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sábado, 11 de fevereiro de 2023

DAS GRUTAS OCULTAS

 

DAS GRUTAS OCULTAS


     

Dos tempos que se foram

    Para além da superfície turística instalada sobre o afamado Morro da Cruz em Porto União, há camadas mais profundas onde o Sagrado anuncia seu nome numinoso entre estátuas, tocos de vela, árvores, grutas e fontes santas. O próprio Morro foi considerado abençoado pelo monge andarilho João Maria, que é tido como Santo na teologia popular na região do Contestado. Vagando pelas cidades e povoados, ele fazia milagres, profecias e espalhava sua boa palavra. Costumava abençoar fontes de água, próximo das quais plantava cruzes. Aquelas fontes e pocinhos passavam a ter um significado elevado para os habitantes das proximidades, que iam até a fonte para resolver suas enfermidades e, depois, agradecer ao Monge com velas e orações. Sempre foi o caso do Morro da Cruz, com sua água sagrada onde por vezes as pessoas batizam seus filhos, suas estátuas entalhadas em madeira maciça e as grutas onde João Maria posou quando por ali esteve de passagem.




    O local todo foi um pouco deslocado de sua significância religiosa pelo mecanismo turístico, que converte a paisagem em atração e, costumeiramente, dessacraliza este tipo de local. As pessoas que vão até ali caminhar pelas trilhas são movidas mais pelo espírito da curiosidade que por alguma relação íntima com o sagrado, acabando por emporcalhar o local com lixo e postura de pouco respeito com o significado santo do local. Independente das conotações que uma reflexão sobre turismo e sacralidade nos levaria, o fato é de que as pessoas vão até o Morro buscando o caminho de suas trilhas e, sobretudo, a observação das grutas.
As grutas são, na realidade, paleotocas feitas por animais da megafauna há mais de 12 mil anos. Provavelmente, as grutas foram escavadas por alguma preguiça gigante que ali ficou. Passada a extinção dessas gigantescas bestas – apesar de alguns acreditarem que alguns grupos desses animais ainda vivem –, permaneceu seu legado na paisagem: grutas que foram usadas por humanos ignorantes de sua origem muito tempo depois. Naquele pequeno complexo de grutas encontrado no Morro da Cruz, o Monge João Maria posou durante suas peregrinações. Sobre a gruta principal, muito se fala sobre como costumava ser muito mais funda que agora, alegando que, na década de 70, os militares mudaram sua configuração e que havia até grades no fundo dela para que as pessoas não avançassem a partir de certo ponto. Hoje, o fundo dessa gruta, que deve distar uns 10 metros da sua abertura, consiste em um afunilamento do teto que vai descendo gradualmente até chegar próximo ao chão, deixando apenas um buraco de impossível passagem. Contudo, percebe-se que, após esse declive do teto, após o buraco que fica ali, há mais um espaço totalmente coberto de breu, sem permitir que se veja o quão fundo alcançam seus domínios.




    Os fatos relatados são alvo de muita especulação. Pessoas comentam sobre as grutas levando até algum lugar – o que não faria muito sentido –, sobre itens encontrados lá e ainda várias outras coisas que não cabem aqui agora. Atualmente, próximo às grutas, há uma passarela que foi construída para facilitar o trajeto daqueles que caminham nas trilhas do morro. Infelizmente, esse 'aperfeiçoamento' turístico acabou por estragar um pouco da estética do local e dificultar o acesso às grutas em si. No entanto, não é das conhecidas grutas que o texto deve se ocupar.
Para quem não sabe, o complexo chamado Parque do Monge é apenas uma pequena parte de todo um morro que, ainda que no meio da cidade, conserva uma grande área florestal nativa, apesar de araucárias e outras árvores específicas terem sido cortadas no passado. O Parque do Monge se liga, por trilha, até um mirante que fica no topo do morro, a 900m de altitude, onde há também algumas antenas. Ao redor do morro, dependendo da parte, há conjuntos de casas que vão até o topo, mas em outros lados do morro, as casas ficam apenas junto ao seu pé, garantindo que haja muito terreno de mata fechada com alguma vida selvagem – tatus, veados, lagartos e outros animais. Em seu caminho acidentado de floresta, é possível se perder em trilhas abandonadas, riachos que descem o morro, árvores antigas quase a cair e uma escuridão úmida típica das florestas da região.
    Os moradores mais antigos, sobretudo os que habitavam ou ainda habitam o pé do morro, contam algumas histórias curiosas, algumas das quais ficarão para outras oportunidades. Uma das bem conhecidas entre a vizinhança mais antiga é a de supostos tesouros ocultos na floresta do morro, ali mesmo no meio da cidade, no tradicional bairro Santa Rosa. Ali descansariam, enterrados sob a superfície terrosa desse gigante que vigia sempre a velha chaminé e o majestoso Balneário do Iguaçu, tesouros de outros tempos, da época em que tropeiros e viajantes cruzavam aquele território indômito. Tesouros de padres, de ladrões que roubaram viajantes e, logo após esconder o tesouro, foram emboscados, ou mesmo relíquias do Contestado. Nos relatos há de tudo.
Uma curiosa história descreve um grupo de piás que, após ouvir um desses contos, decidiu sair em busca de uma gruta que estaria oculta na mata, próxima a uma antiga araucária. Após muito andar naqueles matos, o piazedo chegou a uma árvore que correspondia à descrição e logo viram ao seu lado o que parecia uma gruta em seu contorno rochoso, mas repleta de uma terra que dava para notar ser um pouco diferente do material do contorno. A gruta não era grande e, caso aberta, permitiria que um daqueles piás de 12 anos passasse ali se curvando um pouco apenas. Como havia começado a escurecer, eles pararam o serviço de cavar, pegaram suas ferramentas e voltaram às casas pela trilha. No outro dia, ao chegar lá, o local estava exatamente como antes de terem escavado qualquer pedaço de terra. Era como se nunca houvessem tocado naquela gruta! E isso seguiu por dias. Eles nunca conseguiam chegar até o fim e sempre, no outro dia, o local voltava a ser como era antes. Após alguma insistência, os piás desistiram da empreitada, convencendo-se de que não havia nada ali e que a terra simplesmente deslisava. Depois de abandonarem a empreitada, nunca mais localizaram aquela gruta próxima a uma grande araucária no coração da mata.


Típica paisagem do coração da floresta úmida do morro

    Apesar de, historicamente, nunca ter ocorrido um conflito do Contestado naquele morro, pessoas relatam o achado de equipamentos militares na mata e até ossos, o que é muito estranho, pois o local está bem distante de qualquer reduto da Monarquia Celestial. Alguns suspeitam que o grupo de revoltosos executou algum tipo de manobra secreta naquela área e foi emboscado ou acabou por emboscar agentes da República no local, deixando para trás corpos, armas e objetos da época. Quando a gruta principal era algo ainda pouco visitado, longe de qualquer pretensão "turística", um caminhante teria achado, nas proximidades, uma adaga oficial da época e alguns ossos jogados junto a pedaços de pano desgastados. Não se sabe que fim ele deu nos objetos.
    Há histórias ainda mais curiosas sobre o uso das grutas maiores como câmaras iniciáticas místicas por parte de ordens remanescentes do messianismo do Contestado. Lá seriam feitas iniciações ao modo daquelas conduzidas em Externsteine, Alemanha, por místicos antigos, fazendo com que a pessoa mergulhasse nas próprias escuridões dentro da caverna em determinada época do ano e, depois, renascesse como um iniciado do corpo místico da ordem em questão. Obviamente, os ritos devem ser mais complexos e interessantes, mas pouco se sabe disso, uma vez que, ao se tratar de ordens místicas remanescentes do Contestado, realmente estamos a falar de ordens secretas e não hobbies preciosistas de burgueses entediados. Para os membros dessa ordem, todo o morro é carregado de natureza mística, uma vez que a água que dele verte é abençoada pelo Monge João Maria e dali penetra o solo, evapora entre o ar e se espalha por toda a mata atlântica úmida e pesada dali. Alguns ainda argumentam que aquele antigo casarão na Avenida Santa Rosa, logo após a descida da entrada do Parque do Monge, teria sido, em dado momento, centro dessa ordem, que levava a cabo várias excursões para dentro da floresta, conduzindo seus ritos e rezas. Até hoje se assume que parte do assombroso número de velas e oferendas deixadas a João Maria são obra dos remanescentes dessa ordem. Sim, ainda persistiriam esses estranhos vultos do Contestado a caminhar pela mata escura em silêncio, buscando pelo morro restos do que lá foi deixado, buscando sinais por eles esperados para que tomem as devidas ações, ou procurando o que lá se perdeu e por eles é tido como de direito.
    Recentemente, como já mencionado, a prefeitura, num ímpeto de tomar a dianteira do turismo, fez uma trilha repleta de acessibilidade que liga o pocinho do monge às grutas e, por fim, ao mirante que fica ao lado da cruz. O local está bem alterado. Por um lado, as novas trilhas possibilitam ir mais longe e achar novas entradas para o coração da mata, onde mistérios centenários se ocultam. Por outro, há de se pensar o que os estranhos agentes que caminham por aquelas matas não pensaram do fato e o que podem estar dispostos a fazer como retaliação. Sabe-se que, no tempo em que as grutas eram um pouco diferentes, maiores, pessoas comentavam de gente que sumiu se embrenhando no breu da caverna, portanto há muitas coisas que se considerar quando se lida com mistérios tão enraizados como esse, que envolve cultos, religião e profecias sobre o destino dessa terra. O que se pode ter como certo é que, como disse João Maria, há uma serpente que habita o vale: sua cauda está no Morro da Cruz e sua cabeça está no Morro do Cristo. Um dia, ela há de levantar e soterrar a cidade. Um dia, a ordem que guarda os segredos da serpente e entregues por João Maria há de reemergir e tomar seu local de direito na história, cavalgando entre as nuvens pesadas do vale, num dia nublado ao lado do exército celestial para varrer toda a desgraça que o dragão de ferro da modernidade lançou sobre nós.


Pintura de Willy Alfredo Zumblick