelecia o perímetro onde poderiam ser construídas casas de madeira. Esta lei proibiu essas construções na zona central, hierarquizando o uso do solo. Outro aspecto que confirma esse processo diz respeito à altura (gabarito) dos edifícios da zona central, que obrigatoriamente deveriam ser construídos com dois ou mais pavimentos.

A lei 341/1912 não alterou o quadro urbano, mas instituiu três zonas de interesse distribuídas de forma concêntrica (do centro para a periferia). Taxas e impostos variavam de acordo com a zona onde o terreno se encontrava. Essa lei também estabeleceu um imposto anual incidente sobre terrenos não edificados, correspondente a 1% do seu valor venal. Os valores eram estabelecidos conforme a metragem linear da testada, mas havia variações entre as zonas. Os terrenos não edificados na primeira zona tinham estes valores quase três vezes maiores que os da segunda zona, e oito vezes maiores do que os da terceira zona.




























Mapa de Curitiba de 1914, com as delimitações das zonas propostas em 1912. (Foto: Reprodução/As virtudes do bem morar)


Em 1912, quando Curitiba foi dividida em zonas pela lei 341, a cidade vivia as reformas promovidas pelo prefeito Cândido de Abreu. (Foto: Acervo/Cid Destefani)

Rafael Sêga estudou as reformas urbanas promovidas pelo prefeito Cândido de Abreu (1913-1916), que ficaram conhecidas como “melhoramentos” - sobre esse tema, leia mais aqui. O autor destaca “a hierarquização das regiões da cidade. A zona central foi o palco das reformas estudadas nesse trabalho; era onde a fiscalização tornava-se mais rigorosa e as edificações deveriam ser de alvenaria. A segunda zona era destinada às indústrias e a terceira, às moradias dos operários e pequenos sitiantes”. Em 1913 foi aprovada a lei 376/1913 que dispunha sobre o parcelamento do solo. Esta norma determinava que quem desejasse subdividir determinada área de terreno deveria reservar lotes para fins de “utilidade municipal”, tanto no quadro urbano quanto no rocio.

A comparação entre os mapas de Curitiba de 1900 (foto 2) e 1914 (foto 4) revela “os objetivos de hierarquização do espaço e de valorização da região central por intermédio da definição de padrões construtivos mais elaborados nas principais ruas da cidade (15 de Novembro e Liberdade) e na Praça Tiradentes juntamente à proibição da construção de casas de madeira no entorno. O zoneamento estabelecido em 1912 consolida tal ação, delimitando estes perímetros inseridos na primeira e na segunda zona, onde os padrões construtivos são mais rígidos e controlados”, diz Elizabeth Amorim de Castro, na pesquisa “As virtudes do bem morar”.

O Código de Posturas de 1919 se limitou a revisar toda a legislação sobre zoneamento editada em Curitiba desde 1895. (Foto: Reprodução/Internet)

O Código de Posturas do Município aprovado em 1919 (lei 527/1919) criou 3 zonas para efeitos fiscais: zona urbana, suburbana e rocio. “A zona urbana compreendia todos os terrenos que estavam situados nas ruas, praças e avenidas dentro dos limites do quadro urbano. A suburbana ocupava uma faixa de 1km além dos limites do quadro urbano; e o rocio, o espaço existente entre a zona suburbana e os limites do município” explica Otto Oliveira. Além disso, o texto do código também estipulava que a cada uma das zonas caberia um regime administrativo e fiscal específico. Para Oliveira, este código não inovou, sendo apenas uma compilação das legislações promovidas em Curitiba desde o Código de 1895. Ainda segundo ele, a lei 376/1913 e o Código de Posturas de 1919 pretendiam integrar de uma forma mais adequada os novos loteamentos à estrutura urbana já existente.

Anos 1920 e 1930

Mapa de Curitiba de 1927. (Foto: Acervo: Casa da Memória/Diretoria do Patrimônio Cultural/Fundação Cultural de Curitiba)

Dez anos depois, o prefeito Eurides Cunha enviou uma mensagem à Câmara em que dizia que o quadro urbano estava defasado, pois a área delimitada como suburbana (faixa de 1km além da zona urbana) já se encontrava loteada e arruada. Para ele era necessário rever o perímetro da zona urbana e instituir um imposto sobre as propriedades localizadas nessa faixa. O prefeito também requisitou a criação de um imposto sobre os terrenos edificados e não-edificados que fosse proporcional ao valor locativo (para casas) ou venal (para terrenos). “Pouco tempo depois, em 27 de maio de 1929, o resultado desses dois pedidos pode ser verificado quando da promulgação da lei 768/1929, que estabelece novas faixas de imposto, um novo quadro urbano e uma nova zona suburbana”, observa Otto Oliveira.

Praça Osório na década de 30. Levantamentos fotoaerogramétricos possibilitaram que Curitiba se tornasse a 3ª cidade brasileira a ter uma pĺanta cadastral feita nesses moldes. (Foto: Acervo Casa da Memória/Diretoria do Patrimônio Cultural/Fundação Cultural de Curitiba)

A gestão do prefeito Lothário Meissner (1932-1937) foi marcada pela preocupação com a cidade como um todo. O prefeito era favorável à criação de um plano que coordenasse as modificações e acréscimos da cidade, mas para isso era necessário concluir o levantamento aerofotogramétrico. Quando esse serviço foi concluído em 1934, o prefeito comemorou, pois Curitiba era a 3ª capital do Brasil a possuir uma planta cadastral feita com essa técnica. De acordo com Otto Oliveira, até o fim de sua gestão não houve a criação da chamada “Comissão da Cidade” (cujo objetivo seria cooperar com a prefeitura na organização do plano geral da cidade), mas foi promulgada a lei municipal nº 50, que revisava os parâmetros para o parcelamento de solo na capital.

Agache

Esquema concêntrico do Plano Agache para a cidade de Curitiba. (Foto: Montagem Lolo Cornelsen)

Em janeiro de 1941, Curitiba assina um contrato com a empresa Coimbra Bueno &
Cia. Ltda. com o intuito de elaborar o primeiro plano diretor da cidade. O prefeito era Rozaldo de Mello Leitão e a população era composta por pouco mais de 140 mil pessoas. Pertencia ao corpo técnico da empresa contratada o engenheiro e urbanista Alfred Donat Agache (cujo nome foi usado para batizar o plano instituído em Curitiba dois anos depois). Leia mais sobre o Plano Agache aqui. Entre as propostas do plano, estava o zoneamento da cidade (zoning). “O zoneamento é a base de todo o plano de urbanização podendo-se mesmo dizer que sem ele o plano não é urbanismo [...]. O zoneamento é a garantia do proprietário e o incentivo de valorização justa. Simplifica, disciplina e hierarquiza as funções urbanas e reflete o nível de cultura dos seus habitantes”, disse o urbanista no texto de apresentação de seu plano para Curitiba. O zoneamento seria o suporte para a implantação do que Agache denominava “centros”, sendo eles: o Centro Cívico; o Centro Comercial e Social; os Centros de abastecimento; a Zona Industrial; o Centro Esportivo; a Estação Rodoviária; o Centro de instrução; e o Centro Militar. Tais centros seriam interligados por vias perimetrais e radiais numa lógica concêntrica.

Mapa de Curitiba de 1944, um ano após a implantação do Plano Agache. (Foto: Reprodução/As Virtudes do bem morar)

“A organização da cidade através de Centros Funcionais; o conceito de ‘Zoning’, ou zoneamento; a adoção de um Código de Edificações, implantado em 1953, que permitia a execução de novos edifícios com adequadas soluções sanitárias; e principalmente um novo desenho urbano a ser conseguido através de um ambicioso Plano de Avenidas - foram as principais propostas do Plano Agache”, explica Salvador Gnoato, em seu estudo “Curitiba, cidade do amanhã: 40 anos depois algumas premissas teóricas do Plano Wilheim-IPPUC”, publicado pela revista Vitruvius em 2006. Para Gnoato, a proposta do urbanista francês não foi totalmente adotada e se mostrou falha com o tempo, pois “Agache apresentou um Plano de Avenidas concêntrico, típico das cidades do século 19, sem uma proposta definida de adensamento e de verticalização”.

O Código de Posturas de 1953

Mapa de Curitiba entre os anos de 1947 a 1953, ano em que foi instituído um novo Código de Posturas. (Foto: Acervo Museu Paranaense)

Este código teve como impulso o fato de que as normas que regulamentavam as construções e outros aspectos da urbe ainda eram as mesmas que estavam vinculadas ao Código de Posturas de 1919, isto é, defasadas em relação às novas condições populacionais da cidade. Além disso, a legislação complementar era dispersa. Otto Oliveira aponta que “contrariamente ao que foi verificado para o código de 1919, a saber, que ele foi uma síntese das leis elaboradas nas duas primeiras décadas do século 20, o Código de Posturas de 1953 (lei 699/1953) alterava praticamente tudo o que existia antes”. Curitiba contava com aproximadamente 180 mil habitantes.

Quanto ao zoneamento, a classificação do Código de 1953 delimita espaços funcionais em quatro macro zonas: comercial, industrial, residencial e agrícola. Cada uma é subdividida, totalizando onze zonas. Questões como o que pode ser construído em cada zona e os parâmetros construtivos de cada área são contemplados no texto. “O quadro urbano e as zonas fiscais não deixaram de existir, porém voltaram a sua função inicial, apenas regular a arrecadação de impostos da cidade”, esclarece Otto Oliveira. Para se ter uma ideia das diferenças entre o Código de 1919 e o de 1953, o primeiro classificava as construções em “habitações em madeira” e “prédios em geral”. Já o Código de 1953 listava mais de 25 tipos diferentes de construções, como casas, galpões, escolas, teatros, garagens, etc.

Na década de 50, um trecho da rua XV ficou conhecido como “Cinelândia Curitibana”. (Foto: Reprodução/Internet)

O Código de 1953 foi uma tentativa de superar o que fora estabelecido pelo Código de 1919, que utilizava o quadro urbano, zonas fiscais e as três zonas (urbana, suburbana e rocio). Uma prova disso é que ainda nos anos 1940 outras áreas foram criadas com regras próprias para que a organização da cidade fosse mais eficiente. “Parecia não haver coerência entre os discursos que pregavam por um planejamento a longo prazo e as leis, o que concorreu para a necessidade de uma alteração radical na forma como se organizava o meio urbano, materializada com o Código de Posturas e Obras de 1953”, explica Otto Oliveira. Novas mudanças aconteceriam somente em 1960, com a aprovação das primeiras leis específicas sobre zoneamento em Curitiba. É o que se verá no próximo texto, que finaliza essa série.



Referências Bibliográficas
Castro, Elizabeth Amorim de; Trindade, Leda; Posse, Zulmara Clara Sauner. As virtudes do bem morar. Curitiba, 2012. 

Castro,Elizabeth Amorim de; Sganzerla, Eliane; Posse, Zulmara Clara Sauner. O matadouro municipal e o Guabirotuba. Curitiba, 2015 

Costa, Paulo José da. Viajando pelo Mappa do Municipio de Coritiba, de 1915.

Gnoato, Salvador. Curitiba, cidade do amanhã: 40 anos depois algumas premissas teóricas do Plano Wilheim-IPPUC. Texto apresentado no 1° Seminário de Cidade Contemporânea – Curitiba de Amanhã 40 anos depois (1965-2005), em 2, 14 e 15 de setembro de 2005, organizado pelo PPGTU e pelo Grupo de Pesquisa: Teoria e História e Arquitetura e Urbanismo da PUCPR. Publicado em Vitruvius, maio de 2006. 

IBGE. População dos municípios das capitais e Percentual da população dos municípios das capitais em relação aos das unidades da federação nos Censos Demográficos. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. [Link aqui]

Oliveira, Otto Braz de. O quadro urbano e o processo edificatório em Curitiba: 1919-1953. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em História – Memória e Imagem, pelo curso de História – Memória e Imagem da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Professor Doutor Antonio Cesar de Almeida Santos. Curitiba, 2016. [Link aqui]

Rodrigues, Janelize Marcelle Diok. Em busca de modernização: o legado do arquiteto Donat Alfred Agache para a cidade de Curitiba. Monografia apresentada como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Professor Doutor Dennison de Oliveira. Curitiba, 2010.

Sêga, Rafael Augustus. Melhoramentos da capital: A reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916). Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Curso de Pós-Graduação em História do  Brasil, opção em História Social, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 1996.

Zoneamento de Curitiba 3: O Plano Diretor de 66 e seus desdobramentos (1960-2019)

 Zoneamento de Curitiba 3: O Plano Diretor de 66 e seus desdobramentos (1960-2019)


João Cândido Martins - Data: 13/09/2019
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A partir dos anos 2000, expressos biarticulados e ônibus “ligeirinhos” passaram a integrar o transporte coletivo em Curitiba (Foto: Mailson Amâncio)Em 2011, foi aprovada a Linha Verde, uma operação urbana consorciada que propôs mudanças no uso e na paisagem da BR 116. (Foto: Arquivo/CMC)Mapa do zoneamento da cidade em 2016. (Foto: Acervo Ippuc)

Imagem aérea de Curitiba no início dos anos 60, quando foi aprovada a primeira lei de zoneamento da cidade. (Foto: Reprodução/Internet)

Aproximadamente 340 mil pessoas habitavam o território de Curitiba em 1960. As duas primeiras leis específicas sobre zoneamento em Curitiba foram editadas naquele ano, na gestão do prefeito Iberê de Mattos. Foram elas o Plano Piloto de Zoneamento de Uso e sua regulamentação (lei 1.875/1960) e o Mapa de Zoneamento de Unidade Central (lei 1.951/1960). Tais legislações duraram até a gestão do prefeito Ivo Arzua, quando foi aprovado o novo Plano Diretor (lei 2.828/1966), que vinha em substituição ao Plano Agache e que acabou marcando a história de Curitiba. “Este ordenamento trazia uma seção destinada ao sistema viário (Seção I do Capítulo II) e outra ao zoneamento proposto para o município (Seção II do Capítulo II), compreendendo 38 dos 65 artigos contidos nesta lei. Em definitivo, o maior volume do Plano Diretor destinava-se a propor o zoneamento de uso e ocupação do solo da cidade”, diz Noélia de Moraes Aguirre Carnasciali, autora da pesquisa “Legislação de zoneamento de uso e controle do solo como minimizador de conflitos gerados por atividades econômicas: um estudo de caso em Curitiba-PR”, apresentada no mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em 2017.

Avenida Marechal Deodoro e Praça Zacarias em 1966, quando foi aprovado o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU) de autoria do urbanista Jorge Wilheim, que serviu de base para as diretrizes do Plano Diretor elaborado pelo Ippuc. (Foto: Reprodução/Internet)

“A síntese do planejamento urbano desenvolvido pelo Ippuc [Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba], a partir das diretrizes de [Jorge] Wilheim, se baseou no tripé: uso do solo, transporte coletivo e circulação” diz Salvador Gnoato em texto publicado no site Vitruvius em 2006. No que diz respeito ao zoneamento, essa legislação previa uma setorização da cidade em 15 zonas diferenciadas em função do seu uso prioritário, sendo elas: Zona Residencial (1, 2, 3, 4 e 5), Zona Comercial (1, 2 e 3), Zona Industrial (1 e 2), Zona Especial, Zona Rural, Estrutural, Área Verde e Expansão Urbana. Os parâmetros urbanísticos da lei estabeleciam usos, área mínima do lote, testada do lote, taxa de ocupação, área edificada permitida e afastamentos para cada zona. Quanto aos usos, esta lei estipulava os usos permitidos, os proibidos e os permissíveis, sendo que caberia ao Conselho de Zoneamento deliberar sobre sua liberação.

“Para o centro de Curitiba foi mantida a permissão de verticalização, mas o futuro crescimento deveria acontecer em novos 'centros lineares', chamados de Eixos Estruturais. Considerando a vocação do bairro do Portão, como centro comercial, determinou-se que a Avenida Republica Argentina deveria compor o Eixo Sul. Para o Eixo Norte escolheu-se o prolongamento da Avenida João Gualberto, e para o Eixo Oeste ficou determinado um conjunto de ruas, ainda pouco ocupadas”, diz Salvador Gnoato. O centro da cidade compreendia a Zona Comercial Principal (ZC1) que, por sua vez, era circundado por uma Zona de Tendência Comercial (ZC2). De acordo com Carnasciali, estas zonas comerciais previam a implantação prioritária para os usos de comércio, serviço e cultura. Alguns usos, como habitação coletiva de pequenas dimensões por unidade habitacional e templos religiosos tinham liberação controlada, sendo considerados permissíveis.

Zoneamento de Curitiba em 1966 (lei 2.828/1966). (Foto: Acervo Ippuc)

“É evidente que o Plano de 1966 por meio do zoneamento do uso do solo tem a intenção de definir paisagens nas diversas áreas da cidade. Nos eixos estruturais são predominantes os edifícios com alturas pré-determinadas formando um skyline bem definido, em uma paisagem marcada pelo sistema trinário, com boa quantidade de áreas verdes e espaços abertos como praças e parques, equipados com infraestrutura, mobiliário urbano e serviços públicos”, diz Diogo Lüders Fernandes, em sua pesquisa “O impacto dos planos diretores na satisfação de visitantes e visitados e na imagem do destino turístico Curitiba”, de 2015.

Antes de ser editada uma nova lei de zoneamento, outras legislações versaram sobre o tema. De acordo com texto sobre o zoneamento em Curitiba publicado pelo site da prefeitura, “em 1969, a lei 3.503 revisou o Zoneamento, definindo novas Zonas Residenciais e Comerciais e disciplinando as Zonas de Expansão urbana. Em 1971, a lei 3.943 regulamenta o uso do solo e o sistema viário. Ainda em 1971, o decreto 1.160 delimitou o Setor Histórico de Curitiba”.


Novidades em 1972 e 1975

Mapa do plano de zoneamento de Curitiba de 1972. (Foto: Acervo Ippuc)

O plano diretor de 66 só foi efetivamente posto em prática na gestão do arquiteto Jaime Lerner. Até aquele momento, o plano foi usado apenas como lei de zoneamento. Em 1972, uma nova legislação de zoneamento é aprovada (4.199/1972). Nesse momento a cidade contava com mais de 483 mil habitantes. “Observa-se duas grandes motivações na produção desta legislação, uma delas refere-se ao detalhamento do Setor Estrutural que havia sido delineado no Plano Diretor de 1966, porém não detalhado, e a inclusão de um Distrito Industrial no município”, diz Carnasciali. Ainda segundo essa autora, em relação à lei anterior, a lei de zoneamento de 1972 aumentava o número de zonas com a criação de setores especiais (educacional, histórico, desportivo, vias coletoras, vias de expansão e preferencial de pedestre).

Esta lei de zoneamento trouxe uma nova maneira de se lidar com as vias estruturais. O arquiteto e então presidente do Ippuc, Rafael Dely, sugeriu um sistema de fluxo composto por três vias paralelas, sendo uma central de tráfego lento, onde deveria se concentrar o comércio e por onde circulariam os ônibus expressos. O sistema – que ficou conhecido como “Trinário” – teria ainda mais duas vias rápidas paralelas à central, uma no sentido centro-bairro e outra no sentido inverso. “Depois de implantados, os Eixos Estruturais, onde se localizam os edifícios de maior altura, se apresentam como uma megaestrutura para Curitiba, definindo seu desenho urbano. Nas áreas contíguas das estruturais, caracterizadas como ZR4, foi permitida a execução de edifícios de média densidade, com seis a dez pavimentos. Em seu conjunto, Curitiba mantém uma estrutura viária radial, mas com concepção diferente do Plano Agache, pois o sistema linear das estruturais domina a paisagem”, observa Salvador Gnoato. As zonas contíguas ao setor estrutural foram designadas como zonas residenciais (ZR3) com uso habitacional unifamiliar, multifamiliar e coletivo e um repertório abrangente de atividades de uso comercial: estabelecimentos de ensino, bibliotecas, recreação e culto, instituições de crédito, escritórios de profissionais liberais etc, explica Carnasciali.

Uma das características das mudanças promovidas em 1972 foi a adoção do sistema trinário, em que uma via central, onde transitam os ônibus expressos, é ladeada por duas vias rápidas. (Foto: Acervo Urbs)

“Uma nova lei de zoneamento, aprovada em 1975, durante a gestão do prefeito Saul Raiz, passou a ser ferrenhamente defendida e mantida pelos urbanistas da prefeitura. Nesta lei (5.234/1975), o uso do solo e seus desdobramentos de coeficiente de aproveitamento e de altura dos edifícios, estavam atrelados às concepções dos Eixos Estruturais e do Sistema de Transporte Coletivo. As três gestões consecutivas na Prefeitura, com a mesma equipe de urbanistas, garantiu o sucesso da implementação do urbanismo de Curitiba” diz Salvador Gnoato. Para Carnasciali, é possível observar nesta legislação um refinamento das codificações técnicas. A legislação passa a usar novas terminologias para designar as características das zonas residenciais e a classificação do comércio e serviço, além de passar a também indicar terminologias diferenciadas para os parâmetros urbanísticos, como taxa de ocupação e coeficiente de aproveitamento. Adota-se mais uma classificação do uso: os usos tolerados.


Mapa do plano de zoneamento de Curitiba de 1975. (Foto: Acervo Ippuc)

O decreto 641/1974 instituiu as áreas necessárias para a implantação da Cidade Industrial de Curitiba (CIC). Ao todo, o distrito passou a ter mais de 43 km², sendo que foram necessárias desapropriações para sua implantação. “Além disto, como medida de incentivo à instalação de indústrias, o governo criou incentivos fiscais e concedeu isenção de impostos”, informa Carnasciali. O zoneamento da Cidade Industrial de Curitiba oficializa-se por meio da lei 4.773/1974. Houve uma ligação entre as BRs 116 e 277, sendo destinada uma faixa para as atividades industriais, em cujo eixo localiza-se a atual avenida Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Anos 1980 e 1990

Os anos 90 foram marcados pela implantação de vários parques pela cidade, o que garantiu a Curitiba o título de Cidade Ecológica. Na foto, o Bosque Alemão. (Foto: Reprodução/Curitiba do Passado – Fotos Antigas, no Facebook)

A população de Curitiba em 1985 era de 1,285 milhão de pessoas. A crise econômica que assolou o país naquela década e na posterior retraiu os investimentos em planejamento urbano. De acordo com Laisa Eleonora Marostica Stroher, em “A metrópole e o planejamento urbano: revisitando o mito da Curitiba-modelo”, apresentado como tese de mestrado na USP em 2014, em Curitiba a situação não foi diferente, mas “a partir da década de 1990, ocorre uma nova onda de investimentos na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), principalmente no setor automobilístico, fruto da reestruturação produtiva/territorial do capitalismo em curso. As transformações em decorrência da instalação desses novos empreendimentos, aliadas à contração dos investimentos públicos em áreas estruturais (como em infraestrutura urbana e habitação) fomentaram diversos conflitos socioambientais na metrópole, que colocam em cheque o discurso hegemônico sobre Curitiba”.

Quanto ao Ippuc, a partir da década de 1980 sua ação foi se deslocando da “infraestrutura pesada” (como os eixos e a CIC) para projetos pontuais, como parques, monumentos e atrações urbanas. “Uma das poucas ações divulgadas na década de 1980 se refere à aprovação do instrumento do solo criado, por meio do mecanismo da transferência do potencial construtivo (lei 6.337/1982). No entanto, o instrumento só passou a ser amplamente aplicado na década de 1990”, diz Stroher. Para a autora, a década de 1990 representou o auge da produção dos “projetos inovadores”, dotados de forte apelo visual. “Alguns dos exemplos de mais destaque são: os parques temáticos (como o Jardim Botânico, além de alguns parques em homenagem a determinadas etnias), a Ópera de Arame, os Faróis do Saber, a Rua 24 Horas, entre outros. Destaque ainda para as estações tubo e os novos modelos de ônibus (ligeirinhos)”. Foram construídos em torno de 25 parques nas décadas de 1980 e 1990, grande parte viabilizada através do instrumento da transferência de potencial construtivo. Os novos parques e as inovações no transporte público serviram como os principais elementos para a sustentação da ideologia da “Capital Ecológica”.














A partir dos anos 2000, expressos biarticulados e ônibus “ligeirinhos” passaram a integrar o transporte coletivo em Curitiba (Foto: Mailson Amâncio)

Nos anos 1990, foi aprovada ainda outra modalidade de solo criado: o instrumento da
outorga onerosa pelo direito de construir (através das leis 7.420/1990 e 7.841/1991). “As leis autorizaram o direito de construir além do permitido em determinadas áreas do município, mediante pagamento de uma contrapartida (parte dos lucros adicionais proporcionados), através do pagamento em dinheiro ou em terreno de valor equivalente a 75% do valor da área acrescida. Bens estes destinados para implantação de programas habitacionais de interesse”, explica Stroher.

2000
Em 2000, quando Curitiba já contava com mais de 1,5 milhão de habitantes, foi aprovada a legislação de zoneamento atualmente em vigor (lei 9.800/2000). Carnasciali lembra que ela é anterior ao Estatuto da Cidade (lei federal 10.257/2001) e à adequação do Plano Diretor de Curitiba ao Estatuto da Cidade (lei 11.266/2004). A lei de zoneamento de uso e ocupação do solo vigente é adicionada por leis e decretos complementares compondo o corpo da legislação. É a lei que estabelece as regras no caso de concessão de alvarás de construção e de funcionamento. “Ao todo, a lei e os decretos complementares instituíram 60 zonas e setores diferentes no município, um aumento considerável em relação à legislação anterior, que contava com aproximadamente 25 zonas apenas”, salienta Carnasciali.

Em 2011, foi aprovada a Linha Verde, uma operação urbana consorciada que propôs mudanças no uso e na paisagem da BR 116. (Foto: Arquivo/CMC)

Para a pesquisadora, “isto pode ser interpretado como a complexificação do território e de suas funções, porém também de um refinamento da compreensão do território, dotando-o de maior especificidade”. As zonas e setores da cidade se dividem em Zona Central, Zonas Residenciais, Zona de Serviços, Zona de Transição, Zona Industrial, Zona de Uso Misto, Zonas Especiais, Setores Especiais, Zona de Contenção, Área de Proteção Ambiental e Operação Urbana Consorciada Linha Verde. Estas zonas e setores se desdobram em subdivisões que derivam nas sessenta zonas e setores mencionados. Ainda segundo Carnasciali, “o zoneamento de Curitiba de 2000 apresenta algumas permanências em relação ao anterior. A principal delas é o desenvolvimento do Setor Estrutural e da disposição das zonas residenciais em relação a ele. Entretanto, surgem novos eixos de adensamento que promovem a descaracterização da linearidade inicial da proposta de zoneamento em Curitiba. Estes eixos se desenvolvem ao longo das vias: Marechal Floriano, Comendador Franco, Presidente Wenceslau Braz, Presidente Affonso Camargo e Engenheiro Costa Barros”.


Hoje
Mapa do zoneamento da cidade em 2016. (Foto: Acervo Ippuc)

A adequação do Plano Diretor de Curitiba ao Estatuto da Cidade, aprovada em 2004 (leia mais), também continha algumas medidas quanto ao zoneamento de Curitiba. Da mesma forma, o novo Código de Posturas aprovado naquele ano (lei 11.095/2004). Outras iniciativas isoladas no campo do zoneamento foram igualmente adotadas nos anos seguintes, como foi o caso da lei 13.909/2011, que criou a Linha Verde, uma operação urbana consorciada que propôs mudanças no uso e na paisagem da BR 116 que cortava o município. “O eixo da antiga BR é proposto como de uso predominantemente residencial de edificações de altura livre. Os polos da Linha Verde são propostos como centros com concentração de comércio e serviço de alta densidade e altura livre”, explica Carnasciali.

O Plano Diretor de 2004 dava um prazo de três anos para a revisão e aprovação de uma nova lei de zoneamento, mas somente após a aprovação do plano diretor de 2015 (lei 14.771/2015) o processo teve encaminhamento. Esse último Plano Diretor também conta com dispositivos sobre o zoneamento da cidade. É o caso do macrozoneamento, elencado entre os artigos 19 e 23; e do parcelamento, uso e ocupação do solo, previsto entre os artigos 24 e 32. Para saber mais sobre os desafios que os vereadores enfrentarão na votação do projeto de zoneamento de Curitiba em 2019 (005.00105.2018), convém assistir a entrevista de Alberto Paranhos, assessor especial do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) e coordenador da revisão do zoneamento da cidade, publicada no site da Câmara Municipal de Curitiba em 11 de abril.



Referências Bibliográficas

Carnasciali, Noélia de Moraes Aguirre. Legislação de zoneamento de uso e controle do solo como minimizador de conflitos gerados por atividades econômicas: um estudo de caso em Curitiba-PR. Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em Gestão Urbana, ao Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, da Escola de Arquitetura e Design da Pró-Reitoria de Graduação, Pesquisa e Pós-Graduação da Pontifícia Católica do Paraná. Curitiba, 2017.

Fernandes, Diogo Lüders. O impacto dos planos diretores na satisfação de visitantes e visitados e na imagem do destino turístico Curitiba. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, curso de Doutorado, Setor de Ciências da Terra da
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2015. 

Gnoato, Salvador. Curitiba, cidade do amanhã: 40 anos depois algumas premissas teóricas do Plano Wilheim-IPPUC. Texto apresentado no 1° Seminário de Cidade Contemporânea – Curitiba de Amanhã 40 anos depois (1965-2005), em 2, 14 e 15 de setembro de 2005, organizado pelo PPGTU e pelo Grupo de Pesquisa: Teoria e História e Arquitetura e Urbanismo da PUCPR. Publicado em Vitruvius, maio de 2006. 

IBGE. População dos municípios das capitais e Percentual da população dos municípios das capitais em relação aos das unidades da federação nos Censos Demográficos. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 

Stroher, Laisa Eleonora Marostica. A metrópole e o planejamento urbano: revisitando o mito da Curitiba-modelo. Dissertação apresentada a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, 2014. [Link aqui]

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