quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Perseguindo Sombras - Os 100 anos e o legado imortal de Nosferatu

 Perseguindo Sombras - Os 100 anos e o legado imortal de Nosferatu


Para muitos fãs de horror, o filme Nosferatu de Robert Eggers é o filme mais esperado do ano, talvez, até mesmo da década até aqui. Ele teve uma história conturbada com muitos trancos e barrancos ao longo do caminho antes de finalmente chegar às telas após quase uma década em produção. 

Sem dúvida, há muito em jogo e esse é um legado difícil de seguir dada a importância das obras que o antecederam, mas se o burburinho pré-lançamento servir como indicativo, o filme deve exceder as expectativas monumentais ao seu redor.

A história de Nosferatu remonta a mais de cem anos e é um dos maiores e mais consistentes legados de terror no cinema. Ostensivamente ele reconta a trama clássica de Drácula, mas com fundamentos muito mais sinistros do que a maioria das histórias "oficiais" do vampiro mais famoso de todos os tempos. Nosferatu em todas as suas formas se inclina para as ideias de peste, desespero e ocultismo com imagens que estão entre as mais perturbadoras de todo gênero Terror. 

Vamos falar um pouco de cada uma dessas encarnações do terrível Conde Orlock nas telas:

Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror (1922)

Embora o filme original tenha sido atribuído ao brilhante diretor alemão F.W. Murnau, a verdadeira força motriz por trás de Nosferatu: Eine Symphonie des Gauens foi seu produtor/diretor de arte Albin Grau. A grande historiadora do cinema expressionista alemão Lotte H. Eisner descreveu Grau como um "espiritualista ardente", mas hoje podemos muito bem chamá-lo de ocultista devoto. Ele viu imediatamente o potencial cinematográfico de Drácula de Bram Stoker, mas não tinha, nem ele e nem sua pequena produtora, a Prana-Film recursos suficientes para adquirir os direitos sobre o romance. Sendo assim, ele, junto com o roteirista Henrik Galeen, elaborou um roteiro que eles acreditaram poderia escapar despercebido do olhar atento da viúva de Stoker, Florance. 

O roteiro alterou os nomes e os locais do romance, mantendo sua estrutura básica. Jonathan Harker se tornou Hutter, Mina se tornou Ellen, Van Helsing se tornou Professor Bulwer, Renfield se tornou Knock e Drácula se tornou Conde Orlok. A ação principal foi traduzida da Inglaterra para a cidade de Wisborg, Alemanha. Na verdade, todo o romance complicado é simplificado para três cenários principais: o Castelo na Transilvânia onde Orlok vivia, o navio que o leva até Wisborg e a pequena cidade alemã em si. São três ambientes distintos que reúnem o início, meio e fim da trama.

O que dá a Nosferatu seu caráter singular são os muitos desvios do material de origem. Embora as raízes da história original ainda sejam identificáveis, ela ganha um caráter diverso pelas referências visuais únicas. Isso é percebido mais claramente no visual macabro do Conde Orlok, uma aparência única e diferente do idealizado por Bran Stoker em seu romance. É bem provável que a forma tétrica do conde tenha sido projetada por Grau, como implícito em seus desenhos de pré-produção. Seu vampiro não tem nada de charmoso, belo ou atraente - pelo cntrário, ele é monstruoso até a última fibra de seu ser. Grau muito acertadamente escolheu destacar as características físicas do ator Max Schreck usando maquiagem e próteses, dando destaque a sua cabeça calva e concedendo a ele dentes afiados localizados centralmente em sua boca. O resultado final é assustador, o vampiro ganhou uma aparência única de morcego ou rato que ressaltou os temas de peste do filme. 

Assim como no remake de Egger, o Nosferatu de Murnau estava a apenas quatro anos do auge de uma pandemia global que ceifou milhões em todo o mundo. As pessoas ainda se recuperavam de suas perdas e  filme ganhava dimensão ao acessar esse drama recente. Justa ou injustamente, o rato serviu como símbolo da peste por séculos, graças ao seu papel na disseminação da peste bubônica por toda a Europa medieval. Em retrospectiva, a praga de ratos também pode ser interpretada como uma indicação do clima político e social da Alemanha sob a República de Weimar, que governou a nação do fim da Primeira Guerra Mundial até 1933, como sendo solo fértil para ideias pestilentas se consolidarem. Isso, é claro, se concretizou na ascensão de Hitler e do partido nazista, apenas onze anos após o lançamento de Nosferatu.

Hoje, o filme é corretamente considerado uma obra-prima e F.W. Murnau, em grande parte por causa de Nosferatu, foi declarado por Lotte Eisner como "o maior diretor de cinema que os alemães já conheceram". A direção de Murnau, juntamente com a brilhante cinematografia de Fritz Arno Wagner, infundiu Nosferatu com algumas das imagens mais inesquecíveis de toda a história do cinema. O surgimento de Orlok de seu caixão a bordo do navio, sua sombra subindo a escada para o quarto de Ellen (Greta Schröder) antes de se estender pela porta da câmara, Orlok agarrado às molduras das janelas de sua casa abandonada. Tudo isso foi tão inovador e surpreendente que marcou um novo e vibrante estilo de filmagem. Não é de se admirar que o filme tenha capturado a imaginação de cinéfilos e cineastas por mais de um século, e é um atestado de sua importância que ele continue tão relevante.   

De certa forma, é quase um milagre que ele continue existindo. Depois que Florence Stoker soube do filme, ela imediatamente processou Grau e Prana-Film. O juiz do caso ordenou que todas as cópias do filme fossem destruídas. Há inclusive a lenda de que um procurador da viúva acabou se ferindo gravemente ao atear fogo em um rolo de filme para garantir sua destruição. Muitas cópias acabaram sendo destruídas, mas grupos clandestinos protegeram cópias que acabaram sendo contrabandeadas para fora do país. Alguns cineastas e proprietários de salas de cinema perceberam a genialidade da obra e tomaram para si a missão de preservá-la. Por muitos anos, ter uma cópia de Nosferatu podeia ser algo perigoso, já que a lei ordenara pesadas multas para quem tivesse a fita em seu poder, ou pior, a exibisse.

Nas décadas de 1930 e 1940, cópias surgiram e desapareceram. No decorrer da Segunda Guerra, algumas apareceram em Londres e foram destruídas, sobretudo por conta do sentimento anti-alemão causado pelo conflito. Contudo alguns bravos cineastas tomaram para si o dever de proteger algumas cópias e graças a eles Nosferatu pôde ser salvo. Surpreendentemente cópias originais aparecem até hoje, em coleções particulares, acervos de filmes ou até em velhos porões de cinemas desativados. Por vezes esses tesouros ocultos da sétima arte trazem cenas adicionais, imagens ou mesmo trechos em melhores condições que acabam sendo incorporados ao filme. Isso concedeu a obra um caráter de morte e renascimento bastante condizente com o tema abordado. 

Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979)

No final dos anos 1970, o diretor Werner Herzog produziu e dirigiu dois filmes consecutivos que eram tentativas de se conectar com o melhor da herança cinematográfica alemã. O primeiro deles foi Nosferatu, o segundo, Woyzeck que começaria a ser filmado apenas cinco dias após Nosferatu ser concluído. Herzog descreveu a experiência como uma forma de se conectar com seus avôs cinematográficos. Ele frequentemente descreveu sua geração de cineastas alemães, que inclui principalmente Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders e ele mesmo, como uma geração sem pais porque eles tinham comprado a cultura nazista ou fugido do país por causa dela. "Como a primeira geração real do pós-guerra, éramos órfãos sem pais com quem aprender"; Herzog contou aos seus biógrafos: "Não tínhamos professores ou mentores ativos, pessoas cujos passos seguir. Isso significava que eram os avôs — Lang, Murnau, Pabst e outros — que se tornaram nossos pontos de referência."

Herzog foi atraído por Nosferatu por várias razões, não menos importante entre elas, seu sentimento de que o filme de Murnau era "o melhor filme alemão de todos os tempos". Ele buscou conexão com seus antepassados ​​criando sua própria versão dele, que ele nunca pensou como um remake. "Ele segue seu próprio caminho com seu próprio espírito e se mantém em seus próprios pés como uma nova versão", disse mais tarde à respeito do filme.

E, de fato, o filme é genuinamente único em comparação ao seu antecessor. Embora ainda incorpore alguns de seus aspectos marcantes, ele consegue certo grau de independência. Quando Herzog decidiu fazer sua versão de Nosferatu, Drácula já havia caído em domínio público há muito tempo. Ele dispensou as armadilhas do filme original que tinha a intenção de velar, ainda que superficialmente, as origens de Nosferatu no romance de Bram Stoker e escolheu chamá-lo de Conde Drácula em vez de Orlok, Hutter mais uma vez se tornou Jonathan Harker (Bruno Ganz), agora casado com Lucy (Isabella Adjani), e Roland Topor interpretou Renfield (e um dos Renfields mais bizarros e hilários da história) em vez de Knock. Os locais, no entanto, mantiveram a semelhança com o filme de Murnau, assim como o visual do vampiro, a ênfase na praga simbolizada por hordas de ratos e a centralidade de Lucy como aquela que detém o poder de destruir o mal que invadiu sua cidade natal.

Os elementos singulares que tornam esse filme algo mais do que mera repetição do original são muitos, mas os mais notáveis ​​têm a ver com o vampiro, a protagonista e a maneira como os locais são capturados no filme. O filme marcou a segunda de cinco colaborações de Herzog com o lendariamente volátil e imprevisível protagonista Klaus Kinski. Herzog o descreveu essa como a sua experiência de trabalho mais agradável. "Durante quase toda a filmagem, Klaus estava feliz e à vontade consigo mesmo e com o mundo, embora ele fizesse birra talvez a cada dois dias." 

Esta foi uma melhoria marcante em relação ao relacionamento deles em Aguirre: a Cólera de Deus (1972), que acabou sendo um mero prenúncio do furacão que estava reservado para eles em Fitzcarraldo (1982). Em Nosferatu, Herzog e Kinski buscaram "humanizar" o vampiro, dando a ele "uma angústia existencial real" que o sugador de sangue sem alma de Schreck não tinha. “Eu queria dotá-lo de sofrimento humano, com um verdadeiro anseio por amor e, mais importante, a única capacidade essencial dos seres humanos: a mortalidade”, disse Herzog, “Ele estava profundamente amargurado com a solidão e incapacidade de se juntar ao resto da humanidade.”

De muitas maneiras, o Nosferatu de Herzog deu origem aos vampiros com crises existenciais e questionamentos sobre o que eles haviam se tornado e como enxergavam um mundo que não era mais o deles. Essa linha dramática foi posteriormente explorada por inúmeros autores e diretores e serviu para oxigenar o mito dos vampiros concedendo a eles nuances que iam muito além do monstro morto-vivo.

A Lucy, de Adjani, também tem mais o que fazer do que a Ellen, de Schröder, e tem muita diligência no filme. Numa das cenas mais marcantes ela se encontra no meio da praça da cidade enquanto dezenas de caixões passam por ela nos ombros de homens que os carregam para fora da cidade. Perto dali, homens e mulheres atordoados dançam ao redor de fogueiras alimentadas pelos móveis de casas que ardem. As pessoas não precisam mais de nenhuma dessas meras posses, pois os ocupantes estão todos mortos e os ratos invadem as ruas. É uma imagem surpreendente que evoca o tema da peste, a praga disseminada e a mortalidade humana. 

Outra sequência marcante acontece no início do filme, quando Harker viaja para o Castelo Drácula a pé por paisagens impressionantes e por lugares ermos que ninguém parece ter visto em muito tempo. A sensação de isolamento é sufocante. Este é um dos maiores dons de Herzog como cineasta — ir a lugares que ninguém mais iria para nos mostrar paisagens que nunca foram vistas e posicionar sua câmera de modo que essas paisagens pareçam sobrenaturais. O filme é uma obra de beleza poética infundida com uma sensação constante e implacável de pavor.

A Sombra do Vampiro (2001)

Por mais que eu ame as versões "oficiais" de Nosferatu, e embora esta esteja fora desse reino, Sombra do Vampiro é um dos meus filmes prediletos de vampiros. A premissa do filme é bastante simples: E se o misterioso ator Max Schreck fosse realmente um vampiro? 

A trama oferece uma visão do processo da produção cinematográfica, do método usado para a produção e da natureza da própria arte em si, tudo reunido em rápidos noventa e cinco minutos. É tudo muito "rápido" e "direto ao ponto", mas não soa corrido ou apressado de forma nenhuma. Na verdade, o filme captura muito da estranheza do filme de Murnau, ao mesmo tempo em que é um drama envolvente e um filme muito, muito divertido. 

Produzido pelo astro Nicolas Cage, um entusiasta e fã assumido de vampiros, e dirigido por E. Elias Merhige, que chamou a atenção do produtor com seu filme sombrio e surreal Begotten (1989), Sombra é um casamento perfeito de cineastas e uma obra específica. Assim como Albin Grau, Merhige é fascinado pelo ocultismo e tinha um relacionamento próximo com Werner Herzog na época em que ele fez o filme. Diz a lenda que ele teria oferecido a Herzog o papel de Murnau, mas que este não aceitou apesar da insistência. Dá para imaginar como ele teria atuado, literalmente calçando os sapatos de seu ídolo, mas por outro lado não teríamos uma das grandes atuações de John Malkovich que assumiu o personagem.

Sombra do Vampiro apresenta um dos elencos mais brilhantes já reunidos para um filme desse tipo, incluindo John Malkovich como Murnau, Udo Kier como Grau, Cary Elwes como Wagner, Catherine McCormack como Greta Schröder e Eddie Izzard como Gustav von Wangenhein, que interpretou Hutter em Nosferatu. Todos têm atuações excelentes, mas Willem Dafoe como Max Schreck é nada menos que sensacional. Ele recebeu uma merecida indicação ao Oscar pela sua construção do Conde. 

O cerne do filme se concentra nos esforços que um artista (no caso o diretor) está disposto a fazer para ter sua visão concretizada, não importando os custos para si ou para qualquer outra pessoa. Os cineastas são retratados como cientistas loucos vestindo jalecos e óculos de proteção, uma necessidade na época devido aos resíduos criados pela iluminação. Murnau é regularmente chamado de "Herr Doktor" e esse tipo de Dr. Frankenstein declara repetidamente que fazer filmes é um ato de guerra. "Nossa batalha, nossa luta é criar arte. Nossa arma é o filme", ​​ele diz enquanto a equipe embarca em um trem para seu primeiro local de filmagem. Ao longo do filme a câmera é comparada a uma metralhadora. 

No final, essa versão fictícia da produção de Murnau se torna tão avassaladora que o mundo se torna o artifício e o que é filmado, a única coisa real. Sombra do Vampiro é um filme genial sobre loucura e criatividade.

É também o mais difícil de todos esses filmes de se encontrar. Apesar do elenco de estrelas, d eter sido produzido por um ícone de Hollywood e ser propriedade da Lionsgate e Universal, o filme não está disponível para streaming e permanece preso em um DVD fora de catálogo. Agora, com todo burburinho em torno de Nosferatu, nenhum filme é mais merecedor de um streaming de alta definição e lançamento físico do que esse. Para quem não assistiu, fica a dica, se conseguir colocar as mãos nele, assista.

Sombras e Influência

Vários outros filmes se apropriaram do nome de Nosferatu e o usaram para vários propósitos. 

Klaus Kinski assumiu a responsabilidade de retornar ao seu personagem vampírico, com resultados muito diferentes do filme de Herzog, em "Nosferatu em Veneza", de 1988, dirigido por Augusto Caminito e sobre o qual, quanto menos se falar, melhor. 

Mimesis: Nosferatu (2018) vê um professor do ensino médio, Professor Kinski (Joseph Scott Anthony), montando uma produção teatral de Drácula fortemente influenciada pelo filme de Murnau e estrelando um aluno obcecado por vampiros chamado Michael Morbius (Connor Alexander) no papel principal. O filme contém uma série de easter eggs relacionados a vampiros, incluindo vários nomes inspirados em Fright Night, Salem’s Lot e até mesmo Twilight. Ele também apresenta várias aparições breves de Lance Henriksen como um mentor enigmático criando um culto de vampiros no molde do Conde Orlok de Max Shreck. 

Também lançado nesse mesmo ano, após um longo período de gestação, temos "Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror" estrelando Doug Jones no papel do vampiro. O filme, financiado por uma campanha do Kickstarter, é mais ou menos um remake cena por cena do filme de Murnau com atores modernos inseridos em recriações geradas por computador dos locais e cenários usados ​​no original. Curioso sem dúvida, embora talvez desnecessário.

Talvez ainda mais prevalentes tenham sido os muitos filmes que prestam homenagem ou refletem a influência de Nosferatu para criar vários efeitos — do assustador ao cômico. Em 1979, o mesmo ano do filme de Herzog, a produção televisiva de Tobe Hooper, "Salem's Lot" baseado na obra de Stephen King apresentou Kurt Barlow, uma criatura claramente modelada a partir do Orlok de Max Schreck. Curiosamente o personagem tem muito pouca semelhança com o personagem descrito no livro de King. 

Outras homenagens incluem Ben Fransham como Petyr no filme de mesmo nome lançado em 2014 e uma vez mais Doug Jones como o Barão Afanas na versão televisiva de "O Que Fazemos nas Sombras" (2019). No ano passado, Javier Botet interpretou o vampiro cinza, careca e com orelhas de morcego com grande efeito em "A Última Viagem do Deméter", pelo qual o personagem é creditado como Drácula/Nosferatu. 

O alcance de Nosferatu pode ser encontrado ao longo da história do cinema em personagens tão diversos quanto as formas animalescas dos vampiros em A Hora do Espanto (1985) e The Lost Boys (1987) a várias encarnações do Conde de Gary Oldman em Drácula de Bram Stoker (1992) a Marlow de Danny Huston em 30 Dias de Noite.

Parece provável que a nova versão do filme de Eggers fique ombro a ombro com o longo e imponente legado de Nosferatu. Parece que os fãs de terror estão famintos por uma releitura da versão clássica do mito do vampiro que seja genuinamente perturbadora, até mesmo, ouso dizer, assustadora. Provavelmente, e digo por mim mesmo, talvez seja o momento do vampiro clássico reclamar o status de MONSTRO uma vez mais, e se libertar da figura de criatura amargurada que o acompanha nas últimas décadas. O vampiro surgiu como um horror incompreensível, uma força nefasta de morte e esquecimento, que existe (não vive) para tornara  vida dos mortais um tormento. É para isso que ele foi criado, é para isso que precisa voltar.

Com as inúmeras variações do personagem ao longo dos anos, é revigorante retornar ao básico do porquê essas criaturas invadem nossos sonhos e nossos medos em primeiro lugar. De porque são tão fascinantes e por que o asco que deviam causar se converte em fascínio?

Há uma qualidade primitiva em Nosferatu que é encontrada além das virtudes de Drácula, ele é a fera inumana que não tem romance ou remorso, simplesmente ataca nossos medos mais profundos, sombrios e potentes em busca de sangue.

E é esse o vampiro de que sentimos saudade!

A Sombra do Vampiro - A estranha carreira do astro de Nosferatu


Seu nome em alemão significava "Terror". Talvez por isso muitas pessoas acreditavam que se tratava de um pseudônimo - com certeza, nenhum artista escolhido para interpretar papéis tão terríveis poderia ter um nome tão sugestivo. Seria muita coincidência! Mas no fim das contas, não era um simples pseudônimo. Alguns então acharam que o homem não era sequer um ator, mas um morto-vivo, idêntico àquele que ele interpretava em filme. Um vampiro!

A lenda persiste há décadas e já deu origem a muitas teses, livros, monografias e até um filme chamado "A Sombra do Vampiro", dirigido pelo alemão E. Elias Merhige. Nele é postulado que o homem por detrás da incrível performance do macabro Conde Orlock, no filme seminal de horror Nosferatu (1922), não seria um ator, mas um vampiro de carne e osso. A postura, a imagem conjurada, a maneira como o ator escolheu interpretar a criatura, tudo aquilo era estranho e convincente demais.

Os próprios colegas e a equipe de produção não sabiam o que pensar do sujeito chamado Max Schreck, o homem que encarnou o primeiro vampiro nas telas do cinema. Ele era estranho, introspectivo, soturno, quieto... não se misturava aos demais, só falava com o diretor usando aquele tom gutural. Não tirava a maquiagem monstruosa e preferia usá-la sempre que estava no set. Não comia com os demais, não comemorava com eles, sequer bebia água e não se relacionava com ninguém fora de cena.


Nascido Friedrich Gustav Max Schreck em 6 de setembro de 1879 na região de Friedenau próximo de Berlin, Alemanha, pouco se sabe a respeito de seus primeiros anos. Os detalhes de sua infância e adolescência são desconhecidos. Há boatos de que ele seria um órfão, abandonado na porta de um teatro de variedades. Para ganhar comida começou a atuar no palco muito jovem. Teria trabalhado nos estranhos espetáculos de Grand Guinol, em que eram encenadas cenas de torturas, horrores e puro terror. Seu papel era de ajudante do torturador, aquele que estendia a ele os bisturis, serras e machados usados para cometer as maiores atrocidades.

Com esse começo humilde, poucos poderiam imaginar que ele se tornaria um ator de respeito. Schreck foi escalado para um papel menor numa peça apresentada no famoso Teatro Municipal de Berlin, onde chamou a atenção de críticos. Era o ano de 1902 e ele havia acabado de completar 22 anos, emergindo como um nome importante na dramaturgia da Alemanha. Não foi nos palcos, entretanto, que ele conquistaria fama, mas em uma nova mídia que estava surgindo no período, o cinema.

Antes Schreck se juntou a uma companhia de prestígio pertencente a Max Reinhardt um dos empresários mais conhecidos no país, responsável pela carreira de estrelas em ascensão. Um dos métodos da companhia de Reinhardt era filmar as performances e depois estudar a postura dos atores. Isso ajudou a familiariza-lo com as câmeras, deixando-o à vontade para atuar diante delas. No começo do século XX, o Cinema Alemão despontava como um dos mais respeitados do mundo. O movimento do Expressionismo estava em seu auge e precisava de talentos como aquele.


Sua estréia no cinema foi com o filme Tambores na Noite, produção do aclamado dramaturgo Bertolt Brecht. Dali ele foi escalado para um papel importante em "Der Richter von Zalamea". O ator magro, muito alto e com olhar expressivo era perfeito para o cinema mudo. Logo ele se tornou uma estrela.

Essas primeiras experiências na tela acabariam por atrair a atenção de um dos mais conhecidos diretores do período, F.W. Murnau, pioneiro do Cinema Expressionista. Murnau estava trabalhando em uma ambiciosa adaptação não oficial da novela de Bram StokerDracula. Faltava no entanto um ator capaz de interpretar o personagem principal da maneira que Murnau desejava: um vampiro convincente. Na visão de Murnau, o Conde não seria um aristocrata ou uma alma nobre, mas um monstro assassino, uma besta que havia abandonado sua natureza humana e abraçado as paixões pelo sangue, pela morte e pelo horror. 

Mas haviam problemas ao adaptar a novela. A viúva de Bram Stoker não estava satisfeita com o roteiro dos alemães e moveu uma ação contra Murnau proibindo-o usar a história de seu falecido marido. A solução foi fazer mudanças drásticas na história, transformando o protagonista Dracula em Orlock, uma criatura das sombras que dificilmente conseguiria se misturar às pessoas sem despertar nelas pavor pela sua aparência grotesca.  

Murnau tinha dificuldade em encontrar o ator ideal para o papel, mas seus problemas terminaram quando ele se deparou com Max Schreck em uma entrevista. Após uma breve conversa, ele ofereceu o papel, mas a princípio o ator demonstrou dúvida: "Se vou fazer esse papel, eu quero liberdade para atuar da maneira que eu achar mais correta", teria dito ao grande diretor. No fim, ele acabou concordando com os termos, acreditando que Schreck seria a melhor opção de protagonista. Schreck exigiu total imersão no papel e estabeleceu uma série de regras que deveriam ser seguidas à risca. Ele seria chamado exclusivamente de Orlock dentro e fora de cena, apareceria apenas maquiado, não iria se relacionar com os colegas atores e sequer quis ser apresentado à eles. 


Seu método era excêntrico para dizer o mínimo! 

O "vampiro" se esgueirava pelos cantos do set de produção, procurando as sombras e ficava ali parado por longos minutos sem dizer uma palavra. Encarava os colegas com uma expressão curiosa como se estivesse analisando seu comportamento e como se tudo aquilo fosse incomum aos seus olhos de vampiro. Quando era chamado para uma cena, assumia a interpretação sem errar uma linha, mas também improvisava, incluindo palavras estranhas que afirmava pertencer ao seu passado. Em dado momento, quando um produtor o chamou de Max, ele se voltou para ele e ameaçou morder sua mão. Em outra ocasião teria capturado um gato preto e brincado com ele, ameaçando mordê-lo para extrair seu sangue, como um vampiro faria. Os assistentes de produção começaram a ficar assustados com aquilo. Alguns não queriam ficar sozinhos com ele. Murnau achava tudo aquilo muito interessante para o filme, a produção estava carregada com uma autêntica aura de medo. 

Outra condição era que ninguém soubesse sua identidade real. Quando atores perguntavam qual era seu nome e ele respondia sem vacilar: Orlock. "Eles me encontraram e me trouxeram aqui para contar minha história" concluía com sua voz monocórdia. Esse método estranho de incorporar o personagem começou a afetar os demais atores em cena que queriam saber quem era o sujeito. Murnau acabou aderindo, afirmando que Orlock era de fato um vampiro, convidado a participar do filme e contar sua história. Ele receberia sangue como pagamento e precisava ter sua privacidade respeitada.


A produção de Nosferatu foi concluída nos lendários estúdios da UFA com uma equipe reduzida de profissionais envolvidos. Alguns atores teriam afirmado estar aliviados com a conclusão das filmagens. Não precisavam mais contracenar com aquele sujeito estranho de aparência cadavérica.

O final das filmagens contudo não significava que a produção chegaria ao público. Nosferatu enfrentou uma tentativa de censura movida por uma Corte Alemã e correu risco de ter as cópias confiscadas e destruídas em face da ação legal movida pela Família Stoker. Murnau conseguiu preservar as cópias e as escondeu em um cofre por algum tempo, ao menos até a situação se acalmar. 

Por conta disso, o filme só chegaria ao público décadas mais tarde quando seria saudado como uma obra de arte e verdadeiro clássico da sétima arte.

Mas o que aconteceu com o estranho Max Schreck?

Ele pediu que seu nome fosse desvinculado de Nosferatu para continuar construindo a mística sobre o personagem principal. Por algum tempo, ninguém sabia quem era o sujeito atrás da maquiagem, e alguns se perguntavam se aquilo era realmente maquiagem ou a face verdadeira de um vampiro que aceitou aparecer no filme. O rumor foi alimentado pelos produtores e todos que trabalharam nas filmagens. Seu nome só foi descoberto após sua morte quando passou a ser associado a Nosferatu.


Ao contrário do que muitos imaginam, Max não se aposentou após seu papel mais marcante. Ele trabalhou em várias outras produções, inclusive com Murnau em 1924, adaptando obras de Brecht em comédias e dramas. Sua carreira sobreviveu até mesmo à introdução do cinema falado, com ele aparecendo em filmes ao longo dos anos 1930.

Após fazer um retorno triunfal aos palcos no papel do Grande Inquisidor na montagem de Don Carlos, Schreck foi levado ao hospital sentindo fortes dores no peito. Ele morreu na manhã seguinte, em fevereiro de 1936, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Foi enterrado em uma sepultura não identificada no cemitério Wilmersdorfer em Berlin.

As pessoas próximas a Max Schreck sempre o consideravam um sujeito estranho e seus contemporâneos o tinham como um excêntrico. Seu senso de humor era ácido e negro ao extremo, chegando ao ponto de fazer brincadeira com temas controversos apenas com o intuito de chocar os ouvintes. Gostava de pregar peças nas quais fingia estar morto e numa ocasião uma ambulância teria sido chamada às pressas para ajudá-lo. Ele foi casado com a atriz Fanny Normann, mas não chegou a ter filhos.

Apesar de sua extensa carreira, Schreck seria sempre lembrado como o sinistro Conde Orlock, especialmente fora de seu país natal postumamente. Seu nome se tornou sinônimo de cinema de horror, algo que ele de fato merecia. Foi ele quem nos deu um dos primeiros monstros do cinema e fez incontáveis pessoas perderem o sono, tudo isso sem dizer uma palavra, simplesmente recorrendo a expressões e olhares. 

Ele pode não ter sido um vampiro de verdade como muitos acreditavam, mas seu legado como Nosferatu e os rumores que seu papel despertou construíram uma lenda que permanece até hoje. 

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