A Rua das Flores onde flores não havia
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Setembro, mês que marca o início da primavera, é o período em que a polinização mareja os olhos dos alérgicos e florescem as flores que sobreviveram às geadas. Em Curitiba, a chegada da primavera retoma a vontade de frequentar parques, bosques e jardins, como o Botânico. Mas se tem algo que realmente parece combinar com a primavera é a Rua das Flores, atual Rua XV de Novembro.
Rua das Flores foi o nome escolhido pela Câmara de Curitiba para batizar o novo caminho aberto no centro lá pelos anos de 1820 e 1830, para que os moradores que se espalharam ao sul do Largo da Matriz (atual Praça Tiradentes) pudessem ir às missas. Na época, a Rua das Flores não tinha mais do que 3 quadras, e ligava a Rua das Lisboas (atual Riachuelo) à Rua do Jogo da Bola (atual Dr. Muricy); entre elas, ficava a Travessa da Matriz (atual Monsenhor Celso), que conectava a Rua das Flores à Catedral.
Embora o nome deduza seu significado, na Rua das Flores não havia flores. A denominação, segundo o historiador Ruy Wachowicz, era uma cópia de uma via de São Paulo, capital da província da qual Curitiba fazia parte e, por isso, da qual era dependente. Outros nomes de ruas de Curitiba, como Rosário, Direita, Comercio, Jogo da Bola, etc., também foram copiados da cidade de São Paulo.
Se fosse para fazer juz às reais características da via, a Rua das Flores jamais poderia ter esse nome. Que tivesse aqui ou ali um flor em terreno baldio, ou em algum pequeno jardim nas casas e comércios construídos ao longo dela, mas o que de fato havia na Rua das Flores, e em abundância, era excrementos de bípedes e quadrúpedes, além de lixo jogado aos cantos.
A Rua das Flores estava longe de ser um cartão-postal curitibano. Muitos reclamavam das calçadas irregulares, da estrada desnivelada, dos potreiros e cochos espalhados entre residências e pedestres, e, claro, do pó e da lama que sujava finos trajes de sinhôs e sinhás, quando estes não eram carregados em liteiras pelos seus escravizados, que andavam descalços. E nem teria como a Rua das Flores ser diferente; na verdade, ela era o fiel retrato da Curitiba colonial, provinciana e escravocrata, imagem que até hoje o poder público tenta apagar.
Esse cenário somente foi alterado quando, ironicamente, a Rua das Flores deixou de ter esse nome. Quando da visita da corte imperial ao Paraná, em 1880, o característico puxa-saquismo monárquico (ou “bajulações acariciadores e mimoseadas”, de acordo com o sarcástico Wachowicz) levou a Câmara de Curitiba a rebatizar a Rua das Flores de Rua da Imperatriz. Tendo em vista a necessidade de aprovação dos “sangue azul”, a prefeitura nivelou e aumentou a Rua da Imperatriz, que passou a conectar a atual Praça Osório à atual Praça Santos Andrade, dimensão que logo depois foi estendida até o Alto da XV.
Nessa época, Curitiba experimentava crescimento nunca antes visto. A inauguração da Estrada da Graciosa, a construção da Estrada de Ferro Paranaguá-Curitiba e a economia da herva matte permitiram o aumento da população e o surgimento da burguesia capitalista local. Frente a isso, a aparência passadista da Rua da Imperatriz não mais combinava com o projeto de progresso civilizador pretendido pela elite.
Para tanto, com o advento da República, novamente a antiga Rua das Flores foi rebatizada, agora para Rua XV de Novembro, em homenagem à data em que a República foi proclamada. De cofres cheios, a prefeitura então revestiu a XV com paralelepípedos e investiu em iluminação pública, algo que diminuiu o barro e o pó, o trânsito de animais e os amores proibidos. Isso fez da XV a principal artéria de Curitiba, sendo caminho para quem ia à missa, ao Passeio Público e à Estação, bem como ponto de encontro para paqueras e famílias que frequentavam os bares, cafés e lojas que se espalhavam na Rua XV, transformada em área de luxo.
Essa tardia Belle Époque curitibana, à época chamada “Rainha do Sul”, colocou a cidade no mapa da civilidade, embora a capital continuasse provinciana, sendo a XV um de seus cartões-postais. Tanto que Olavo Bilac, no início do século XX, a descreveu como “um tapete chique de pedra e pó por onde passam os ritmos convulsivos do nosso tempo”. Ao famoso Café Mignon e à Louvre, somaram-se as luxuosas residências de figurões, bancos, imprensa e os automóveis que andavam a mil. Tudo isso construído sobre os escombros dos prédios do século XIX da rua Rua XV, todos derrubados com a “picareta bendita” do progresso, como escreveu Ruy Wachowicz.
Desses anos de 1920 até a Segunda Guerra Mundial, a Rua XV viveu seu auge. Na primeira gestão do prefeito Moreira Garcez, foi ela quem recebeu a primeira camada de asfalto do Paraná, cuja máquina, importada, “parecia uma vaca e que cuspia a todo momento um quente e preto mingau”. Daí em diante a via virou um caos, pois os carros estacionavam aos montes, por meio deles passavam os bondes e ao redor os ciclistas e pedestres, sendo o trânsito ausente de lombadas, semáforos e demais sinalizações. Mesmo assim, os cafés se multiplicaram, os cinemas surgiram, a Boca Maldita foi batizada e a Casa do Estudante inaugurada, tudo isso na XV, o coração de Curitiba.
Após absorver e refletir quase todas as transformações de Curitiba, a história da Rua das Flores que não tinha flores teve desfecho conciliador. Em 1972, o então prefeito da cidade Jaime Lerner fechou o leito da Rua XV, tornando-a calçada com Petit Pavê e exclusiva para pedestres. Embora tenha sofrido resistência dos comerciantes locais, a iniciativa foi fundamental para acabar com o insustentável trânsito da região. Nesse ínterim, também houve um projeto para fechar com telhado o calçamento da XV, que só não vingou pois, caso concretizado, os bombeiros não teriam como acessar os prédios em caso de incêndio. Na impossibilidade de transformá-la em uma espécie de quase-shopping, a prefeitura plantou árvores e canteiros de flores, chegando até a popularizar, ainda que de maneira não oficial, o nome Rua das Flores.
O fechamento da Rua XV, portanto, acertou contas com o passado, já que finalmente permitiu o cultivo de flores onde, até então, mal crescia o capim. O "tapete chique de pedras” se tornou, também, tapete de flores, sendo o nome Rua das Flores não só algo para paulista ver.
Texto e pesquisa de Gustavo Pitz
Fonte de pesquisa:
Ruy Wachowicz. “ História das Histórias da Rua XV”. Nicolau, Curitiba, n.55, setembro de 1994.
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