quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Britânia Sport Club, o “Clube dos Pretos” de Curitiba

 Britânia Sport Club, o “Clube dos Pretos” de Curitiba

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Certa feita, a torcida do Rayo Vallecano, clube de futebol espanhol, exibiu em suas arquibancadas uma faixa com os dizeres “Há equipes tão pobres que só têm títulos”. Essa afirmação certamente não se aplica ao Britânia, clube paranaense fundado em 1914, cuja rica história vamos contar aqui.

 

E o que faz com que a história do Britânia seja valiosa para além de títulos, tem a ver com algo já tratado aqui no Turistória nesse mês de maio: a abolição da escravidão no Brasil.

 

A criação de um clube de futebol como o Britânia pode ser vista como uma forma de luta da população afrodescendente contra o racismo estrutural brasileiro. Sabemos que a escravidão deixou várias cicatrizes ainda em aberto e contar a história desse clube é um ato de reconhecimento da presença negra no futebol paranaense


 

O início do futebol no Paraná

 

A chegada do futebol no Brasil coincide com o final do reinado de D. Pedro II. Segundo o historiador Luiz Carlos Ribeiro, em Curitiba o esporte era praticado de maneira amadora desde 1875, quando teria acontecido um jogo entre maquinistas e operários de uma companhia inglesa (logo no início da construção da Ferrovia Curitiba-Paranaguá, antes, portanto, da chegada de Charles Müller, o paulistano considerado o ‘pai’ do futebol e do rugby no Brasil).

 

Nesse período, porém, a inserção dos negros na sociedade era muito difícil, com pouco ou quase nenhum incentivo do poder público. No futebol, essa exclusão não foi diferente.

 

Em seus anos iniciais no Brasil e no Paraná, o futebol foi permeado por questões elitistas e racistas. Até 1916, não havia clube de origem popular e/ou operária na Liga Sportiva Paranaense (LSP), torneio local que reunia os melhores de Curitiba. 

 

Os primeiros times fundados na capital eram majoritariamente de elite, como o pioneiro Coritiba Foot Ball Club, criado em 1909. Além do Coxa, não por acaso apelidado de “Coxa Branca”, logo em seguida surgiram outros times, como o Internacional (1912), o América (1914), o Savóia Água-Verde (1920), o Palestra Itália (1921) e o Clube Athletico Paranaense (1924), com o fatídico “h” em sua grafia.

 

Todos esses times, quando não proibiam, simplesmente não mantinham jogadores negros e de classes populares em seus elencos. Tanto é que clubes como o Coxa, diante do poder aquisitivo de seus fundadores — a maioria de ascendência alemã —, importavam bolas e chuteiras da Europa, além de serem os únicos a terem uniformes engomados e campos de futebol ou “grounds” — as praças públicas onde se praticava o Foot Ball. Por isso, muito se diz que o esporte bretão era uma passatempo de burgueses.


O futebol difundido nas classes populares

 

Mesmo assim, o futebol começou a ser praticado por segmentos empobrecidos da população, principalmente por afro-brasileiros. Eles disputavam suas partidas nas ruas e praças públicas, com instrumentos improvisados e com regras pouco delimitadas.

 

O poder público, no entanto, logo se movimentou para impedir essa difusão do futebol entre as camadas populares. Com a justificativa de combater a vadiagem e os distúrbios provocados pelos praticantes do esporte, o futebol amador foi proibido em 1913.


Quem antes jogava nas ruas agora tinha de achar outros meios para fazê-lo!

 

A solução para isso foi a criação de clubes, formados em grande parte por trabalhadores pobres — aqueles que antes jogavam nas ruas —, que contavam com a presença de pessoas negras. Alguns dos times que nasceram nesse contexto foram o Operário F.C., o Graphico F.C., o Tiradentes F.C, o Carlos Gomes S.C., o Artilheiro F.C., entre outros, todos de Curitiba.

 

O fato de eles se organizarem em associações, porém, não lhes trazia aceitação dos clubes maiores e nem diminuía o preconceito que sofriam os seus integrantes. Por isso mesmo eles formavam as suas próprias ligas, de onde saíram os primeiros atletas negros a competirem pelos grandes clubes de Curitiba.

A fundação do Britânia Sport Club

 

Um desses clubes teve maior destaque por ter conseguido entrar na liga de elite do futebol paranaense, a LSP. Foi o Britânia Sport Club, fundado em 1914 por empregados da Fábrica de Vidros Solheid & Engerke, localizada na Rua Ratcliffe (atual Desembargador Westphalen). O clube foi resultado da fusão entre dois times do bairro Rebouças: o Leão FC e o Tigre FC — sendo “tigre” o apelido e o mascote do Britânia. Já o nome “Britânia” foi em homenagem à origem britânica da ferroviária Brazil Railway.

 

Em 1916, dois anos depois de sua fundação, o Britânia fez história ao ser o primeiro time de origem operária a chegar à primeira divisão do futebol paranaense, a LSP, à convite dos dirigentes da liga. A equipe contava com a presença de diversos atletas negros, como Floriano, Moura e Zito, chegando a ser conhecida discriminadamente como o “clube dos pretos” — embora a equipe tivesse muitos imigrantes europeus.

 

Isso fez do Britânia o segundo time do Brasil a aceitar jogadores negros em sua equipe, sem restrições. O primeiro foi o Bangu, clube do Rio de Janeiro famoso por ter sido fundado pela classe trabalhadora e por atletas afro-brasileiros. Talvez por isso, até, as cores, o uniforme e o símbolo do Britânia fossem muito semelhantes aos do Bangu.

 

Os desafios para a inclusão

 

O ano de 1916, no entanto, foi acidentado para o Britânia e seus atletas. No Rio de Janeiro discutia-se uma “nova lei do amadorismo”, que ampliava o conceito de “amadorismo” e excluía do futebol profissional diversos grupos de trabalhadores, o que afetaria o Britânia caso a lei federal fosse aprovada. Em Curitiba, só sobrariam os clubes os de elite.

 

Luiz Guimarães, um dos principais dirigentes curitibanos à época, se posicionou contra esse projeto, denunciando seu teor racista. Ele o chamava pejorativamente de “Lei de Selecção":

 

"De facto, o que procuraram os dirigentes do sport carioca foi seleccionar, mas de uma forma revoltante, odiosa até, os elementos que cultivam o football. E esta selecção absurda, chegou até a ridícula questão de cor, como se todos nós, brancos ou pretos, não tivessemos os mesmos direitos a gozar e os mesmos deveres a cumprir, em face das soberanas lei que nos regem."

 

Para simbolizar o repúdio às novas regras, os dirigentes da Associação Paranaense de Sports Athléticos (ASPA) — entidade que disputava o controle do futebol local com a ASP — organizaram um festival esportivo no dia Abolição da Escravidão, 13 de maio. A data tradicionalmente era celebrada pelos clubes operários e pela comunidade negra da cidade, então a ASPA se aproveitou para organizar um jogo de futebol durante o evento. Era o ano de 1916 e esse evento selou a definitiva inclusão das equipes populares.

Anos dourados

 

Após discussões, a nova lei do amadorismo não foi aprovada, e o Britânia pôde participar da LSP. Só pelo fato de ser o primeiro time de origem operária a participar da principal Liga do futebol paranaense, o Britânia já havia gravado seu nome na história, mas o clube não se contentou apenas com isso.

 

Em uma sequência histórica, de 1918 a 1923, o Britânia foi Hexacampeão paranaense. Esse feito só voltou a ser igualado mais de 50 anos depois, pelo Coritiba, ao se sagrar hexa campeão de forma consecutiva em 1976. Até hoje, apenas o Coritiba e o Britânia foram hexacampeões paranaenses em anos consecutivos.

 

Em 1928, o Britânia voltou a ser campeão paranaense, contando ainda com alguns veteranos do hexacampeonato. Assim, ao todo, o Britânia possui 7 campeonatos paranaenses da primeira divisão, o que o torna um dos cinco maiores vencedores da história do torneio.

 

Para muitos, inclusive, o sucesso do Britânia se deve a presença de jogadores afro-brasileiros em sua equipe: ao não restringir a formação do time pelo critério da raça, o Britânia conseguiu selecionar os melhores. Além disso, o mérito do clube foi manter os mesmos jogadores na equipe durante anos, algo que facilitava o entrosamento entre eles.

 

Como resultado, o sucesso do clube foi muito importante para o aumento da participação de trabalhadores pobres e negros no futebol paranaense. Ao ver que a equipe que contava com jogadores negros e operários em seu time estava conseguindo uma sequência incrível de títulos, os outros clubes, com o intuito de fazer frente ao Britânia, se sentiram pressionados a abrir suas portas para esses grupos sociais. 

Decadência e fusão

 

No chuvoso janeiro curitibano de 1930, o Clube Atlético Ferroviário foi fundado. Assim, os bons jogadores do Britânia, que eram ferroviários, migraram ao mais novo clube, que foi turbinado com o patrocínio da empresa ferroviária: jogar no Atlético garantia emprego. Dessa forma, o “time do povo” mudou de figura, e o Tigre ficou enfraquecido e sem atletas de qualidade.

 

De acordo com Laércio Becker, “essa migração deu ao Ferroviário o apelido discriminatório de ‘Boca-negra’ e limou as presas do “Tigre”. O epiteto “Boca-negra”, nesse caso, era por conta dos inúmeros jogadores negros em sua equipe, os quais, nitidamente, eram discriminados tanto quanto os do antigo “clube dos pretos”. 

 

Daí em diante, o Britânia só aparecia como figurante no campeonato estadual, tendo sido rebaixado às divisões inferiores por diversas vezes. Paralelamente, os grandes clubes de Curitiba, que então já aceitavam afro-brasileiros, despontavam e se profissionalizam cada vez mais.

 

Para Edilson Pereira,


“o Trio de Ferro [Atlético, Coxa e Ferroviário] jogava pesado e assediava os melhores jogadores de adversários mais fracos, oferecendo empregos e vantagens. No caso do Atlético, emprego no governo estadual; do Ferroviário, na Rede Ferroviária Federal; e o Coxa tinha seus argumentos com recursos de empresários fortes que apoiavam o clube. Os demais só olhavam.”


Não por menos, enquanto o Britânia seguia vencendo em categorias juvenis — levou o caneco dos Campeonatos Paranaenses de Juvenis de 1967 e 1968 —, o time principal sofria, justamente porque perdia seus grandes jogadores.


Esse foi o caso de dois jogadores do Britânia: Altevir, que depois brilhou no Atlético Paranaense (quando o time retirou o pífio “h” de sua grafia); e Dirceu Krüger, que surgiu na década de 60 e posteriormente se consagrou como o maior ídolo do Coxa.


Devido a essa triste derrocada, em 1971 o Britânia participou de uma fusão com C.A. Ferroviário e Palestra Itália FC. Dessa fusão surgiu o Colorado Esporte Clube, que em 1989 se fundiu com o Esporte Clube Pinheiros, dando origem ao atual Paraná Clube


Legado


Do Britânia, restaram algumas memórias. Uma delas foi o estádio Paula Soares, que resistiu até o início dos anos 90. Como o Colorado preferiu jogar no Estádio Durival Britto e Silva (Vila Capanema), sede do Ferroviário, a antiga casa do Britânia foi utilizada como treinamentos e sede de feiras de comércio. O estádio ficava na Linha Verde, na altura do viaduto da Avenida das Torres, onde hoje há um hipermercado.


Além do estádio, restou também a primeira sede do time, a Casa dos Arcos, na Praça Eufrásio Correia, hoje preservada e sede do escritório Casillo Advogados, próxima à antiga estação ferroviária, no centro de Curitiba.


Tão fundamental quanto, as camisetas do Britânia continuam sendo um raro e bem quisto artigo de luxo dos curitibanos fanáticos por futebol. Aos mais nostálgicos, o vermelho do Paraná Clube guarda uma longa trajetória que se inicia em 1914.


Por fim, cabe registrar a principal memória do Britânia, aquela que jamais deve ser esquecida e que torna o clube grandioso não só por seus títulos: o Britânia foi o primeiro time profissional de origem operária no Paraná, sendo sua história marcada pela presença negra.

 

Texto e pesquisa de Gabriel Brum Perin e Gustavo Pitz

Fonte de pesquisa:  


Este texto foi pensando a partir do brilhante artigo de Jhonatan Uewerton Souza: "JOGANDO POR CIDADANIA: APONTAMENTOS SOBRE A EXPERIÊNCIA DE ATLETAS NEGROS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO FUTEBOL CURITIBANO (1909-1933)". Disponível neste link:

https://pergamum.curitiba.pr.gov.br/vinculos/00009d/00009d15.pdf?fbclid=IwAR3n7V0UQtaJ3tVNTsO5GkC268P4LcVlbnso19sAgZLsWEBrGCavH6Sc1nk


Além disso, cabe destacar a importância do trabalho do historiador Luiz Carlos Ribeiro, em "Política, futebol e as invenções do Brasil". Disponível no link:

https://www.ludopedio.com.br/content/uploads/130627_4200-14664-1-PB.pdf


Outra fonte da qual bebemos foi esta, de Laércio Becker: "Historia do Britânia (clube extinto)". Disponível no site "Campeões do futebol":

https://www.campeoesdofutebol.com.br/britania_pr_historia.html


Por fim, nossa última inspiração pesquisa foi o artigo de Edilson Pereira, na Tribuna do PR. "Britânia tem lugar na galeria dos melhores times do PR". Disponível no link:

https://tribunapr.uol.com.br/arquivo/lendas-vivas/britania-tem-lugar-na-galeria-dos-melhores-times-do-pr/


Sobre a expressão "Clube dos Pretos", ver TOURINHO, Luiz Carlos Pereira. Toiro Passante V – Tempo de República Democrática. Curitiba: Estante Paranista/IHGB, 1994, p. 265,


Sobre a fonte de Luiz Guimaraes, ver GUIMARÃES, L. Selecção Sportiva. Commercio do Paraná. 29 out 1916, p 2. Conforme Pereira Tourinho, as primeiras tentativas de proibir o ingresso de negros na liga carioca, remetiam ainda ao ano de 1907. Cf: TOURINHO, L. Op cit. p 67.


As imagens utilizados em nosso texto estão todas disponíveis nos links abaixo



https://historiadofutebol.com/blog/?p=109073

https://i1.wp.com/www.ultimadivisao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/Origem_PRC_tam_real.jpg?ssl=1

https://www.ultimadivisao.com.br/voce-conhece-arvore-genealogica-do-parana-clube/

https://arquivosfutebolbrasil.com.br/blog/2020/06/03/foto-historica-britania-sport-club-curitiba-pr-1958/

https://historiadofutebol.com/blog/?p=68413

https://arquivosfutebolbrasil.com.br/blog/2020/04/19/britania-sport-club-curitiba-pr-campeao-paranaense-de-1923/

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