O LOBISOMEM – Parte II
By Edson Rodriguez
Vimos na Parte I a origem da lenda, com o castigo horrendo aplicado ao arrogante rei Licaão, por conta do seu banquete macabro oferecido a Zeus. Vamos continuar nossa jornada, indo agora para o meio dos antigos romanos, que herdaram muitas coisas tanto dos etruscos como diretamente dos gregos.
A Sombra que Permanece
A história de Licaão, portanto, não foi apenas um conto de advertência da Grécia Antiga, mas um mito que encontrou novas formas de expressão entre os etruscos e os romanos refletindo um fascínio compartilhado pela metamorfose e pela dualidade da natureza humana. Os etruscos nos oferecem a primeira visão de um lobisomem, um ser meio homem, meio lobo, na arte aqui apresentada, uma cerâmica do século V AC. Um homem com cabeça de lobo... parece bem familiar, não é?
Assim, nas sombras que se estendem desde a antiga Arcádia até a península itálica, a lenda de Licaão permanece, um lembrete sombrio e fascinante da fina linha entre o homem e a besta. E enquanto a noite cai sobre as ruínas de templos e tumbas, pode-se quase ouvir o eco distante de um uivo, carregando consigo a memória de um rei amaldiçoado e a origem sombria da licantropia.
A Transformação Romana: Do Mito à Lenda Viva
À medida que a noite desce sobre o império romano, uma nova página na história dos lobisomens é escrita, tingida com o sangue e a tinta dos antigos. A transição das lendas etruscas e gregas para o coração de Roma não apenas transportou o horror de Licaão através do tempo e do espaço, mas também o transformou, dando-lhe novas camadas macabras.
O Eco de Petrônio no "Satyricon"
No coração dessa transição está a obra "Satyricon", de Petrônio, uma narrativa escrita no tempo de Nero, que se desenrola sob o olhar atento dos deuses e dos homens, revelando uma cena que arrepia a alma. Ei-la aqui, na íntegra:
Trimálquio olhou para Niceros e disse:
“Você costumava ser melhor companhia em um jantar. Não sei por que você está mudo agora, sequer emite um som. Por favor, para me fazer feliz, conte-nos sobre sua aventura.”
Niceros, encantado com a amabilidade de seu amigo, disse:
“Que eu nunca ganhe mais um dinar se não estiver pronto para explodir de alegria ao vê-lo com tão bom humor. Bem, então será pura diversão, embora tenha medo de que seus amigos inteligentes venham a rir de mim. Ainda assim, deixe-os. Vou contar minha história. Que mal me faz a risada de um homem? Ser ridicularizado é mais satisfatório do que ser escarnecido.”
Assim falou o herói e começou a seguinte história:
“Quando eu ainda era escravo, vivíamos numa rua estreita. A casa agora pertence a Gavilla. Ali foi a vontade de Júpiter que eu me apaixonasse pela esposa de Terêncio, o estalajadeiro. Você se lembra dela, Melissa de Tarentum, uma redonda belíssima? Mas juro que não era uma paixão vil. Eu não me importava com ela dessa forma, mas sim porque ela tinha uma natureza bonita. Se lhe pedi alguma coisa, nunca me foi recusado. Se ela ganhasse duas moedas de asses, eu tinha um centavo. Tudo o que eu tinha, coloquei no bolso dela, e nunca fui enganado.
Pois, um dia seu marido morreu na fazenda. E assim arrisquei tudo para visitá-la: mas você sabe, amigos aparecem nas dificuldades. Acontece que meu mestre foi a Cápua cuidar de algum negócio bobo ou outro.”
“Aproveitei minha oportunidade e convenci um hóspede em nossa casa a vir comigo até a fazenda. Ele era um soldado, forte como um ogro. A lua estava brilhando como meio-dia. Passamos por um cemitério.”
“Entramos entre as lápides. O soldado se afastou para olhar os epitáfios, sentei-me com o coração cheio de canções e comecei a contar as sepulturas. Então, quando olhei em volta para meu amigo, ele se despiu e colocou todas as suas roupas na beira da estrada.”
“Meu coração estava pela minha boca, mas eu fiquei como um homem morto. Ele fez um círculo de urina em volta de suas roupas e de repente se transformou em um lobo.”
“Por favor, não pense que estou brincando. Eu não mentiria sobre isso por nenhuma fortuna do mundo. Mas como eu estava dizendo, depois que ele se transformou em lobo, ele começou a uivar e correu para a floresta.”
“No começo eu mal sabia onde estava. Depois subi para pegar suas roupas; mas todas elas se transformaram em pedra. Ninguém estava mais perto da morte de terror do que eu. Mas saquei minha espada e fui matando sombras até que cheguei à casa do meu amor.”
“Entrei como um cadáver, o suor escorria pelas minhas pernas, meus olhos estavam opacos, eu mal podia ser revivido. Minha querida Melissa ficou surpresa por eu ter saído tão tarde e disse:
“Se você tivesse vindo mais cedo, pelo menos poderia ter nos ajudado. Um lobo entrou na casa e atacou todas as nossas ovelhas. E deixou sangue como um açougueiro. Mas ele não nos fez de tolos. Embora tenha saído, nosso escravo fez-lhe um buraco no pescoço com uma lança.”
“Ao ouvir isso, não consegui mais manter os olhos fechados, mas ao raiar do dia voltei correndo para a casa de meu senhor Caio como um publicano defraudado.”
“Quando cheguei ao lugar onde as roupas foram transformadas em pedra, encontrei nada além de uma poça de sangue. Mas quando cheguei em casa, meu soldado estava deitado na cama como um boi, com um médico cuidando de seu pescoço. Eu percebi que ele era um lobisomem, e eu nunca poderia me sentar numa refeição com ele depois, não se tivesse me matado primeiro.”
“Outras pessoas podem pensar o que quiserem sobre isso; mas que todos os deuses me punam se eu estiver mentindo.”
Esta, caros leitores, é a primeira cena de licantropia da literatura universal e foi escrita há 2000 anos atrás...
Edson Rodriguez, autor de PRIMA LANÇA e CONTOS da NÉVOA, fez a pesquisa e escreveu este post.
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