Benzedeiras em Curitiba: trabalho das rezadeiras está valorizado após a pandemia de covid-19
Atendem o telefone. Peço pra falar com a dona Nely. “Agora ela tá benzendo”, diz a pessoa do outro lado. “Quer deixar recado?”. Explico o motivo da ligação. Descubro que quem atendeu foi a secretária da dona Nely, que teve que ser contratada devido à altíssima procura pelos serviços da benzedeira nos últimos anos. “Agora, segunda a sexta só com hora agendada. Sábado por ordem de chegada”, explica. Enquanto falamos, dona Nely termina o serviço. Meu tempo é curto. Dona Nely lembra-se da reportagem da Tribuna. Há 4 anos, ela foi uma das rezadeiras que entrevistamos e, desde então, muita coisa mudou. Agora viúva, Maria Nely Borges, de 84 anos, continua atendendo em sua casa porém, com a ajuda da secretária já mencionada.Com o mesmo tom de voz sereno e bom-humor, ela conta que a procura por seus serviços triplicou desde que nos falamos pela última vez. “Teve gente de São Paulo, do Rio, dos Estados Unidos e até da Alemanha que veio atrás mim”, conta. “Teve até caso de vida ou morte, que fui atender pessoalmente”. Pra quem não se lembra, Nely era a benzedeira no Cajuru, em Curitiba, cujo trabalho é reconhecido pelo padre da paróquia que frequenta, situada no mesmo bairro. “Antes vinha muito caso de minguá, rasgadura… depois da pandemia é muita insônia, dor no peito. Muita carga negativa e desespero pela situação financeira”, revela. Os remédios? “Benzo três vezes com arruda, espada de São Jorge e alecrim. E pra finalizar, mando tomar banho de ervas”, explica.
“Receita” semelhante é a de Agda de Andrade, 77. Benzedeira há mais de 40 anos no município de Rebouças, na região dos Campos Gerais, ela atende uma média de 6 a 8 pessoas por dia, além de estar à frente grupo Aprendizes da Sabedoria, que reúne benzedeiras paranaenses espalhadas pelo estado. Formado em 2008, o grupo promove a troca de saberes e experiências e é considerado a primeira entidade representativa das rezadeiras do Paraná.
“Até formarmos o grupo, muitas benzedeiras tinham medo de se apresentarem, de irem presas. São senhoras simples, muitas são analfabetas. Agora temos um espaço seguro para trocar experiências, ensinar remédios e ervas”, conta.
No desempenho do ofício desde os 20 anos de idade, Agda aprendeu as práticas de cura com o pai, que também era rezador. “Foi ele que me ensinou sobre as plantas e como extrair os xaropes, as tinturas e remédios”, relembra. Assim como dona Nely, Agda nos conta que nos últimos dois anos, os rescaldos da pandemia impactaram de maneira significativa a saúde da população. “É muita carga negativa. As pessoas estão mais ansiosas, mais deprimidas. Isso reverbera em todo o organismo e é por isso que – muitas vezes – a pessoa até vai ao médico mais não consegue encontrar a raiz do problema. Porque a doença não está no corpo, mas na alma”, diz.
Com grande volume diário de atendimentos, Agda é a rezadeira certa, no lugar certo. Ela mora defronte a uma escola primária, em Rebouças, e diz que a maior parte de seus “pacientes” são os pequeninos do estabelecimento à frente. “Os pais buscam as crianças e já aproveitam pra benzer”, revela a rezadeira que possui todos os remédios de seu arsenal, no próprio quintal de sua casa. “Aqui tem de tudo que você pode imaginar. Ultimamente tenho usado muito espinheira santa, que serve pra alívio de dores no trato digestivo. Não é pra menos. Nosso emocional se concentra totalmente nessa região do corpo”, revela.
Segundo a benzedeira, a perpetuação de tais conhecimentos tem ganhado mais espaço – mesmo que timidamente – entre os jovens. “Nas plantas tem remédio pra absolutamente tudo. O problema é que as pessoas não têm tanto interesse em aprender sobre práticas naturais, tendo os medicamentos químicos disponíveis nas farmácias”, lamenta. E é por este motivo que o coletivo Aprendizes da Sabedoria tem se empenhado em promover eventos e divulgar seu trabalho.
O grupo, organizado com a ajuda da antropóloga, Taísa Liwitzki, foi o primeiro a mapear as benzedeiras do Paraná, por exemplo. Segundo o levantamento, somente naquele ano, cento e trinta e três benzedeiras estavam ativas no município de Rebouças. Foi também por intermédio da associação, que o trabalho das rezadeiras ganhou chancela oficial como “serviço de saúde pública”, pela prefeitura do município. O ofício foi ainda, reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Paraná pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
“Existe um argumento no imaginário popular, que diz que as benzedeiras estão entrando em extinção. Isso não é verdade. Elas estão radicalmente vivas e têm um projeto de futuro. Popularmente, acredita-se que elas estão no passado, e correspondem àquele estereotipo da mulher mais velha, sacudindo folhas com um tercinho. Existem, é claro, as que correspondem ao perfil, mas existem também benzedeiras jovens, com outras profissões e que estão nas áreas urbanas. Há benzedeiras, inclusive, que se utilizam da tecnologia para benzer”, revela Taísa.
É isso mesmo. Como explica a antropóloga, a reinvenção chegou também às rezadeiras que, durante a pandemia, adaptaram-se, aplicando rezas e bênçãos por chamadas de vídeo e mensagens de texto. “Há muito tempo as benzendeiras já usavam cartas, bilhetes e recados para benzer. Hoje, elas benzem pelo celular. Inclusive pelo Whatsapp. Elas estão se modernizando para manter ativo seu papel nos dias de hoje”, diz Taísa.
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Por intermédio de eventos e encontros, o coletivo de rezadeiras tem realizado palestras, rodas de conversa e workshops, na linguagem das benzedeiras – “troca de saberes”. Em fevereiro deste ano, por exemplo, o grupo promoveu um encontro aberto ao público realizado no Museu Paranaense. “No último evento que promovemos em Curitiba, percebemos – por parte de um público bastante jovem e nichado – um interesse na lida com as plantas, produção de chás, pomadas e tinturas. É nesta nova geração que as benzedeiras do Paraná depositam sua esperança”, afirma Taísa. Por isso, segundo a antropóloga, é importante que os interessados participem e busquem compreender sobre tais práticas.
Então resta a pergunta: qual será o futuro das benzedeiras? Será que este é um ofício fadado a acabar? Sobre isso, tanto a antropóloga quanto elas próprias concordam: está longe de acontecer. “As mais jovens não querem aprender. Mas isso é dom, mesmo que você não queira. Ter paciência com crianças, lidar com as plantas, isso é dom. Muita gente descobre depois e resolve usar pelo bem comum”, afirma dona Agda. Já Taísa vincula a função das senhorinhas à própria identidade da nação. Quase como se as benzedeiras colocassem o Brasil no colo. “É terapêutico. Elas olham pra você, ouvem seus problemas. Conhecem as mazelas e sofrimentos das comunidades onde moram. Sabem mais do que ninguém o que aflige esta e aquela família. Na hora da bênção, elas sabem direcionar, por meio da fé, aquilo que se busca. As benzedeiras representam o “cuidar coletivo”. Quando cuidam de uma pessoa, elas estão cuidando de todos”, ressalta Taísa.