quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Ruínas do São Francisco: ruínas que já nasceram ruínas

 Ruínas do São Francisco: ruínas que já nasceram ruínas

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Na maioria dos casos, ruínas não nascem ruínas; ruínas são os restos de algo que foi sonhado, projetado, realizado e enfim desfeito, tornando-se ruína. Mas em Curitiba tem um caso que foge a essa regra: as Ruínas do São Francisco, na Praça João Cândido.

 

Como disse o poeta Paulo Leminski,  Nunca houve uma igreja de S. Francisco naquele lugar. Nossas são as ruínas que já nasceram ruínas”. E complementa: “no Alto de S. Francisco as ruínas da igreja que poderia ter sido, mas não foi, monumento sobranceiro a todas as nossas frustrações, nossos fracassos, nossas pequenas derrotas, obelisco gritando a falência de todos os nossos grandes sonhos”.

Diante disso, você pode se perguntar: ‘Por que as Ruínas do São Francisco já nasceram ruínas?’

 

Eis a explicação:

 

Na década de 1790, Curitiba era uma pequena e campeira vila com um pouco mais de 3.000 moradores — distribuídos em cerca de 200 casas, quase todas localizadas no perímetro entre a Igreja da Matriz, a Igreja da Ordem e a Igreja do Rosário. A pequena vila já mantinha, portanto, uma igreja católica para cada 1.000 habitantes.

 

No ano de 1798, o bispo Mateus de Abreu Pereira, de São Paulo — província da qual Curitiba fazia parte, passou por Curitiba e ficou insatisfeito com o estado de conservação de todas as igrejas da vila. Em vez de ser proposta a reforma de alguma delas, um rico proprietário local, chamado Manoel Gonçalves Guimarães, que hospedou o bispo em sua fazenda, pediu sua autorização para a construção de uma nova igreja na vila de Curitiba, sob seus auspícios. 

 

Manoel Gonçalves Guimarães era um imigrante português que criava gado nos Campo Gerais — era um dos mais ricos da região, pois dispunha de milhares de cabeças de gado e utilizava mão-de-obra escravizada. Era também devoto de São Francisco de Paula, santo cultuado na Igreja da Ordem pelos frades franciscanos, que lá estavam desde 1746. Como São Francisco de Paula não tinha igreja própria, Manoel solicitou à câmara de vereadores um terreno para a construção de uma dedicada ao santo. 



O terreno doado pela câmara ficava distante do centro da pequena vila, num morro descampado a oeste, onde praticamente não havia moradores. Em 1809, com o trabalho dos escravos (provavelmente do próprio Manoel), já estava pronta a capela com a imagem do santo e a sacristia, cuja benção ocorreu dois anos depois. A intenção era que, ao seu redor, aos poucos fosse construída uma igreja portentosa, de frente para a Serra do Mar (e não para o Sul, como era costume), para que de longe fosse vista por aqueles que viessem do litoral. 

Quando os escravizados já haviam feito, com rochas, parte da fundação e da entrada da nova igreja, Manoel Gonçalves Guimarães faleceu, em 1815, interrompendo as obras. Desde então, embora na capela fossem feitos cultos e para ela fossem designados padres, a arquidiocese (sobre quem recaiu a responsabilidade da obra), nunca mais deu sequência à construção da igreja. Mais de dois séculos se passaram e, até hoje, a quase-Igreja de São Francisco de Paula se encontra praticamente do mesmo jeito de como estava em 1815 — feito um sonho interrompido, transformado em ruínas antes mesmo de ser realizado. 


A obra ficou empacada não tanto por desinteresse das autoridades religiosas, mas por ser a última de suas prioridades. Em 1812, Curitiba passou da condição de vila para cidade, e em 1842 transformou-se na capital da 5ª Comarca de São Paulo (atual Paraná). Devido a isso, a prioridade tornou-se reformar a mais importante igreja da cidade, a Matriz, e a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas. Não por menos, na década de 1860
 
as pedras da fachada das ruínas foram utilizadas para a construção das torres da Matriz, que depois vieram a desabar.

Nesse meio tempo, as Ruínas do Alto São Francisco serviram para uma atividade, no mínimo, peculiar: 

 

“Em Curitiba, o primeiro registro de um espaço escolar é de 1836, quando após insistentes solicitações ao governo provincial, o professor João Baptista Brandão conseguiu ‘uma boa, decente e grande sala que serve de consistório da começada igreja de São Francisco de Paula, igreja que se acha em completo abandono’. A primeira escola de Curitiba localizou-se, portanto, em uma ruína.” 

(Elizabeth Amorim de Castro citada por Flavio Antonio Ortolan, do blog Fotografando Curitiba)

 

Anos depois de sediar a céu aberto a primeira escola de Curitiba, as Ruínas deixaram de frutificar a vida para ser descanso para os mortos. Para não deixar a capela de São Francisco completamente abandonada, além de serem realizados cultos, o terreno ao seu redor passou a ser cemitério. Se, na Matriz, eram sepultadas pessoas da elite da cidade, nas ruínas não: eram enterrados pagãos, suicidas e todos aqueles considerados indignos da misericórdia de Deus.

 

Quando o ato de enterrar os mortos em igrejas, dentro e fora delas, passou a ser questionado pelos sanitaristas, novamente as ruínas serviram como material de construção: as pedras das ruínas foram transplantadas para as obras do Cemitério Municipal São Francisco de Paula.

 

Essa situação de ser sempre deixada de lado, e de ser um cemitério de indignos, tornou as Ruínas de São Francisco um local propício para o surgimento de lendas: ali vagariam almas penadas, incluindo a de um vigário que cuidava da construção inacabada, e também piratas e tesouros escondidos (o famoso Pirata Avarento, que teria escondido seu tesouro no cemitério), além de uma serpente gigante que vivia no subterrâneo da cidade, num suposto túnel entre o Alto do São Francisco e a Igreja Matriz.


Em função dessa crença de que o local era cercado e vigiado por almas penadas, decidiu-se, por fim, não mexer mais nas ruínas. Somente a capela e a sacristia, de tijolos, foram demolidas em 1914 para a construção do Belvedere. Em permuta, a prefeitura doou um terreno situado na esquina das ruas Saldanha Marinho e Desembargador Mota, onde em 1936 foi criada a Paróquia São Francisco de Paula.

 
 

Preservação e novos usos 


Em 1966, todo o conjunto da Praça João Cândido, incluindo as Ruínas, foi
 
tombado pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Paraná. Por muitos anos, as ruínas foram protegidas por grades, que atualmente foram substituídas por placas de vidro e jardins floridos. A Praça João Cândido, com a reforma do Belvedere, também ganhou nova vida, dando mais destaque aos resquícios da igreja colonial que nunca foi concretizada. 


Hoje, além de um importante local histórico e ponto turístico da cidade, as Ruínas do São Francisco são um marco para a educação patrimonial, e também para várias atividades culturais. Abaixo delas, foi construído um anfiteatro aberto e também uma galeria de arte (as Arcadas de São Francisco), que atendem milhares de pessoas anualmente.


Dessa forma, fruto do trabalho de pessoas negras escravizadas, dos infortúnios que destroem planos e de lendas que as tornam enigmáticas e populares, as Ruínas do São Francisco, lá no topo do centro, são um dos
 
maiores símbolos de Curitiba. É como disse Leminski: é a ruína que dá sentido à cidade

 
 
 
 
 

O Pelourinho de Curitiba, ou o que restou dele

 O Pelourinho de Curitiba, ou o que restou dele

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O mês de maio marca o mês em que se comemora a abolição da escravidão no Brasil. Em 13 de maio de 1888, a Princesa Izabel assinou a Lei Áurea, que garantiu o fim do trabalho escravo no Brasil. É necessário ressaltar que embora essa seja a data oficial, ela não deve ser a única a ser lembrada. Para que se chegasse a esse ponto, houve muita luta por parte da população negra e escravizada, e por diversos outros segmentos sociais.


Tendo em vista essa temática, escreveremos sobre locais da cidade de Curitiba que possuem relação com a época escravocrata.


No presente texto, falaremos sobre a Praça Borges de Macedo, local em que antigamente estava localizado o pelourinho de Curitiba.


O que eram os pelourinhos


O pelourinho era uma coluna de pedra ou de madeira, instalada geralmente em praças centrais das cidades e vilas, com o objetivo de ser o símbolo da justiça — e local de castigos físicos aos criminosos e aos negros escravizados. No Brasil Colônia, os pelourinhos representavam o poder da coroa portuguesa, e além disso serviam como marco zero das vilas — o perímetro delas, chamado de rocio, era calculado a partir do pelourinho, sendo 1,5 km a distância entre ele e cada uma das extremidades da vila.

O pelourinho de Curitiba 


É mais antigo do que a própria cidade. Foi instalado em 4 de novembro de 1668 por Gabriel de Lara, Capitão Mor e Procurador do Marquês de Cascais, Senhor das Terras da Capitania de Paranaguá (Curitiba só foi alçada à condição de vila 25 anos depois, em 1693). Essa informação nos é trazida em uma placa na Praça Borges de Macedo numa pedra comemorativa, instalada em 1968.

Segundo historiador Ermelino de Leão, citado por Rafael Greca, o pelourinho de Curitiba “era um madeiro grosso, lavrado com 4 faces, com as insígnias de 4 argolas de ferro e braços para o alto, tendo no alto como remate um cutelo”. Teria apodrecido com o tempo, e logo foi substituído por outro.

Não coincidentemente, no mesmo local, entre o pelourinho e a Praça Tiradentes, em 1726, foi construída a Casa de Câmara de Cadeia — era costume, no Brasil colonial, a igreja, o pelourinho e a Casa de Câmara e Cadeia estarem próximos, representando o poder espiritual, judiciário e municipal, respectivamente. Sua construção estava entre as determinações do representante da Coroa Portuguesa Ouvidor Pardinho, em sua passagem por Curitiba em 1721.


O prédio de dois andares abrigava funções administrativas diversas, como a de Câmara Municipal no piso superior, e a de cadeia no piso inferior.

Durante quase 200 anos, a Casa de Câmara de Cadeia foi o símbolo do poder público da cidade de Curitiba. Tamanha sua importância, ela contribuiu para diversos avanços tecnológicos da cidade como um todo. Por exemplo, as primeiras ações de iluminação pública de Curitiba nasceram da demanda de uma melhora na segurança do prédio - em 1848 foram trazidos do Rio de Janeiro e instalados em Curitiba vinte lampiões.


Quem liderou essa iniciativa foi o à época vereador José Borges de Macedo. Borges de Macedo, que hoje dá nome à Praça, foi também o primeiro administrador de Curitiba entre os anos de 1833 e 1835 - em um cargo similar ao que seria o de prefeito atualmente.


O edifício da Casa de Câmara e Cadeia apresentava inúmeros problemas — e as condições eram insalubres. Tanto que, em 1898, após um incêndio, o prédio foi desativado para então ser demolido em 1900. No mesmo local foi construído um edifício de três andares que pertencia à família Hoffman, e que anos depois também foi demolido.

O pelourinho, entretanto, havia sido demolido muitos anos antes. Ao que tudo indica, segundo o historiador Rocha Pombo, o pelourinho foi demolido às vésperas da Independência do Paraná, em 1853, num período em que o passado colonial já era mal visto — e que o próprio pelourinho já não era mais utilizado.


Memória do pelourinho em Curitiba


Quando se fala em Pelourinho, muitos podem achar que ele existia apenas no Nordeste, em cidades como Salvador, e que não era coisa de cidades do Sul do Brasil, como o caso de Curitiba. Isso, no entanto, não é verdade. Mas não é por acaso que essa seja a impressão para muitas pessoas. Pelo contrário, existem muitas explicações pra isso, e talvez uma das principais seja a memória.


Tomemos como exemplo a cidade já citada e que possui o pelourinho mais famoso do Brasil, que virou até nome de bairro - Salvador. Na lista de quase todos que visitam a capital baiana, o Pelourinho aparece como um dos destinos principais, se não o principal. Quando tratamos do de Curitiba, no entanto, muitos passam pela cidade sem nem saber que existiu ali também um pelourinho.


Parte disso se deve à não preocupação do poder público, já na época imperial, em fazer referência explícita ao fato de que ali estava o antigo pelourinho da cidade de Curitiba. Até hoje, o passado colonial, a existência da escravidão e de práticas de violência pelo estado parecem ser um tabu para memória oficial de Curitiba, que trata de apagá-los.


Há, é verdade, como já citado, uma pedra com um placa comemorativa com a informação de que ali havia o pelourinho de Curitiba, instalada em 1968. No entanto, poucas pessoas param para ler a placa, e ela chama menos atenção do que poderia chamar uma réplica do pelourinho, o próprio pelourinho preservado, ou o nome da praça levar o nome de Pelourinho.


Em vez de usar o espaço para lembrar de que existiu escravidão em Curitiba, que pessoas negras escravizadas foram ali açoitadas e humilhadas em praça pública, foi decidido, após a abertura daquele pequeno espaço entre a Praça Tiradentes e a Generoso Marques, que ele levaria o nome de um político de uma família tradicional.


Atualmente, há somente duas referências ao pelourinho de Curitiba: as Arcadas do Pelourinho, um espaço criado na década de 1990 que fica na Praça Borges de Macedo — onde atualmente funciona o Mercado das Flores; e a obra de Sérgio Ferro, pintada no teto do Memorial de Curitiba.


Com esses apontamentos, não estamos diminuindo a importância de Borges de Macedo e da praça em sua homenagem para a cidade de Curitiba. Somente estamos indicando que existem outras possibilidades de homenageá-lo, como em outras praças ou ruas, sem fazer com que o antigo Pelourinho —  símbolo de uma época e de um Brasil —  seja esquecido.