Curar a alma para tratar o corpo – benzedeiras e benzedores
em Araucária
Desde tempos imemoriais o homem recorre ao transcendente buscando auxílio para enfrentar as dificuldades da vida terrena, seja nas questões de saúde, trabalho, ou em suas relações interpessoais, e, muitas vezes, essas práticas acabam relacionando magia, religiosidade e medicina popular. Nas sociedades de característica camponesa, principalmente pela falta de recursos médicos acessíveis, era comum a existência de pessoas procuradas por seu conhecimento em medicina popular, que geralmente era advindo de seus antepassados. A essas pessoas era relacionado o poder de cura por meio de ervas e outros produtos naturais, ou, às quais se atribuíam poderes mágicos, cujas palavras, pensamentos ou o toque, geralmente acompanhados de orações, eram capazes de curar ou abrandar o mal, especialmente os de causas desconhecidas relacionadas a questões sobrenaturais.
Nos tempos em que Araucária configurava-se essencialmente como agrícola, os procedimentos médicos demandavam dinheiro, as estradas eram precárias e o meio de transporte rudimentar, o que tornava o recurso às benzedeiras e benzedores a alternativa mais viável. Existiam também aqueles cujos poderes e conhecimentos destinavam-se a curas referentes aos animais de criação e de tração, que eram amplamente procurados pelos mesmos motivos.
Mesmo com a metropolização de Curitiba a partir da década de 1960, que configurou a crescente industrialização e urbanização de seu entorno, e a melhoria na escolaridade e no acesso ao atendimento médico gratuito, as benzedeiras e benzedores continuaram existindo. Com exceção daqueles cujas ações se destinavam a animais de tração, pois a substituição desses por maquinários fez com que a procura por benzimentos diminuísse consideravelmente. Os demais continuaram tendo procura considerável, seja porque o efeito do benzimento é considerado mais rápido ou por ser usado como forma complementar ao tratamento médico convencional. Até porque muitos males do corpo e suas curas passaram a ser conhecidos com o avanço do conhecimento científico, no entanto, pemaneceram inacessíveis à grande parte da população, especialmente a mais pobre.
Durante as pesquisas para a escrita do livro "Saberes de Araucária", que é o 6.º volume da coleção História de Araucária, entre 2010 e 2011 as equipes do Arquivo Histórico e do Museu Tingüi-Cuera entrevistaram benzedeiras e benzedores do município para identificar quais os principais motivos que levam as pessoas a procurá-los, mesmo tendo acesso à medicina convencional.
Nessa pesquisa entrevistamos 13 benzedeiras e benzedores: Ana Pilatto, Antonia Santana de Jesus, Antônio Kolachak, Apolônia Furman, Arminda Soares, Eldo Dreyer, Izabel de Souza, Leona Geszewski, Leopoldo Przybylak, Maria Aparecida Gabriel, Maria Terezinha Perretto, Rozili Ferrari e Tereza Rodrigues de Carvalho, alguns deles hoje já são falecidos. Segundo as informações levantadas, os motivos que mais levam as pessoas a procurarem pelos benzimentos seriam os seguintes: para benzer susto, lombrigas atacadas, peito aberto, feridas na boca (“sapinho”), quebrante, rendidura, mal olhado, ar no rosto, ar na vista, cobreiro, bugreiro, bronquite, dor de cabeça, dor de dente, dor nas pernas, feridas que não cicatrizam, hemorragias e até picadas de animais peçonhentos (ao que se procura o benzimento como auxiliar ao tratamento médico).
Para fazer o benzimento alguns elementos tornam-se necessários para que a magia ocorra, e são eles bem variados, como água, fio, pano, palha, óleo, vela, brasa, faixa, arruda, hortelã, camomila, erva cidreira, alecrim, alho, limão, palma benta, ovo, toucinho, entre outros. Também palavras e orações são indispensáveis, algumas destinadas a santidades específicas, como Santa Apolônia para dor de dente e Santa Luzia para as vistas. Leona Geszewski profere as orações em polonês, o que, segundo ela, representa uma dificuldade quando tiver de repassar seu conhecimento para que alguém o continue.
Você sabia que existe diferença entre quebrante e mal olhado? Quem nos explicou foi a Maria Terezinha Perretto, que benze tanto um quanto o outro: “O quebrante é assim, quando as pessoas ficam admirando a criança – 'Ai, meu Deus, que bonitinha!'. As próprias pessoas da casa enchem a criança de quebrante, mesmo o adulto também pode pegar o quebrante, sabia? O adulto daí tem dor de cabeça, arrepio, as coisas assim. O mal olhado também, o mal olhado já é assim as pessoas que convivem com você que são mais invejosas (...) daí eles podem por mal olhado (...) O quebrante a pessoa não tem culpa, agora o mal olhado é de pessoas invejosas”.
Para curar a inveja alheia não existe remédio no posto de saúde, e mesmo para os males curáveis com medicamentos o carinho, o cuidado e a pessoalidade do benzimento para muitas pessoas são insubstituíveis. Junto com o benzimento vem a conversa, o calor humano, o chazinho, o carinho, tudo direcionado especialmente para aquela pessoa, diferente da frieza do medicamento industrializado e suas bulas complicadas. Além disso, esse tipo de conhecimento não pode ser aprendido de forma didática. Não existe curso técnico de formação de benzedeiras. Mas é repassado de geração em geração, de forma espontânea, para aqueles que são escolhidos por seu dom, o que torna a prática ainda mais especial e parte do patrimônio imaterial de nosso município.
Em entrevista concedida ao Arquivo Histórico em 2011, antes de falecer, o senhor Antônio Kolachak contou que atendia cerca de 70 pessoas por semana em sua casa, na região de São Miguel. Curiosamente, geralmente a fila para atendimento com o benzedor era maior do que a de pessoas que procuravam o posto de saúde mais próximo, o da Vila Angélica. Esse fato ele atribuía a seu dom de conversar e acalmar para curar a alma e então o corpo. Sendo assim, a maior explicação para que as pessoas ainda recorram a essas práticas, e que remédio nenhum substitui, resume-se a uma só palavra: fé.
(Texto escrito por Cristiane Perretto e Luciane Czelusniak Obrzut Ono - historiadoras)
(Legendas das fotografias:
1 - Antônio Kolachak utilizando cera de vela para benzimento, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
2 - Ana Pilatto benzendo criança, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
3 - Leopoldo Przybylak utilizando palha de milho para benzer hemorragia, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
4 - Rozili Ferrari preparando o toucinho com aveia para benzimento de bronquite, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
5 - Maria Terezinha Perretto utilizando pano, fio e agulha para benzer rendidura, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.)
Antônio Kolachak utilizando cera de vela para benzimento, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Ana Pilatto benzendo criança, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Leopoldo Przybylak utilizando palha de milho para benzer hemorragia, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Rozili Ferrari preparando o toucinho com aveia para benzimento de bronquite, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Maria Terezinha Perretto utilizando pano, fio e agulha para benzer rendidura, 2011.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.
Acervo do Arquivo Histórico Archelau de Almeida Torres.