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domingo, 25 de fevereiro de 2024

O GALEÃO PADRE ETERNO

 

O GALEÃO PADRE ETERNO


O período inicial de ocupação da América pelos portugueses, os séculos XVI e XVII, foram os tempos iniciais de formação da Ciência tal e qual entendemos hoje. De fato, a formalização da Ciência foi um processo lento e coletivo que demorou muitas gerações para se estabelecer solidamente no mundo inteiro. Como não há vazio na vida intelectual dos povos, os principais obstáculos a serem superados nesse esforço foram exatamente as antigas ideias que se tinha sobre o mundo e a natureza, que, quando confrontadas com necessidades novas, não conseguiam oferecer soluções aceitáveis. Ou seja, a Ciência Moderna não foi criada ex-nihilo, não foi feita seguindo apenas caminhos abertos por uns poucos sábios; ao contrário, é fruto do esforço contínuo de uma quantidade enorme de estudiosos que não viviam principalmente em um país ou em um reino da Europa.

Dessa forma, não poderá ser estranho considerar que as mais importantes realizações desse tempo contaram com o concurso de gente variada que desenvolveu técnicas importantes ao longo do tempo que acabaram por facilitar o desenvolvimento de teorias relevantes sobre o mundo. Também não será nenhum absurdo constatar que a parte portuguesa do Novo Mundo serviu-se dessas técnicas na construção de edificações, embarcações, engenhos de açúcar, minas… Aliás, coisas bem complexas naquela época e na nossa.

Contudo, chama a atenção a construção na Baía da Guanabara, em meados do século XVII, de um navio enorme, que chegou a ser considerado o maior “galeão do mundo”: o Padre Eterno. Aliás, ainda hoje resiste ao menos um traço dessa proeza na toponímica da cidade: o Aeroporto do Galeão, chamado assim por ocupar a antiga praia do Galeão na Ilha do Governador, onde o enorme barco foi construído. Coisa estranha e anômala chamar um aeroporto de “galeão”; afinal, muito tempo antes de se inventar o avião e se necessitar de aeroportos, o galeão já havia sido abandonado como embarcação de guerra.

A contradição evidente entre o nome e a coisa não deixa de ser uma vigorosa ironia.

A persistência dessa denominação é tão marcante que nem mesmo o batismo do aeroporto com o nome de Antônio Carlos Jobim, compositor muito celebrado na cidade e no mundo, foi capaz de alterar seu uso.

O grande barco foi construído entre 1659 e 1663 no quadro da guerra da Restauração que seguiu à independência política de Portugal.

O governo do reino passara à Monarquia Católica de Espanha dois anos após derrota portuguesa e a morte do rei D. Sebastião no Marrocos. Felipe II de Castela, argumentando que herdara a coroa por ser neto de D. Manuel, invade e conquista Portugal em 1578, estabelecendo um domínio que durou até dezembro de 1640.

Ao romper com o governo castelhano, o gesto português levou a uma guerra de quase trinta anos com a mais poderosa monarquia da Europa.

Os portugueses radicados no Brasil, como os demais do Oriente, da África e do Velho Mundo, participaram dos esforços de guerra, embora também por aqui vivessem sua guerra particular contra a Companhia das Índias Ocidentais no Nordeste.

Diversos personagens do Brasil se engajaram nos enfrentamentos militares e até mesmo nas disputas políticas do novo governo.

A título de exemplo: Matias de Albuquerque, experiente chefe militar que organizara a resistência aos holandeses, foi o comandante português batalha de Montijo em 1644, a primeira mais vultosa do conflito; Diogo Gomes Carneiro publicou em Lisboa, ainda em 1641, um livreto contra os traidores da independência de Portugal.

No final dos anos 1650, a guerra com Castela tinha recrudescido e o esforço da construção naval no Brasil havia tomado impulso. O Governador do Rio de Janeiro decidiu fazer um grande galeão para acompanhar e proteger a frota do Brasil.

O Padre Eterno começou então a ser construído no interior da baía da Guanabara, numa praia da ilha que pertencera ao avô de Salvador Correia de Sá y Benevides. A operação reuniu diversos carpinteiros ativos na própria cidade, na Bahia e alguns que vieram de Lisboa e de outros centros de construção naval daquele tempo e foi realizada a custos do governador. Deve-se registrar que todos os portos importantes da costa contavam com estruturas de reparo das embarcações e seus equipamentos: velas, cordas etc.

A construção do galeão durou cerca de quatro anos e o casco foi ao mar nos últimos dias de 1664 numa operação que envolveu até mesmo marinheiros ingleses que estavam à disposição na cidade, como mostra Charles Boxer em seu livro sobre o governador (BOXER,1973). A primeira viagem ocorreu na frota do Brasil que entrou em Lisboa no final de outubro daquele ano.

FIGURA 1: Galeão “Padre Eterno” no Rio de Janeiro em janeiro de 1664. [S. d.]. Biblioteca Central da Marinha – Arquivo Histórico.

Embora suas dimensões não sejam conhecidas precisamente e se tenha construído narrativas quase míticas de suas capacidades, costuma-se atribuir ao navio mais de 50 metros de comprimento. Para meados do século XVII, isso era efetivamente muito grande, o Padre Eterno era, portanto, bem maior que as outras embarcações contemporâneas do mesmo gênero.

Sua passagem pelos diversos portos do mundo sempre causava impressão, conforme se pode ver nos impressos e periódicos publicados regularmente em Lisboa, Londres, na costa francesa e em outros importantes polos comerciais do mundo.

FIGURAS 2 E 3: Passagem do Padre Eterno noticiada pelo Mercúrio Português, periódico mensal que trazia as notícias da Guerra da Restauração. Mercurio Portuguez, com as novas da Guerra entre Portugal, & Castella, 1663, por Antonio de Souza de Macedo. – Lisboa. Biblioteca Nacional de Portugal.

No entanto, o que é mais curioso é a presença do nome da embarcação em proezas certamente tão extraordinárias quanto suas dimensões. Por exemplo, ao longo do século XVIII, quando as nações do Norte da Europa empreenderam as viagens de reconhecimento do Pacífico, muito se escrevia, e se falava, sobre a passagem do Oriente ao Ocidente pelo Norte da Ásia, pelo mar gelado do Ártico. E eis que uma das obras de reconhecimento geográfico registra o feito nos seguintes termos:

As novas descobertas que fiz sobre a passagem da China ao Ocidente pelo Norte da Europa, do que o Senhor me ordenou dar conta, são de um barco de nome Padre Eterno, comandado pelo capitão David Melguer, português, que saiu do Japão no dia 4 de março de 1660, e percorrendo ao longo da costa da Tartária para o norte chegou até os 84 graus de latitude.

Ele então tomou rumo entre Spistberg e a velha Groenlândia, passando pelo oeste da Escócia e da Irlanda, fez seu retorno ao Porto em Portugal, onde um marinheiro do Havre diz tê-lo visto, há mais ou menos 28 anos. Este barco, o Padre Eterno, foi visto pelo marinheiro, e também o capitão Melguer, que morreu nessa época e cujos funerais também foram vistos. Eu enviei uma carta para Portugal para tentar pegar o diário dessa navegação. (BUACHE,1753)

Esse registro foi copiado e traduzido diversas vezes por escritores de Geografia interessados nessa passagem ao Oriente pelo Norte, inserida em traduções de obras importantes sobre o Pacífico e circulou largamente enquanto durou a excitação com a ideia. Não importa se o Galeão foi mesmo capaz de realizar essa proeza. Importa que essa narrativa mostra a grande impressão causada pelo galeão, embora diversos escritos sobre o barco sejam claramente fantasiosos ou imprecisos, como aliás ocorria frequentemente com relatos de marinheiros e pescadores.

Bom exemplo da imprecisão desses relatos está no livro Description de l’Univers, publicado em 1684, de autoria de Alain Manesson-Mallet que foi militar de importância engajado nas armas de Portugal contra Castela no início dos anos 1660.

De fato, Manesson-Mallet estava em serviço militar quando o Padre Eterno chegou a Lisboa pela primeira vez. As impressões pouco precisas do militar ao menos servem bem para estimar-se o impacto que causou a chegada de um Galeão desse porte:

O desenho do barco foi feito a partir de um navio português que passou pelo maior que se construiu em nosso século. Ele foi feito em Goa e está agora abandonado em um pequeno porto do Rio Tejo, próximo de Aldeia-Galega, a três léguas de Lisboa.

Ele tem 180 passos de quilha, ou de comprimento da parte de baixo, seis pontes ou seis deques, 180 portinholas e outros tantos canhões. Seu lastro era de quatro mil caixas de açúcar pesando quinhentas libras cada uma e dois mil rolos de tabaco. O barco era equipado por quatro mil homens. D. Francisco de Lima, Vice-Rei das Índias Orientais mandou fazê-lo no ano de 1664 e o denominou Padre Eterno (MANESSON-MALLET,1683)

O autor acrescentou uma ilustração do que seria um galeão. O desenho seria inspirado no Padre Eterno que, segundo ele, teria sido construído em Goa. Mesmo considerando que o engenheiro militar o tivesse visto no porto de Lisboa, nada sugere que a figura seja realista.

FIGURA 4: Padre Eterno na entrada do Rio Tejo em Portugal. Description de l’univers, de A. M. Mallet, 1683, tomo I. Biblioteca Nacional da França.

No entanto, mesmo que se desconsidere os desarranjos dessas informações, a construção do Padre Eterno na Ilha do Governador fica como testemunho de uma capacidade de realização técnica nem sempre valorizada e reconhecida. E não se trata aqui de um feito isolado, ao contrário, a construção naval sempre foi importante na América Portuguesa e antes de servir de elemento de uma celebração patriótica já cansada e sem sentido, é exemplo daquilo que se fez por aqui em termos técnicos nos tempos coloniais.

Hamilton Ferreira Sampaio Junior

Referência Carlos Ziller Camenietzki/UFRJ

Biblioteca Nacional

Referências Bibliográficas:

BOXER, Charles. Salvador Correia de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973

BUACHE, Philipe. Considérations Géographiques et Physiques sur les Nouvelles Découvertes au Nord de la Grande Mer. Paris, Ballard: 1753

LA PEROUSE. Voyage of La Perouse Round the World. Londres: Stockdale, 1798

MANESSON-MALLET, Alain. Description de l’Univers. Paris:Denys Thierry, 1683

Fontes:

Galeão “Padre Eterno” no Rio de Janeiro em janeiro de 1664. [S. d.]. 1 positivo; p/b; 130mm x 180mm. Cx. 312; cap. 1; ficha 10. Biblioteca Central da Marinha – Arquivo Histórico. Disponível em:  https://arquivohistorico.marinha.pt/viewer?id=33896&FileID=57525

MERCURIO PORTUGUES, Mercurio Portuguez, com as novas da Guerra entre Portugal, & Castella: começa no principio de anno de 1663 / por Antonio de Souza de Macedo. – Lisboa : na Officina de Henrique Valente de Oliveira, Impressor delRey N.S., 1663-[1667]. – [59] fascículos ; 4º (20 cm). Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: https://purl.pt/12044.

MALLET, Allain Manesson. Description de l’univers. Tome 1. Paris: Thierry, 1683. 5 vol. : mapas, pl. e retrato ; em-8. Biblioteca Nacional da França. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k8702809d?rk=42918;4#