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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Violência, coronelismo e cotidiano nos tempos de José Fabrício das Neves

 Violência, coronelismo e cotidiano nos
tempos de José Fabrício das Neves



Detalhe de foto onde aparecem José Fabrício e seus
homens. Acervo: Reinaldo Antunes (Pinhão-PR).


Violências nos sertões

“O mundo do sertão do Contestado”, observa Monteiro (1972, p. 21), “é unanimemente descrito como um mundo de violência. Violência por questões de honra, violência por questões políticas, violência por questões de terra”. De certa forma, segundo o autor, essa violência era “consagrada nos costumes e as virtudes heróicas do campeador decantadas e transformadas em legenda”. Se a disputa era por terras, entram em jogo os interesses de grandes famílias e parentelas. No caso da honra, “agressor e vítima eram vítimas de um destino, que podia levar alguns à morte, lançando outros no banditismo como modo normal de vida: a honra ofendida e defendida constituem patrimônio de um grupo”.

No caso da violência política, a luta era travada em torno de chefes e interesses locais muito concretos, nunca em “torno de princípios ou de interesses materiais estranhos ao universos do sertanejo”. O crime propriamente dito no sertão era o de furto, particularmente o de gado, enquanto “o bandido solitário, que iniciava sua carreira a partir de um homicídio de honra e podia tornar-se um matador profissional, não sofria condenação moral – era vítima do destino”.

Nesse mesmo sentido, o chefe de uma grande família, que “comandava uma vasta clientela, era honrado, mesmo que suas posses de fundamentassem na violência expropriadora contra chefes rivais”, quando “a violência contra adversários políticos estava nos costumes”. Nada disso era crime, ou moralmente condenável. O autor diferencia esse tipo de violência, “costumeira”, com a inovadora, irrompida durante o conflito do Contestado – “se a violência costumeira faz-se entre homens que se representam no nível ideológico como iguais ou potencialmente iguais, ou entre homens efetivamente beneficiados por uma autonomia necessária, a violência inovadora surge como ruptura da consciência do nivelamento” (MONTEIRO, 1972, p. 28).

Fabrício e seu estado-maior. Catanduva-SC, 1919.
Acervo: Cecília Talim (Concórdia-SC).


Coronelismo

Falamos em coronelismo segundo o conceito clássico de Victor Nunes Leal, observados alguns reparos feitos por outros autores, citados adiante, e as conclusões da pesquisa empírica realizada. Para Leal (1997, p. 40), o coronelismo é, “sobretudo”, um “compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”. Resulta de uma “superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada”, não sendo “mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial”. Estamos diante de uma “forma peculiar de manifestação do poder privado”, ou uma “adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”.

O autor situa as bases do fenômeno na estrutura agrária brasileira, que sustentam as “manifestações de poder privado ainda tão visíveis [1949] no interior do Brasil” (LEAL, 1997, p. 40). Privatismo alimentado pelo poder público, destaca o autor, sob um “regime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável” (LEAL, 1997, p. 41). A principal crítica a esse modelo, feita por autores como José Ibarê Dantas, entre outros, e adotada por Machado (2004, p. 90-104), está na pouca importância que o processo eleitoral teria para o coronelismo. Ou seja, mais do que investir em eleições em que poucos votavam, e cujos resultados podiam ser alterados, os coronéis preferiam investir em milícia armada, na capacidade de mobilizar homens em armas em curto espaço de tempo.

No caso de José Fabrício das Neves, observamos que ele se aproxima do processo eleitoral através de assessores (expressão de Antônio Martins Fabrício das Neves em suas entrevistas). Sabemos que ele acompanha a movimentação eleitoral, mas não aparece como candidato ou dirigente partidário, o que ainda pode ou não ser confirmado com novas pesquisas. Como veremos, seu poder estava realmente em mobilizar tropas armadas.

Outra característica do coronel é a liderança, segundo Leal (1997, p. 41) aspecto que “salta aos olhos”. Segundo o autor, “dentro da esfera própria de influência, o ‘coronel’ como que resume em sua pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais”, e cujos detalhes empíricos específicos do estudo relacionamos anteriormente.

Ele, o coronel, também exerce ampla “jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos que os interessados respeitam”. Além disso, controlam “com ou sem caráter oficial, extensas funções policiais, de que freqüentemente se desincumbe com a sua pura ascendência social”, e que “eventualmente pode tornar efetivas com o auxílio de empregados, agregados ou capangas” (LEAL, 1997, p. 42). Também nesse caso, as evidências factuais foram relatadas nos capítulos precedentes.

Preocupado com a proliferação do uso do conceito desenvolvido por Leal, José Murilo de Carvalho discute a “imprecisão e inconsistência” com que é referido, muitas vezes confundido com mandonismo e clientelismo, que são característicos do coronelismo. “O coronelismo é um sistema político, uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos”, sendo um fenômeno datado. Surge na “confluência de um fato político” (o federalismo implantado pela República no lugar do centralismo do Império) numa “conjuntura econômica” específica, se extinguindo na década de 1930. Com a República, continua o autor, surge a figura do governador, “novo ator político”, eleito “pelas máquinas dos partidos únicos estaduais”, arregimentando as “oligarquias locais, das quais os coronéis eram os principais representantes” (CARVALHO, 1997, p. 1).

A conjuntura econômica a que se refere Carvalho, discutida inicialmente por Leal, era a de decadência dos grandes fazendeiros e o conseqüente enfraquecimento do poder político dos coronéis. Para manter esse poder, exigem a presença do Estado, que amplia a influência “na proporção em que diminuía a dos donos de terras”. Desse modo, o coronelismo surgiu da “alteração na relação entre os proprietários rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do coronel” (CARVALHO, 1997, p. 1-2).

Monteiro (1972, p. 10), observa que o poder dos chefes locais ou coronéis, “começa a ser crescentemente utilizado como instrumento do poder público encarnado pelas oligarquias estaduais”, e indiretamente de empresas “nacionais e estrangeiras envolvidas na implantação de projetos econômicos”. De acordo com Leal (1997, p. 64), o coronel usa o prestígio próprio, acrescido do que lhe é emprestado pelo poder público. “Sem a liderança do coronel – firmada na estrutura agrária do país –, o governo não se sentiria obrigado a um tratamento de reciprocidade, e sem essa reciprocidade a liderança do coronel ficaria sensivelmente diminuída”.

Tudo isso esclarece que existiram dezenas, talvez centenas de coronéis Fabrícios em todo o país, e que José Fabrício das Neves não foi um fenômeno isolado, nem alguém que inventou de mandar. Entretanto, devemos observar que o personagem surge em condições peculiares, através de um processo conturbado, sempre movido por um “ideal”, como analisado anteriormente. Por esse motivo, não analisamos até agora as relações entre quem manda e aquele que obedece. “É difícil caracterizar a relação de subordinação entre pecuaristas e seus peões e agregados”, constata Machado (2004, p. 95), questionando o uso generalizado do conceito de “relação patriarcal”.

No planalto catarinense, em especial no caso de José Fabrício, o “costume tradicional” era “balizado religiosamente pelos ensinamentos do monge João Maria como se fossem mandamentos para uma boa vida no sertão”, tendo por base “valores como o respeito, a defesa da vida e da honra, a lealdade, a sinceridade e o equilíbrio”. Ele nunca abandonou por completo os ideais de antigo maragato de luta pela “liberdade”, e continuou adepto da religiosidade cabocla dominante na região. Encarnou o papel de caudilho e coronel por ser a opção mais prática, talvez a única, no tempo e no espaço em que viveu.

Ilustração de Clóvis Medeiros.
O Estado (Florianópolis-SC), 24.7.1983.

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados. Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, p. 229-50, 1997. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-52581997000200003&script=sci_arttext. Acesso em: 12 abr. 2007.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. 1972. 283p. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.





Um caso ilustrativo

Cecília Boroski (Borowski) Talim, filha de José Fabrício e residente em Concórdia-SC, ouviu repetidas vezes de sua mãe, Josefa, alguns momentos do início da colonização de Itá. O atual município, cuja antiga sede está sob o lago da hidroelétrica, ganhou inicialmente um salão para a realização de missas, com a ajuda do caudilho, que abriu o primeiro armazém. Também construiu uma residência, pois “quando precisava ficar lá, ele ia pra outro lugar lá ele tinha outra, ficava lá, ele sempre teve casa... Não precisava ficar na casa dos outros”, diz.

Por esse tempo, a filha de um dos colonos pioneiros, de origem italiana, engravidou. “Éra uma coisa muito feia uma moça se perder antes de casar, assim os véio contavo”, explica dona Cecília. “Ele diz que ele se perdeu, botaro fora uma moça lá, não sei o que foi, mas foi a primeira vez que foi um escrivão no Ita”, acrescenta. “O meu falecido pai foi buscar e levaram lá, mas só os véio Fabrício que sabia”, e família da moça, “porque que haviam levado esse escrivão lá”. Segundo ela, “ninguém sabia que a moça tava desse jeito e aí ficava tudo escondido. Isso a mãe que cansou de contar, mas depois que eu era casada”.

O objetivo era realizar o casamento, mas faltava o padre. “A mãe conta que foram buscar”, e “aí fizeram uma festa grande lá, que deu três dias de festa. A noiva foi mantida em casa, sob o argumento que estava de dieta, enquanto a irmã do noivo, com o rosto coberto pelo véu, compareceu para a cerimônia. Terminada a encenação, o casal arrumou as roupas e uma tropa, seguindo para a cidade de Aratiba-RS. “Vê como é que o véio Fabrício aprontava as coisa... ele é que dava essas aula!”, comenta dona Cecília. O sobrenome da família, citado na entrevista, é omitido.



ESPECIAL

Trabalho produzido por Guilhermina Telles,
residente no Rio de Janeiro, encaminhado
para o Fragmentos do tempo.
(Clic na imagem para ampliar e se quiser imprima)