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sexta-feira, 20 de maio de 2022

CURITIBA DOS ANOS 1950: MEMÓRIAS DE UM GURI Por: Altevir Vechia CURITIBA E O PILARZINHO

CURITIBA DOS ANOS 1950: MEMÓRIAS DE UM GURI
Por: Altevir Vechia
CURITIBA E O PILARZINHO

CURITIBA DOS ANOS 1950: MEMÓRIAS DE UM GURI
Por: Altevir Vechia
CURITIBA E O PILARZINHO
Nos anos de 1950, o bairro do Pilarzinho (hoje Bom Retiro) era pouco habitado, com muitos campos, espaços vazios, matas e riachos que cortavam o seu território. Posteriormente, parte deste território foi desmembrado do Pilarzinho e agregado ao bairro do Bom Retiro.
Na época, as ruas eram, invariavelmente, de barro batido. Quase não havia circulação de carros, contudo havia muitas carroças, charretes, "phaetons" (uma carroça de origem inglesa) e uma charrete com grandes rodas, para uma só pessoa, chamada de "aranha", um veículo de luxo, que poucos possuíam. As melhores ruas, como a Hugo Simas e a Tapajós, já dispunham de pavimentação de macadame, que consistia numa camada compacta de saibro misturado com pedras. Nos dias chuvosos, os sapatos é que sofriam com a lama vermelha e pegajosa. Por este motivo, em todas as casas havia, junto à porta de entrada e mesmo antes do portão de entrada do terreno, um "raspador de barro". Este equipamento era uma lâmina de aço, presa ao chão através de estacas, onde podíamos raspar os vários centímetros de lama dos solados. Isto era feito sempre que chegávamos da rua. Após a raspagem, os sapatos tinham que ser lavados com água e escova de piaçava e postos para secar ao sol.
A rua onde eu morava chamava-se, no início, Rua Augusto Severo; posteriormente, seu nome foi modificado para Rua Itiberê e, alguns anos depois, para Rua Henrique Itiberê da Cunha, nome que permanece até hoje.
Quase todas as casas eram construídas com tábuas de madeira de Pinho do Paraná, a conhecida Araucária. Cada tábua tinha a espessura de uma polegada ou 2,5cm, e uma largura de 30 a 33 cm; eram pregadas, na vertical, a um vigamento de pinho, sendo que cada viga media uns 8 x 10cm. As frestas entre as tábuas eram fechadas com um sarrafo ou mata-juntas. A madeira de pinho dava uma vida útil para as casas de uns 60 a 100 anos, pois eram utilizadas árvores centenárias na sua confecção. Estas árvores tinham um diâmetro de mais de um metro e até mais de vinte metros de altura. Como o pinho produz uma resina vermelha, sua madeira possuía veios de coloração avermelhada, que na linguagem dos carpinteiros, era chamado de "cerne". Para termos uma ideia do tamanho dessas árvores, os tampos das mesas eram feitos de uma tábua só, sem emendas, com uns 80 cm de largura. Algumas casas eram construídas de madeira de peroba e, umas raríssimas, de madeira de imbuia. Essas duas possuíam uma duração quase ilimitada. A imbuia, muito utilizada pela indústria moveleira da época, mesmo se deixado no tempo em contato com o solo, o sol e a chuva, levava, talvez, centenas de anos para se deteriorar. As árvores que produziam esta madeira, também eram centenárias e tinham geralmente uns 2 metros de diâmetro, coisa que eu comprovei pessoalmente. Devido à sua excelente qualidade, a imbuia está praticamente extinta no Paraná.
As casas eram assentadas sobre pilares de tijolos, os quais mediam entre 80 cm a 1 metro de altura. Algumas casas eram construídas sobre pilares de mais de 2 metros, de maneira que houvesse um espaço em baixo, - o porão -, que era utilizado para guardar lenha para o fogão, ferramentas e outros pertences. Alguns moradores de origem alemã, seguindo a tradição campesina do seu país, construíam uma estrebaria nesse espaço e, à noite, recolhiam suas vacas, as quais eram criadas em seus terrenos ou mesmo soltas nas ruas. Essa tradição alemã, segundo consta, era para gerar calor durante as noites frias, o que era muito apropriado para o clima de Curitiba naquela época, pois, no inverno, as geadas eram quase diárias e a temperatura facilmente chegava a vários graus negativos.
A pintura das casas era feita com um preparado à base de cal e cola de madeira. Naquela época não havia a cal hidratada, só existia a cal-virgem, vendida em pedras. A cal deveria ser mergulhada na água, o que provocava uma reação química muito forte, com vapores cáusticos, muito calor e bastante ruído, verdadeiras explosões. Esse processo era chamado de "queimar a cal". Após a queima, resultava uma massa completamente branca e pastosa que tinha que esfriar e descansar por alguns dias antes de ser utilizada. A cola-de-madeira era produzida a partir do cozimento industrial de tendões de bois e era vendida em barras sólidas de uns 30 centímetros. Para ser diluída, a mesma tinha que ser fervida em água por várias horas e, por ser um produto orgânico, exalava um odor terrível. Alguns pintores tinham alguns "truques" extras para preparar a tinta de cal; um desses segredos era a mistura de leite azedo à cal, pois desta forma, a tinta "pegava" melhor na madeira.
As famílias mais abastadas possuíam umas poucas casas de "material", como eram conhecidas as casas de alvenaria. Essas casas, mais opulentas, eram chamadas de Vila. Alguns colocavam na fachada o nome de "Vila", acrescido do nome da família. Algumas dessas casas eram verdadeiras mansões na nossa pobre maneira de ver as coisas. Hoje, elas são ridículas se comparadas às casas mais modernas.
Até aproximadamente o ano de 1952, não havia energia elétrica no bairro. A iluminação das casas era feita na base de lampiões de querosene. A luminosidade produzida era parecida à de uma lâmpada de 15 w. Leitura à noite, só com muita força de vontade. Uma grande novidade, surgida lá pelo início dos anos 1950, foi o lampião a gás de querosene, das marcas Aladim e Petromax. Estes aparelhos usavam uma camisinha de amianto, que em contato com a chama, incandescia-se e proporcionava uma iluminação bem razoável. Havia nesses lampiões, uma bombinha lateral, que fazia pressão no bujão do querosene e gerava o gás. Uma novidade e tanto, para a época.
À noite, a escuridão só não era total porque tínhamos a luz da Lua, pois também não havia iluminação pública. Quando saíamos, era obrigatório o uso de lanternas elétricas, senão, poderíamos cair num buraco, numa valeta, numa poça d'água ou mesmo pisarmos num "bolo de vaca", pois havia muitos desses quadrúpedes leiteiros, soltos pelas ruas. Para quem nunca pisou em um deles, "bolo de vaca" é bosta, mesmo; o grande perigo era quando aquilo estava fresco e mole ou quando já possuía uma casquinha em volta do miolo mole já fermentado. É correta a expressão do ditado popular: "quanto mais mexe, mais fede”. Alguns moradores que não possuíam lanternas a pilha, que eram um produto importado e caro, usavam lanternas de querosene ou improvisavam: cortavam uma vela de sebo ao meio e grudavam-na dentro de uma lata de Leite Ninho; lata na qual pregavam um pedacinho de cabo de vassoura, porque é óbvio que a lata esquentava. Pois não é de ver que essas lanternas produziam um facho de luz bastante potente!
Nessa época, tínhamos o salutar hábito de comer gelatina só durante o inverno. Esquisito, né? Bem, o caso é o seguinte: como não havia energia elétrica nas casas, também não possuíamos geladeiras. Como o inverno curitibano era de rachar, pois geava quase todas as madrugadas durante três meses, nossas mães preparavam a gelatina durante à noite, colocavam-na numas tigelinhas e estas eram deixadas ao relento ou na varanda e... voilà, pela manhã tínhamos a gelatina sólida, que algumas crianças chamavam de "treme-treme".
Outro hábito interessante trazido da Europa, era a maneira de conservar a carne de suíno, que era muito utilizada na época. A carne era fritada na banha quente, num caldeirão de ferro. Depois, ainda quente, era colocada em latões de 18 litros, juntamente com a banha derretida que devia cobrir a carne totalmente. A duração dessa conserva era de vários meses. O delicioso era quando se chegava ao fundo da lata. Ali ficava depositado algo parecido com torresmo e também uma geleia, que era comido com broa de centeio com uma pitada de sal. Sabe qual a razão dessa trabalheira toda? Porque não existiam geladeiras.
Até o ano de 1957, não havia rede de água encanada; por este motivo, todas as casas possuíam um poço ou cisterna escavada no próprio terreno. Estes poços eram revestidos internamente com tijolos e alguns tinham mais de 20 metros de profundidade. A água era retirada através de um balde enganchado a uma corda ou corrente que era acionada por um rolo com manivela. Algumas casas tinham uma bomba hidráulica manual. O poço era bem tampado e vedado, evitando, desta forma, acidentes e preservando a qualidade da água. Quem possuía um poço mais profundo era um verdadeiro felizardo, pois a água era certamente de um lençol freático rochoso e a água era mais pura, mais fresca e mais "lisa" quando descia pela garganta. O interessante é que esta água "matava” a sede mais facilmente. Existia nesta época, a profissão de "poceiro" e a de "achador de água". O "achador" usava uma forquilha de pessegueiro que, através do que hoje entendemos ser a Radestesia, apontava com certeza o local onde passava o lençol freático.
O banheiro (vaso sanitário) era chamado de "privada" e ficava na "casinha", uma construção de mais ou menos um metro quadrado, localizada a uns dez metros da residência. Possuia um assento sanitário, feito em madeira, e um fosso de uns dois ou três metros de profundidade que servia de fossa sanitária. A matéria fecal era absorvida pela terra.
As refeições eram preparadas em fogões a lenha, os quais eram construídos com tijolos e recobertos com uma nata de cimento, esta, invariavelmente da cor vermelha. O cozimento em fogão de lenha é algo inigualável, principalmente se estivermos falando do cozimento do feijão preto em uma panela de ferro. A lenha queimada nos fogões era fornecida em domicílio, regularmente, por carroceiros e comprada a metro cúbico. Os toros mediam mais ou menos 1 metro de comprimento por 10 cm de diâmetro. Todas as casas dispunham, no quintal, de um "picador de lenha"; nada mais que uma tora de uns 20 cm de diâmetro, deitada ao chão e presa com pequenas estacas de madeira, e um machado. As famílias de origem alemã, pela tradição folclórica do trabalho em grupo, usavam o "traçador e o cavalete". O traçador é uma serra com mais de 1,5m de comprimento, com um cabo em cada extremidade, manipulada por duas pessoas. O tronco de madeira era colocado no cavalete; enquanto uma pessoa prendia o tronco no cavalete, outras duas operavam o trado, num movimento de vaivém. O tronco era serrado em pedaços de unas 20 cm de comprimento, virando "tolete" que depois era rachado a machado, tranformando-se em "lenha" para o fogão.
Com o passar dos anos, os moradores da redondeza descobriram uma forma de economizar nos gastos com a lenha, que era razoável. Havia no bairro a "Lâmina", na verdade uma indústria que desdobrava toras de madeira para a produção de lâmina que depois era transformada em palitos e madeira compensada. Esta indústria, de propriedade dos Irmãos Mylla, começou a doar os resíduos do processo: cascas das toras, serragem, "cepilho" (maravalha) e aparas. Desta forma, tornou-se rotina para a gurizada, "ir buscar lâmina" após a chegada das aulas. Sempre íamos numa turminha, pois era mais animado. Muitas donas de casa começaram a fazer, também, este trabalho, surgindo em pouco tempo, uma acirrada disputa pelo precioso resíduo. Em quase todas as casas surgiram estoques particulares destes materiais.
Uma das melhorias surgidas a seguir foi o "Fogão Econômico", avançado para a época, feito em chapas de aço, esmaltadas quase sempre na cor branca, ferro fundido e com recheio de tijolos cerâmicos. Esses fogões eram produzidos pela Fundição Marumby ou Mueller & Irmãos, localizada no prédio onde hoje funciona o Shopping Mueller.
Por volta de 1952, com a chegada da luz elétrica, fornecida pela Companhia Força e Luz do Paraná, abandonamos os lampiões e chegamos à era da lâmpada elétrica e do refrigerador e à era do rádio, um verdadeiro sonho de consumo e orgulho para quem pudesse adquirir um desses aparelhos. As marcas Zenith e Semp eram as mais conhecidas. O que contava, para o feliz e orgulhoso proprietário, era se o aparelho possuía o "olho mágico", uma válvula, de cor esverdeada, parecendo a íris de um olho e que indicava se a sintonia estava correta. Outro motivo de orgulho era o número de válvulas que equipava o aparelho, pois, quanto mais, melhor. Enfim, pelas manhãs, enquanto tomávamos o café, antes de irmos ao Grupo Escolar Prieto Martinez, já podíamos ouvir a "Revista Matinal", programa informativo do radialista Arthur de Souza e, à noite "assistíamos" aos programas de auditório da Rádio PR-B2, do radialista Mário Vendramel. O B2 do prefixo indicava que ela era a segunda rádio a ser fundada no Brasil.
Com o tempo, começaram a chegar às rádios, novelas, através das ondas curtas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Outra rádio bastante ouvida à noite era a Mayrink Veiga e o comentarista de política internacional, Al Neto, com sua voz grave, um tanto fanha e profunda. Até a gurizada ouvia notícias sobre política internacional, pois tudo era novidade. A novela que mais marcou época era de origem cubana ou mexicana, sendo que o autor chamava-se Felix Caignet; a novela era "O Direito de Nascer" e contava a história chorosa do garoto Albertinho Limonta. Foram uns três anos de sofrimento diário para as donas de casa.
A gurizada também ouvia novelas próprias para menores. A mais famosa e requisitada era transmitida pela Rádio Nacional, por volta das 18:00 horas e chamava-se "Jerônimo, o Herói do Sertão", escrita por Moysés Weltman, em 1953. O personagem principal era "protagonizado” pelo radialista Milton Rangel. Jerônimo era filho de "Maria Homem", conforme a letra da música de abertura, mulher sertaneja, corajosa, valente, como o próprio apelido informa; fazendeira que ficara viúva, talvez tendo o marido assassinado por um Coronel nordestino. Jerônimo, então, nem se fala; era macho prá mais de metro. Tinha um companheiro de aventuras, alcunhado de "Moleque Saci", que como o apelido já diz, era um negrinho, mirradinho, mas valente prá burro, interpretado por Cauê Filho.. A eterna noiva do Jerônimo chamava-se Aninha e como a história do Fantasma e de Diana Palmer, Donald e Margarida, nunca se casavam. Jerônimo vestia sempre uma camisa de mangas compridas, preta e colada ao corpo musculoso. Portava um cinturão com dois revólveres. Sabemos desses detalhes porque, algum tempo depois, surgiu uma revista em quadrinhos com o personagem. Pois bem, Jerônimo tinha um "saque relâmpago", que os olhos não podiam acompanhar. Tinha também uma pontaria certeira; jamais matava o adversário, pois seus tiros acertavam a arma do oponente, desarmando-o, à moda dos mocinhos americanos como o Durango Kid (meu favorito), Cavaleiro Negro e tantos outros. O maior e mais temido adversário de Jerônimo chamava-se Caveira, o qual tinha um assecla, o meliante alcunhado de Chumbinho. Caveira vestia sempre um capuz com o desenho de uma caveira, de maneira que ninguém até hoje descobriu sua verdadeira identidade. Caveira tinha uma voz gutural e cavernosa, a qual era imitada por todos os "piás". Penso que em função dessas imitações, que forçavam bastante a laringe e cordas vocais, alguns de nós, quando adultos, ficaram com uma voz bem grave, parecida com a do Caveira. Se a voz caveirosa e cavernosa já nos ocasionavam arrepios, a gargalhada, sua marca registrada, fazia a "crina" da nuca ficar em pé. O Caveira era bastante organizado e burocrático. A toda hora ele chamava o capanga Chumbinho da seguinte forma: "Chumbiiiiinhoooooo, apresente seu relatóóório... Já imaginou um criminoso mais organizado, em pleno sertão nordestino, nos anos 50, com relatório? Bem, nessa hora o Chumbinho vinha se arrastando de medo; medo de ter cometido um deslize nas ordens dadas pelo chefe. Parecia um cachorro chutado, um "guaipeca". Ai dele se não tivesse cumprido as ordens à risca. Sempre que Jerônimo chegava perto do Caveira, este se escafedia, com uma daquelas gargalhadas terríveis. Também, se ele fosse preso ou morto, a novela tinha que terminar.
Com o passar do tempo, começaram a surgir outros heróis: Capitão Atlas, o Santo e seu companheiro Ling Tung, um chinesinho que não pronunciava os erres, como todo o chinês. Depois, surgiu um tal de Dick Peter. Contudo, esses novos heróis não fizeram a cabeça da piazada.
2. CURITIBA DOS ANOS 1950
O QUE ERA SER UM GURI
Naquela época não existiam as denominações: garoto (a), menino(a). Existiam "guris", "gurias" e "piás".
Guri era aquele cara do nosso tamanho e da nossa idade. Alguém menor e mais novo que nós era chamado de "piá". Se um guri chamasse outro guri de piá, certamente estava querendo briga.
Existia outra maneira de provocar uma briga, geralmente com alguém de outra "zona". Quando o estranho passava por nós, dizíamos: —"Ei guri lambarí, qué apanhá, pula aqui". Se ele topasse, estava feita a caca.
BRINCADEIRAS DAS GURIAS
PULAR CORDA
As gurias (e as vezes os guris também participavam) pulavam corda da maneira tradicional: a corda era segurada e girada por duas pessoas e as outras pulavam por determinado tempo, contado da seguinte maneira: quando começava pular, a guria dizia:—Ai, ai. As outras perguntavam: —Que foi? —Saudades...—De quem? — Do cravo, da rosa, da flor mais cheirosa, um...dois...três. Daí, saía para dar lugar para outra e a brincadeira continuava.
BRINCAR DE "MÃE" (O TRADICIONAL PEGA-PEGA)
Para a brincadeira eram preciso umas cinco pessoas. Aquela que fazia o papel de "mãe" corria atrás das outras com a finalidade de tocar uma delas com a mão; daí, ela dizia "mãe" e a outra é que assumia o papel.
A escolha da primeira "mãe" era feita da seguinte maneira: a turminha formava uma roda e ficava com a mão direita fechada e estendida. Uma pessoa ficava no centro da roda e declamava uma cantiga, separando as palavras em sílabas. A cada sílaba ela tocava a mão de um dos participantes. A última a ser tocada seria a "mãe", encargo que ninguém queria. A cantiga era assim:
—"U-ma ve-lha, mui-to ve-lha
Com o na-riz cheio de bar-ro
Foi con-tar prá mi-nha mãe
Que eu pi-ta-va no ci-gar-ro
Mi-nha mãe me deu u-ma sur-ra
Me jo-gou no ta-qua-rá
Ta-qua-rá chei-o de bi-cho
Que não po-de
Me... salllllll-váááááá.
O TERRITÓRIO DA NOSSA TURMA
O território da nossa turminha, que chamávamos de "nossa zona" era bem pequeno. Começava no Armazém Zonatto, na esquina da Rua Tapajós com Hugo Simas, subia pela Tapajós até a rua Jataí-- hoje rua Roberto Barroso--, subindo pela Jataí, ia até um pouco além da rua Raquel Prado. Da Raquel Prado, seguia até a Rua Hugo Simas, perto do mato do Schaffer, descendo pela Hugo Simas até o Zonatto.
A gurizada que morava nesse pequeno espaço, formava, inconscientemente, uma pequena tribo. Os moradores além dessas fronteiras eram considerados "de outra zona"; eram bem aceitos em nossos jogos e brincadeiras, mas com uma estudada distância.
Nosso território era bem provido geograficamente, possuindo vários riachos de águas cristalinas, oriundas de algumas fontes de água mineral. Havia também vários bosques como o "Mato do Cunha" -hoje Bosque Chico Mendes-, o mato do Schaffer, uma área com muitos pinheiros centenários e uma flora e fauna bem variada, o mato do Guguish, que fazia fronteira com o Schaffer e outras pequenas áreas de bosques.
No mato do Cunha havia uma fonte de água mineral que, por alguns anos foi explorada comercialmente com o nome de Águas Mercês. Nessa propriedade particular havia uma piscina (de água mineral!!! e geladíssima). A grande aventura da piazada era burlar a vigilância dos proprietários e dar alguns mergulhos. Na única vez que molhei os pés nessas águas os proprietários apareceram e foi aquela correria, cada um para o seu lado. Nessa propriedade havia um subterrâneo, muito falado e pouco visto. Dizia-se que ele fora construído por um pirata; outros diziam que fora construído pelos Jesuítas. Dizia-se que o mesmo fazia ligação com a Igreja das Mercês; isto certamente era fantasioso, principalmente devido à topografia da região. Contudo, a existência do túnel ou subterrâneo é verdadeira. Há uns 30 anos, o jornal Gazeta do Povo fez uma reportagem sobre o assunto. Segundo informava, o Corpo de Bombeiros havia feito uma sondagem no local, tendo percorrido certa que 150 metros e retrocedido por falta de segurança. Depois, soube-se que a entrada do mesmo havia sido lacrada pelos proprietários do terreno.
A fonte de água que aflorava desse local formava um riacho que cortava nosso território ao meio. A água era pura e cristalina, sendo a alegria da turma. Alguns cavavam poços para mergulho e natação. Como esse riacho cortava o terreno de minha casa, eu e meu irmão tínhamos a nossa própria "piscina de água mineral". Como as barrancas eram de aproximadamente 1 metro, fazíamos uma barragem com tábuas e areia, que era abundante no leito do riacho. Daí era só nadar e brincar. Numa ocasião, baseado num caiaque desmontável que eu havia visto numa vitrine, resolvi fazer o meu próprio. Para tanto, construí uma armação de tiras de madeira e costurei uma lona encerada. Pronto! O caiaque flutuava e navegava. Às vezes dava carona para minha irmãzinha caçula.
Neste riacho havia abundância de peixes: lambaris, carás, bagres e um peixinho que era chamado de "barrigudinho". A fêmea, quando ia procriar, ficava barriguda, prenhe. Não sei se ela fazia desova ou se paria os minúsculos alevinos. Pelo que me recordo, a barriga da mesma se rompia nessa ocasião e ela morria. Existia também um ser bem estranho, um verme aquático de uns 20 ou 30 cm de comprimento e fino como uma linha de costura. Não me recordo ter visto algo parecido em outro lugar. Com o tempo, as águas começaram a ficar barrentas e o bicho desapareceu. Havia também um besourinho preto que nadava (na verdade, corria sobre o espelho d'água) freneticamente, em círculos e mergulhava rapidamente; era chamado de "mãe d’água" e, em torno do mesmo havia certo misticismo por parte de todos os guris. Com o aumento da população e o consequente desmatamento das margens, o riacho ficou poluído com esgoto e sua fauna sumiu.
Em um determinado lugar, às margens desse riacho, havia um brejo. Neste brejo formou-se uma turfeira que cobria um lodaçal. Este lodaçal era chamado de "sumidor" porque, dizia-se, não tinha fundo. Quando caminhávamos pela turfeira, o terreno todo se movimentava, tal qual um colchão de água. Às vezes, a camada vegetal se rompia e atolávamos os pés naquele lodo que tinha a aparência de petróleo, tão preto e pegajoso que era. Em uma ocasião fizemos um teste de profundidade, mergulhando uma vara de bambu de uns três metros. Mesmo assim fundo não foi alcançado.
Grande parte do território era tomada por uma área bem grande, chamada de chácara do Hugo. Esta chácara pertencia a um senhor de apelido "Gabiroba", homem de grande estatura que, diziam os mais antigos, fora um grande corredor na juventude. Nesta chácara havia uma saibreira, ainda em fase de exploração. Na verdade, era um morro que fora escavado durante décadas na exploração do saibro. Este saibro era lavado num córrego e dele tirava-se areia para construção. O saibro também era utilizado na pavimentação das ruas. Misturado com pedras e comprimido, virava pavimentação de "macadame", muito comum na época. A saibreira era um enorme "cânion" artificial, com uns 50 metros de profundidade. Pois era este local que atraia a gurizada de diversas "zonas" da redondeza. Era um local comunitário. Perto da saibreira havia um local, um potreiro, com um gramado. Este era o nosso local predileto para o "trene" com bola, o jogo de bete, para soltar raia e para tiro com arco e flecha e também era o local onde existiam os "segredos". Junto a este campo havia um pequeno bosque com árvores frondosas onde caçávamos passarinhos com as "setras". Na parte mais baixa da chácara localizava-se um campo de futebol, de dimensão oficial, que era utilizado pelo Vasco da Gama Futebol Clube, time amador, de várzea. Em quase todos os domingos havia disputa de várias partidas de futebol e um festival que atraia toda a redondeza. Nesses festivais havia barraquinhas de bebidas e guloseimas, roda da fortuna e outros jogos. O festival era sempre animado pelo "Serviço de alto-falante Record", pertencente ao senhor Pedro Racoski, (apelidado de Pedro Chusta) Durante todo o domingo ouvíamos boleros, guaranias paraguaias, Trio Los Panchos, Índios Tabajaras e tantos outros. Era a ocasião em que os marmanjos podiam paquerar as gurias. Uma das formas de chamar a atenção eram as dedicatórias de música: --Fulano dedica essa música para a senhorita de vestido rosa, com blusa branca, etc. etc..
3. CURITIBA DOS ANOS 1950
BRINCADEIRAS E BRINQUEDOS
A gurizada da época era muito criativa em matéria de brincadeiras, visto que não existiam muitos tipos de brinquedos à venda. Quase todos os brinquedos mais bem elaborados, como os carrinhos de corda, eram importados e caros. Como quase todo mundo era "duro de pai e mãe", usavam da criatividade. Muitos dos brinquedos eram confeccionados pelos guris ou pelos seus pais.
Recordando nossas brincadeiras, verifico que éramos muito mais criativos que as crianças de agora. Observo também que essas brincadeiras desenvolviam nossa coordenação motora e nossa criatividade.
PATINETE
Os patinetes eram moda e quase todos possuíam um, comprado ou de fabricação artesanal. Estes últimos eram feitos de madeira, inclusive as rodas, que recebiam uma tira de borracha a guisa de pneu. Essas rodas tinham, em média, de 20 a 30 cm de diâmetro, tamanho adequado, pois as ruas eram de terra batida. Alguns patinetes possuíam um assento, o que dava-lhes a forma de uma motocicleta rústica.
CARRINHOS
Os "carrinhos" eram outra mania da gurizada. Eram todos de fabricação doméstica. Também tinham rodas de considerável diâmetro o que lhes dava uma velocidade bastante elevada em determinadas "descidas". A "descida" mais utilizada para essa modalidade era no local onde hoje passa a Rua Dom Alberto Gonçalves, na chácara do Hugo. O declive no local era de uns 40 graus, o que o transformava numa pista excelente, havendo, em algumas ocasiões, capotamentos e cavalos-de-pau.
JOGO DE BETE
O jogo de bete era uma modalidade praticada quase que diariamente, pois eram necessários apenas quatro jogadores e podia ser praticado em qualquer tipo de terreno: campo, terra batida ou em outros tipos de terrenos menos adequados.
Este jogo foi, com quase certeza, originado do Cricket, trazido por alguns imigrantes irlandeses, que fixaram residência no Pilarzinho, nas cercanias da Colônia Abranches, lá pelos meados do Século XIX, (1850)
O Cricket é jogado com o "bat" (bét), de onde se originou o nome BÉTE. O jogo de bete era praticado sempre por quatro jogadores: dois nos betes, sendo rebatedores e dois nas "casinhas", os arremessadores. Os betes eram feitos de ripas velhas, tiradas de cercas, e lavrados à custa de machadinha, com muito esmero. As formas eram variadas, não havendo um modelo padronizado. As regras do jogo eram conhecidas por todos, contudo, algumas particularidades eram combinadas antes das partidas. O campo era demarcado com dois ovais, distante uns quinze metros, um do outro. Esse oval era traçado no chão a golpes de bétes. Seu tamanho era de mais ou menos um metro e meio por uns oitenta centímetros de largura. No início do oval, fazia-se um pequeno buraco, onde o béte deveria ficar pousado, durante o jogo. Na parte traseira do oval eram colocadas as "casinhas", construídas com três gravetos, sendo que um deles tinha uma forquilha. Sua montagem era na forma de uma pirâmide, apoiada ao chão apenas pelo próprio peso. A duração da partida era combinada antecipadamente, pela quantidade de pontos: cem, duzentos, etc.. A disputa para se determinar qual das equipes ficaria com os bétes, o que era uma enorme vantagem, era decidida no "seco e molhado", que funcionava da seguinte forma: um dos "atletas" dava uma cuspida em um dos lados de um béte. Este lado era o "molhado" e o outro era o "seco". Cada equipe fazia sua escolha, então, o béte era arremessado para o alto, girando, na horizontal, e caindo no seco ou molhado. Os perdedores ficavam com a penosa tarefa de "arremessadores"; contudo, esses infelizes tinham uma chance, um curinga que lhes compensava a desvantagem inicial: a figura da "vitória". A "vitória" era combinada antes do início do jogo. Poderia ser uma quantidade de pontos ou a posse dos betes, onde os arremessadores assumiam o lugar de rebatedores. Havia três tipos distintos de vitória; vitória com uma mão era a menos valorizada; com duas mãos, mais valorizada; vitória "soprada" dava a partida por encerrada. A vitória funcionava assim: quando o rebatedor batia mal, a bola, na queda, ficava ao alcance do arremessador, que a interceptava, ainda no ar, rebatia-a com as mãos e gritava ato contínuo: “Vitóóóóóriaaa”! Era só escolher: os pontos ou os betes. A "vitória soprada" funcionava desta maneira: o arremessador interceptava a bola com as duas mãos em concha, soprava a bola e a rebatia para o chão, gritando, Vitória! Era o fim do jogo.
As regras do jogo eram as seguintes: os "beteiros" (rebatedores), ficavam de pé, em frente ao oval, empunhando os bétes, que repousavam no buraco-do-béte. O arremessador, que ficava atrás de um dos rebatedores, arremessava a bola (geralmente uma bola velha de tênis), na direção da casinha oposta, com a finalidade de derrubá-la. O rebatedor deveria rebatê-la com a maior força possível, arremessando-a a uma distância considerável. Daí, os beteiros corriam, trocando de lado, quantas vezes possíveis, até que o arremessador apanhasse a bola e a colocasse em jogo. A cada troca de lado, contava-se um ponto. Se o arremessador, apanhando a bola, encontrasse a casinha desprotegida, isto é, o béte não estivesse no buraco-de-béte, poderia derrubar a casinha com um arremesso da bola. Neste caso, os arremessadores ficavam de posse dos bétes. Caso uma rebatida não lançasse a bola para além do meio do campo e fosse interceptada pelo arremessador, este solicitava a penalidade chamada "béte-ombro". Neste caso, o beteiro deveria ficar com o béte apoiado no ombro. Havia então um arremesso contra a casinha, com muito mais chance de derrubá-la. Caso a interceptação ficasse a uma distância menor que o comprimento de três bétes, a penalidade era muito severa e o rebatedor solicitava o "picadinho", isto é: se ajoelhava, se curvava com o bete apoiado no ombro mas, com o corpo curvado, deixando o bete o mais perto possível do chão, e ficava fazendo um movimento de "picote" contra o chão, na maior velocidade possível, para proteger sua casinha.
LANTERNINHA DE BRASAS
A "lanterninha" era outra brincadeira possivelmente originada dos costumes dos imigrantes irlandeses. Era uma peça artesanal, fabricada geralmente com uma lata de Leite Ninho e uma alça de arame, com uns 50 cm de comprimento. A lata era furada no fundo e nas laterais. Dentro, colocavam-se brasas e carvão. A lanterninha era então balançada num movimento de pêndulo para atiçar as brasas e gerar chamas. A forma mais perigosa era girar, ao lado do corpo, num movimento de centrífuga, ou na forma de um oito, dos dois lados do corpo. Quando as chamas estavam altas a gurizada reunia várias delas e se agachava em torno para se aquecer nas noites frias de inverno. Às vezes, assávamos pinhão e batata doce nas chamas.
Os pastores irlandeses usavam nas noites gélidas de pastoreio, instrumentos iguais, só que de maior tamanho. Servia para aquecimento, para comunicação e iluminação.
FUTEBOL
O "trene" era a expressão que usávamos para o Futebol. A gente ia "trenar" quase todos os dias. Como a turma era pequena, era impossível montar, sequer, um time de futebol, então, improvisávamos. Marcávamos duas traves com gravetos fincados na grama; estas traves eram chamadas de "golos". O "trene" se limitava a chutes a gol, de lado a lado, onde todos atacavam e todos se defendiam. Às vezes, os golos tinham até "kíper" (goleiro). As faltas eram chamadas de "faus"; bola na mão era "ends", pronunciado com H aspirado. Impedimento era chamado de "fessaide", que depois começou a ser chamado de "banheira"; existiam também os "córner", os "béques", o "halfcenter", o "pênalti" e outros termos, corruptelas dos termos tirados do inglês. A bola que usávamos era de "tento"; ela possuía uma câmara de borracha que era enchida com a força dos pulmões. Depois, o bico era dobrado, amarrado e colocado para dentro da bola, através da abertura chamada "tento" que depois era costurado à mão, com um cordão de couro. Jogávamos sempre com os pés descalços e... quando acertávamos o tento...ai, aiai.. coitado do infeliz jogador. As bolas mais usadas eram as de número dois e três, menores que a de tamanho oficial. A de número cinco, oficial, era uma raridade, em virtude do seu elevado preço. Essas bolas eram bastante duras e pesadas, principalmente quando o gramado estava molhado. Nesses gramados crescia uma plantinha em forma de touceira, rasteira, que chamávamos de "roseta". Ela produzia espinhos minúsculos, agrupados em forma de uma pequena rosa, de uns cinco mm de diâmetro. Quando pisávamos nesta planta com os pés descalços, dezenas desses pequenos espinhos prendiam-se à pele. Não ocasionavam nenhum dano, mas provocavam uma ardência muito forte. Alguns guris, por quase nunca terem calçado um sapato ou mesmo um chinelo, tinham a sola do pé bastante grossa e dura, um verdadeiro cascão. Nesses "cascos" as rosetas não se prendiam. Muitos desses guris eram originários do interior. Os cascos dos mesmos eram tão duros que, nas festas de São João, após a queima das fogueiras, espalhavam as brasas e caminhavam sobre as mesmas, sem queimar os pés.
SOLTAR RAIA
Outra brincadeira quase que diária era "soltar raia" (empinar pipa, papagaio ou pandorga). Naquele tempo fabricávamos poucos modelos: o mais cobiçado era a "raia bidê", hoje conhecida como "caixa" ou "célula". Para a sua confecção eram necessários exatos 24 alfinetes, --coisa difícil de conseguir, pois, até mesmo os alfinetes eram artigos importados e caros--, "pau de paina", (que era uma touceira de gramínea) que no outono produzia uma cana delgada e macia, mas forte e muito leve. A paina era usada para todos os tipos de raia de tamanho pequeno e médio. Para as raias maiores, usávamos o "pau de uvá", que também crescia nos capões e nos campos. Esta vareta era mais grossa, mais pesada, e muito forte e relativamente leve. Era muito utilizada pela indústria de fogos de artifícios na confecção de "rabos-de-foguete". As raias eram soltas com linhas de costura nº24 ou 16, contudo, as linhas mais cobiçadas eram as de nº 10 ou o "Fio Urso 000” (três zeros), para as raias de maior porte. Além do modelo "bidê" havia as mais simples: a raia pipa, que tinha o formato de uma pipa ou barril, feita com três varetas; a redonda, feita com quatro varetas e oito gomos; a estrela, feita com quatro varetas e oito pontas. Para soltá-las e empiná-las usava-se um carretel, atravessado com um graveto. A maneira de recolher a linha contava muito; a mesma tinha que ser recolhida e enrolada na forma de um "oito", o que demonstrava que o sujeito era craque no assunto. Alguns fabricavam uma carretilha que recolhia centenas de metros de linha em poucos minutos. Quando a raia estava no ar, brincávamos de "passar telegrama"; o telegrama era uma rodela de papel de seda que colocada em torno da linha, subia até a raia, impulsionada pelo vento. As raias possuíam os compassos" (tirantes) da linha e do rabo. O compasso da linha era feito de três fios, exceto os da raia bidê, que eram feitos com dois fios somente. Confeccionar o compasso era algo para os entendidos. Havia o compasso "forte", que deixava a raia numa posição mais vertical, quando empinada, o compasso "fraco" que deixava a raia muna posição mais oblíqua e com menos "força" na linha. Uns poucos usavam lascas de vidro presas às caudas da raia e, quando esta tocava a linha de outra, cortava-a. Esta prática era abominável, não aceita e sempre ocasionava briga, resolvida na base de sopapos.
BALA ZÉQUINHA
Outra paixão da gurizada e até mesmo dos adultos era a "Bala Zequinha", uma criação genuinamente curitibana. Se a memória não me falha, essa bala foi criada pelos Irmãos Sobania, na década de 1920. Depois passou para os Irmãos Franchesci e, no meu tempo, era produzida pelos Irmãos Massochetto. Perdurou continuamente até fins de 1950 ou 60, quando desapareceu, ressurgindo na década de 1980, com uma campanha de arrecadação do ICM, feita pelo Governo do Estado do Paraná, mas não "pegou", porque os tempos eram outros, desaparecendo até o presente momento.
A "Zéquinha" era de um único sabor, mas isso não importava; o que importava é que era embrulhada num papel com uma figurinha, impressa com o personagem "Zequinha". Havia duzentos personagens diferentes, como por exemplo: Zequinha Palhaço, Zéquina Papai Noel, Zequinha Ladrão, e assim por diante. Essas figurinhas eram colecionadas por todos. A cada ano havia uma nova coleção e havia sempre uma figurinha de edição limitadíssima, a famosa "figurinha difícil", termo este que se incorporou ao linguajar popular para designar um sujeito pouco sociável, diferente, difícil. Geralmente a figurinha difícil era a do personagem "Zequinha Papai Noel" e levava o número 200. Havia também uma figurinha muito mais difícil de conseguir, a "figurinha carimbada", que dava direito a um determinado prêmio. Na verdade, o Zequinha representava um Curitibano típico, nas mais diversas atividades e profissões. Defendo a tese que ele era inspirado num personagem circense, o Palhaço Chique-Chique, do Circo Irmãos Queirolo, que se apresentou em Curitiba durante décadas. Observando os desenhos do Zequinha, podemos notar que ele usava sapatos de palhaço, com longos bicos-finos e era calvo, exatamente como o personagem Chique-Chique e sua cadelinha de pano, chamada Violeta.
A coleção da Bala Zequinha era anual. A cada nova edição, os números das figurinhas eram trocados, as cores ficavam mais fortes ou mais fracas,de maneira a identificar uma nova coleção. Misturar figurinhas de anos diferentes não era permitido.
Essas coleções não tinham um álbum que permitisse a sua colagem; era usada uma famosa "carteirinha do Zequinha", feita com duas capas de papelão, e três tiras de pano ou couro. A figurinha era colocada sobre as tiras e, quando a carteira era fechada de um lado e aberta do outro, a figurinha ficava presa pelas tiras, como num passe de mágica. Como todos possuíam figurinhas duplas, triplas, etc., havia a atividade chamada de "trocar figurinha", outro termo incorporado no linguajar quotidiano. Além da troca, havia o jogo das figurinhas, disputado através do "Jogo do Bafo" e do "Jogo de Tique".
JOGO DO BAFO
O "Jogo do Bafo" consistia em se "casar" duas ou mais figurinhas, no chão, com as faces voltadas para baixo, uma em cima da outra. Os jogadores, com a mão semicerrada, formando uma concha, bafejavam-na e batiam na pilha de figurinhas, levantando, ato contínuo, fazendo uma sucção, tentando desvirar as mesmas. Quem conseguisse desvira-las, ganhava a partida e as figurinhas.
JOGO DE TIQUE
O "Jogo de Tique" era praticado com arruelas de metal ou com uma moeda antiga, o patacão de cobre. O jogo era realizado da seguinte maneira: contra um poste de madeira, comum naquele tempo, ou contra uma parede de madeira, lançava-se o "tique" de maneira que o mesmo ricocheteasse, não muito longe; em seguida, o outro jogador repetia a jogada, tentando fazer com que seu tique acertasse o tique do adversário ou se aproximasse à distância de, no máximo, um palmo. Esta jogada valia um ponto e uma figurinha. Se o tique caísse em cima do outro, valia dois pontos e duas figurinhas; quando escorregasse e se posicionasse por baixo do outro, o que às vezes acontecia, valia vários pontos e várias figurinhas.
OS SEGREDOS
Uma brincadeira bastante interessante era a de "procurar segredo". Na verdade o "segredo" era uma aranha (aranha de tampão) que habitava os campos com grama rasa. Ela construía uma toca no chão, na vertical, revestida com uma película espessa de seda. Esta toca era fechada com um tampão, parecido com uma escotilha de submarino. Para disfarçar a entrada, a aranha transplantava musgo e líquen para o tampão, de maneira que era muito difícil a localização. O diâmetro dessas tocas era de alguns milímetros a até mais de dois centímetros. Durante seu crescimento a aranha construía várias tocas, de acordo com o seu tamanho. Para encontrar essas tocas disfarçadas com maestria, era necessário de se rastejasse de joelhos e se prestasse muita atenção. Após a localização, abríamos o tampão, que ficava preso num ponto, como uma dobradiça. Para desentocar a aranha, apanhávamos uma haste de capim, colocávamos saliva numa das pontas e a introduzíamos na toca até sentirmos que a mesma havia alcançado a aranha. Esta apanhava a haste fortemente com suas mandíbulas, possibilitando que fosse fisgada e trazida para a superfície, mas com grande resistência. Quem primeiro encontrasse um "segredo" ficava dono do mesmo, isto é, um não podia brincar com o segredo do outro. Quase que diariamente, a gurizada fazia uma visita aos "seus" segredos e fisgavam as aranhas, só para vê-las, em seguida, retornar ao interior da toca.
JOGO DE BÚRICO
O jogo de búrico era feito com bolinhas de vidro, hoje conhecidas como bolas de gude. Na verdade, o búrico, era uma das formas do jogo de bolinhas. Para jogar o búrico, procurávamos um local de terra batida e com o calcanhar descalço, num movimento circular, fazíamos um buraco de uns cinco cm de diâmetro; este era o búrico. O jogo consistia em arremessar as bolinhas para o interior do búrico ou o mais próximo possível. Aquele que se aproximasse mais ou colocasse a bolinha dentro do búrico, iniciava a segunda fase do jogo, o mata-mata. Se a bolinha estava próxima do búrico, devia ser arremessada cuidadosamente para dentro do mesmo. Em seguida, apanhava-se a bolinha e, com a mão dentro do búrico, arremessava-se a bolinha contra a do adversário. Em caso de acerto, marcava ponto e continuava a matar as bolinhas dos outros adversários.
Outra maneira de jogar bolinhas era a bola casada. Funcionava assim: "casava-se" duas bolinhas no chão a uma distância de uns 2 metros uma d outra. Os jogadores, cada um portando sua bolinha "jogadeira", (aquela preferida), lançavam-nas o mais perto possível da primeira bola casada. Aquele que mais se aproximasse, começava a segunda fase, o mata-mata. Ele tinha que acertar primeiro a bola casada; acertando, atacava as bolas dos adversários. Se não errasse nenhuma jogada, ganhava a partida e as bolas dos adversários. Mas, como as bolinhas também eram caras para nós, a maior parte das partidas era jogada "a brinca" e não "a ganha", isto é, o ganhador não se apossava das bolinhas dos adversários; ganhava apenas os pontos.
A SETRA
Setra era o nome que dávamos para a atiradeira ou estilingue. Quase sempre andávamos com a setra pendurada no pescoço, como um colar. Com ela caçávamos passarinhos, praticávamos tiro ao alvo, fazíamos guerra, utilizando como munição pelotas de barro mole.
CAÇANDO BORBOLETAS
Essa era também uma atividade levada muito a sério. Caçávamos borboletas usando o "covão", uma espécie de puçá, com um cabo longo, feito de bambu. A presa mais cobiça era o "papaná azul". Papaná ( em tupi-guarani:Panapaná) era o nome das borboletas grandes, algumas com mais de um palmo de tamanho. O papaná-azul só aparecia dentro da mata ou próximo a ela. Resplandecia ao sol e voava muito alto, sendo difícil sua captura. O segundo troféu mais cobiçado era o papaná-branco, também de grande envergadura, depois vinha o papaná-verde, bem menor, até chegarmos às borboletas, de tamanho normal, quase padrão. Havia vários tipos de borboletas: a "olho-de-boi", que voava baixo e pousava no solo. Quando suas asas estavam fechadas, mostravam um desenho no formato de um olho, o que era uma forma natural de assustar seus predadores, os pássaros. Uma borboleta diferente era a "abraca-pau", uma borboleta carijó, que pousando no tronco de uma árvore, deixava as asas coladas à casca, camuflando-se e tornando-se quase invisível. Havia também a "maria-mole", frágil e vagarosa que, em dias muito frios, entrava em hibernação e ficava caída no chão, só acordando quando atingida pelos raios de sol. Muitas eram devoradas durante o sono por pássaros e formigas. Havia duas borboletas, de aspecto desagradável, as quais não caçávamos. Eram marrons e tinham um voo rasteiro. Uma delas tinha, junto ao corpo, um prolongamento das asas que lhe dava uma aparência de cauda. Essas borboletas, por incrível que pareça, emitiam um som, um estalido. Por isso tinham o nome de "peido-de véia" e a que tinha a cauda era chamada de "peido-de-véio". Uma das borboletas mais bonitas e difíceis de ver era a "oitenta-e-oito". Ela era bem pequena, com as asas azuladas quando abertas e quando as mesmas estavam fechadas elas tinham um desenho idêntico ao número 88.
ARCO E FLECHA E BODOQUE
O arco e flecha era uma brincadeira também muito apreciada. Confeccionávamos os arcos sempre com uma madeira fibrosa e flexível, tal como a gabiroba e o bambu. As flechas eram feitas de taquara ou de alguma outra haste, como o pau-de-uvá. Os lemes eram feitos com penas das asas de galinha, pato ou ganso, sendo que esta última era a melhor, porém, difícil de conseguir.
O Bodoque era muito pouco utilizado, sendo que poucos sabiam utilizá-lo. O bodoque é um arco que atira pedras. Possui corda dupla e no cento uma "peia” (tira de couro), com dois espaçadores. Para se atirar uma pedra era necessário que, no momento do disparo, se fizesse uma determinada torção na empunhadura, senão, a pedra atingia a mão do atirador. Mas esse já era um brinquedo considerado antigo, utilizado muito na época dos nossos pais.
A "ESPINGARDA" DE PRESSÃO
Esse brinquedo foi-me ensinado pelo meu pai. Não me lembro de tê-lo visto nas mãos de qualquer outra criança. Era uma espingarda que atirava buchas de casca de laranja. Consistia num canudo, uma taquara, com as aberturas afiladas. Pressionava-se um dos lados do canudo contra a casca de laranja, de maneira que a perfurasse e cortasse rodelas da casca, as quais ficavam dentro do cano. Repetia-se isso do outro lado do cano, de maneira que entre os dois tampões ficasse um bolsão de ar. De posse de uma vareta, (que deveria ser reta e ter o mesmo diâmetro do orifício do canudo), esta era introduzida em um dos lados do canudo e num soco, pressionava-se a vareta, fazendo pressão. As buchas do lado oposto eram arremessadas com violência e um estampido, tal qual uma arma de pressão. Recentemente, assistí a um documentário sobre uma aldeia indígena, e, para minha surpresa, vi dois indiosinhos brincando com com uma "espingarda" dessas. É mole, ou quer mais?
AS CAVERNAS
Nosso bairro fora um território de exploração de argila, para confecção de telhas e tijolos, e de saibro, para extração de areia e para pavimentação de ruas. Por isso, havia muitos barrancos e canyons na área.
A gurizada, então, gostava de escavar cavernas nesses barrancos. Cada turminha de dois os três amigos possuía sua própria caverna. Nas tardes e noites de inverno, a turma se reunia no interior das mesmas e fazia uma fogueira para se esquentar. No entanto, havia os "invejosos" que, na surdina, tinham o prazer mórbido de destruí-las. A raiva que dava é que nunca conseguíamos descobrir quem eram os meliantes.
4. CURITIBA DOS ANOS 1950
O COTIDIANO DA COMUNIDADE
Nos idos de 1950, Curitiba era uma cidade provinciana, pacata, com ares europeus, pois a maioria dos seus habitantes era descendente de alemães, italianos e poloneses.
A beleza de Curitiba, explorada até hoje, estava centrada nas áreas verdes, nos jardins das casas e na limpeza. Praticamente todos os terrenos tinham um jardim em frente à casa e um bosque, mesclado com árvores frutíferas, nos fundos. Pelo tipo de jardim era possível inclusive perceber a origem dos moradores, se poloneses ou alemães, os mais afeitos ao cultivo de flores. Os alemães plantavam os jardins separando as espécies de flores; já os poloneses, conforme o costume da terra natal, gostavam de misturar vários tipos e cores de flores. Conheciam-se as casas dos alemães pelo plantio de ciprestes. Alguns faziam cercas-vivas de ciprestes de maneira a manter total privacidade, uma característica de suas personalidades. Podíamos dizer também a origem dos moradores pelas cores das casas.
Nessa época Curitiba era bem servida por um sistema de transporte coletivo, o Bonde Elétrico. No nosso bairro, a linha do Bonde chegava até ao Cemitério Municipal. Era através do bonde que íamos à "Cidade". Esta expressão: "ir à Cidade", queria dizer que íamos ao centro da cidade. Como antigamente Curitiba era dividida por "Freguesias" e o centro chamava-se Freguesia da Cidade. "Ir à Cidade" foi uma expressão que perdurou por muitos anos.
No início dos anos 50, começaram a surgir os ônibus e os lotações de empresas constituídas com empresários locais. Os bondes foram, então, gradativamente tirados de circulação, numa grande falta de visão das autoridades municipais que, ufanisticamente, se gabavam que "Curitiba era a primeira cidade brasileira a retirar os bondes de circulação", enquanto os europeus, certamente "mais atrasados" procuravam implementar este tipo de transporte, sendo o mesmo utilizado até hoje.
Naquele tempo não havia mercados como conhecemos hoje. Havia "Armazéns de Secos e Molhados" que vendiam praticamente de tudo. Feijão, arroz, fubá, sal, farinha e tudo o mais, eram vendidos a granel. A maioria comprava "no Caderno", expressão que queria dizer - comprar fiado. O comerciante tinha uma caderneta onde anotava as compras diárias e cobrava no fim do mês.
O bairro contava com cinco armazéns; O Zonatto, na esquina da Hugo Simas com a Tapajós e a Itiberê, o Estefano, na subida da Hugo Simas, o do sr. Carlos Scrock, na Hugo Simas, perto do Schaffer, o Trombini, na Hugo Simas esquina da Teffé e a Casa Raimundo, na Hugo Simas com a Albino Silva. O Zonatto, era administrado pelo sr. Orlando e pelo seu cunhado o "João Cartola". Neste armazém existia o único telefone do bairro, cujo número era o 2269, cedido aos fregueses em casos de urgência.
Esses armazéns, contudo, não serviam nem pinga nem cerveja. Estes eram servidos nos botecos. Contudo, serviam uma bebida não alcoólica, muito apreciada por todos, principalmente a gurizada: o "capilé", que é um xarope de groselha, com sabor artificial de framboesa, servido dissolvido em água. Naquele tempo não existiam os refrigerantes como conhecemos agora. Existiam as "gasosas", que ainda hoje são produzidas pela Indústria Cini e ainda vendidas em garrafas de 600 ml. Essas bebidas possuem diversos sabores, sendo as mais apreciadas a Gengibirra e a com sabor de Framboesa.
Verduras e legumes, pão e leite eram entregues em domicílio.
Naquele tempo existiam as "Verdureiras", pessoas de origem italiana ou polonesa, agricultores que moravam no entorno de Curitiba, na região norte da cidade. Produziam toda sorte de verduras, legumes e cereais. Tinham criação de galinhas, vacas e marrecos. Viajavam, semanalmente, mais de 10 quilômetros em carroças tracionadas por cavalos e vendiam em domicílio sua produção: repolho, rabanete, alface, chicória, aipim (mandioca), batata doce, batatinha, batata salsa, pepino, couve, cebola e alho em réstia (em forma de trança), abóbora, moganga -ou moranga-, feijão, vagem, milho, ovos, galinha em pé (vivas) etc. Como eram várias as "verdureiras", comprávamos esses produtos duas ou três vezes por semana, à porta de nossas casas.
O padeiros também faziam a entrega em domicílio. Todos os dias, perto das 3 horas, antes do café da tarde, comprávamos o pão ainda quentinho. O veículo utilizado era um carrinho tracionado por um cavalo. No pescoço do animal eram presos vários cincerros, de maneira que, ouvindo o som característicos já saímos até a frente de casa para esperar pelo pão. O interessante é que o cavalo já conhecia o roteiro e parava a cada trinta ou quarenta metros, resultado do seu treinamento. Depois de ter atendido ao cliente, o padeiro dava um estalido com os lábios e o cavalo arrancava para nova parada. Por causa desse procedimento, surgiu um mote que é ainda utilizado aqui em Curitiba: quando uma pessoa faz as coisas aos trancos, não finalizando uma tarefa sem receber instruções a cada nova etapa é chamado de "cavalo de padeiro".
O leite também era entregue em domicílio, em litros de vidro, fechados apenas com uma rodela de papelão. O leite não era pasteurizado (esse termo não era nem conhecido) mas havia uma lei que não permitia que o leite fosse vendido puro; tinha que haver a mistura de certa quantidade de água. O porquê, ninguém sabia; contudo, já havia alguns espertinhos que vendiam "água" com certa quantidade de leite. O porquê, daí, todo mundo sabia.
Nossa alimentação era bastante saudável, pois não se utilizavam agrotóxicos, tampouco adubos químicos. Aqueles itens que não comprávamos nós mesmos os produzíamos: salsinha, cheiro verde, chuchu, chicória, etc. Produzíamos muitas frutas: mimosa (tangerina), laranja, limão, uva, maçã, pera (em grande quantidade) ameixa, marmelo, sem falar das frutas silvestres: gabiroba ou gavirova, pitanga, maracujá, goiaba, amora, etc.
Naquela época havia muito pinhão, por isso, durante quase todo o inverno ele fazia parte do cardápio diário, seja cozido ou "sapecado" (assado na brasa).
Como quase todos os nossos vizinhos, descendentes de alemães, fazíamos 5 (cinco) refeições diárias. Às 7 horas, café da manhã, constituindo-se de café, pão com manteiga ou broa com banha, mel ou doce de pera - que nós mesmos fazíamos. Gostávamos de aquecer fatias de pão na chapa do fogão (fogão a lenha); depois que formava uma casquinha, esfregávamos um dente de alho e passávamos manteiga, a qual derretia no pão quente. Depois havia o café das 10 horas, um pouco mais leve. O almoço era servido às 12 horas, mais ou menos; feijão, arroz, carne, saladas e hortaliças cozidas, encerrando com um caneco de café bem preto. À tarde, o café das 3 horas; muitas vezes era chá mate (mate queimado), acompanhado de um bolo (torta) ou bolinho frito de banana. Lá pelas 7 horas da noite, vinha a janta. Caramba, não me lembro de conhecer quase ninguém obeso, apesar disso tudo.
Uma comida bastante apreciada pelos descendentes de alemães era a famosa "vina" —que é sinônimo de salsicha e motivo de galhofa para os migrantes (não curitibanos, que vivem aqui e que falam mal de Curitiba, mas não largam as suas gordas tetas) que não conhecem nossos costumes. O adjetivo Vina, como é chamada a salsicha até hoje pelos curitibanos natos, vem do vocábulo alemão: "Wienerwurst", pronunciada "vinavurst" por todos nós, na época, inclusive os alemães natos. O vocábulo "Wien" quer dizer Viena, capital da Áustria; "Wiener", (pronuncia-se vina, em alemão) significa "vienense", originário de Viena. "Wurst", significa "salsicha", portanto: Wienerwurst = "salsicha de Viena" ou salsicha vienense.
Para conhecimento: A wienerwurst está comemorando 200 anos de existência e foi ela que provocou o surgimento do famoso Hotdog americano.
Nada melhor, para quem tem uma percentagem de sangue alemão nas veias, do que comer "vinavurst crua com chucrute". A verdadeira vina está cada vez mais difícil de ser encontrada (não é essa coisa que é vendida nos Supermercados, feitas de soja com um pouco de carne). Um lugar onde ainda encontramos uma boa vinavurst é na Padaria América, na Rua Trajano Reis.
Experimentem a vinavurst crua com chucrute, também cru. Bom apetite. Acompanhem com uma Gasosa de Gengibre (Gengibirra), fabricada pela Cini.
Outros embutidos, bastante apreciados pela população em geral eram: um "salsichão", comumente chamado de "sachicho". Era um salsichão avermelhado, muito barato. Se bem me lembro, era uma mistura de carne de gado com cartilagem. O sachicho deixou de existir há muitos anos. Outro, mais caro e bem elaborado era o "salame rosa", um salsichão rosado feito de carne de gado. Às vezes, era cozido para ser acompanhado de uma boa cerveja. Não sei se ainda existe.
Tínhamos o costume anual de fazer cerveja caseira, de lúpulo. Eram dezenas de litros, para o ano todo. Como esta cerveja levava fermento, era bastante instável, podendo "estourar" a rolha. Por isso, era armazenada no porão, deitada na terra, com pouca inclinação. Mesmo assim, às vezes, quando o tempo estava brusco e a pressão barométrica aumentava, a cerveja entrava em erupção, ouvindo-se vários estampidos das rolhas sendo arremessadas. Produzíamos também a Gengibirra, refrigerante de gengibre, uma bebida forte, borbulhante, que ardia na garganta, quando ingerida, (é claro). Todos os anos, fabricávamos, também, uma grande quantidade de suco de uva. Esse era bastante trabalhoso. A uva era fervida por várias horas e depois prensada. O suco era engarrafado ainda quente. O arrolhamento era também bastante trabalhoso. Depois de colocada a rolha, a mesma era presa com arame, tal qual o champanhe, e mergulhada em cera de abelha derretida com breu, (cerol) para uma perfeita vedação. Desta forma o suco poderia ser estocado durante vários anos.
Outro costume interessante era o de fabricação de compotas de frutas, principalmente de pêssego e pera. Fazer compota era, além de tudo, uma arte refinada. As frutas eram descascadas de uma forma que quase não aparecesse nenhum sulco da faca; em seguida eram cortadas com muito cuidado, pois todos os pedaços deveriam ter o mesmo tamanho e formato. Depois de cozidos em uma calda de açúcar e ainda quentes, eram colocados artisticamente em vidros fabricados especialmente para compota. (O que valia muito era a aparência da compota). Depois, os vidros ainda abertos eram colocados em banho-maria (fervidos na água) e fechados hermeticamente. Havia uma borracha, como as de panela de pressão, que era colocada entre a tampa e o vidro. O Vidro possuía uma mola de pressão. Na verdade o calor produzia vácuo. Depois a compota ficava em exposição num armário da cozinha, chamado cristaleira. Algumas donas de casa mais idosas eram donas de uma coleção de centenas de vidros de compota. Se estou bem lembrado, nunca vi um desses vidros ser aberto e a compota ser comida. Podemos fazer um paralelo com os colecionadores de vinho e uísque. Alguém já viu um colecionador bebendo um exemplar de sua coleção?
Algumas senhoras também colecionavam picles (hortaliças cozidas e conservadas no vinagre). Também já vi centenas desses vidros, cheios de cenouras, couve-flor e etc. e, intactos.
Outro tipo de conserva, que inclusive eu gostava de preparar e comer, era o pepino azedo. O pepino, colhido no dia, era envolto, um a um, em folhas de parreira, colocado numa barrica com salmoura e uns galhos de endro. Dentro de uma semana ou um pouco mais, já estava pronto para ser devorado. Uma receita muito apreciada era: broa de centeio, salame seco e pepino azedo. Atualmente ainda encontramos esta forma de conserva em algumas feiras-livres.
Também preparávamos o repolho azedo, conhecido por chucrute e que os alemães chamam de "Sauerkraut" (leia-se -záuercraut-). O repolho é fatiado, à faca ou num cortador próprio e socado com sal, numa barrica. Com o socamento o repolho verte suco, que deve encobrir toda a massa. Depois é colocado um peso para manter a massa sempre coberta pelo líquido. Em alguns dias está pronto para ser consumido.
5. CURITIBA DOS ANOS 1950
CRENDICES POPULARES COSTUMES E OUTROS
Os moradores do nosso bairro eram, na maioria, de origem alemã, alguns de origem italiana e polonesa e uns poucos eram caboclos.
Pois, essas origens traziam consigo certa carga de crendices e costumes, absorvidos e respeitados como verdadeiros por todos.
O MOSCÃO VERDE
Quando entrava um moscão em nossas casas, aqueles grandes, esverdeados, que ficavam zumbindo por toda a casa e depois se arremetiam contra a vidraça, já sabíamos que iríamos receber alguma visita: um parente ou um amigo. Crendo nisso, os moradores já davam uma caprichada na limpeza, esperando alguém para o café da tarde. Naquele tempo as visitas não se anunciavam, pois não havia telefones; simplesmente apareciam e ficavam. E sabe que, às vezes, a mosca acertava!
O PAU-DE-BUGRE
Calma pessoal, eu explico: pau-de-bugre era uma árvore, não muito comum na região. Quem se aproximasse da dita cuja, mesmo que não tivesse um contato direto, adquiria uma alergia de pele uma "grossidão" e uma tremenda coceira. Para se evitar ser contaminado, quando passasse perto dessa árvore o sujeito tinha que cumprimentar o pau-de-bugre com a seguinte expressão: --"Boa tarde, Cumpadre", mesmo que fosse pela manhã, e isso era cumprido à risca, principalmente pelos caboclos.
A SUINDARA
Suindara é uma pequena coruja, muito comum na região, naquela época. Ela era temida pelos moradores, pois era considerada uma ave agourenta, que trazia a morte de algum morador da casa onde ela pousasse no telhado. Essa ave soltava um pio esganiçado, de arrepiar mesmo, ainda mais que acreditávamos na coisa. Não é preciso dizer que, sendo ela uma coruja, tinha hábitos noturnos e naquele silêncio que caracterizava as nossas noites, o grito era arrepiante.
Outras crendices eram bem interessantes: deixar um sapato ou chinelo de sola para cima, durante a noite, podia trazer a morte para perto da família; cuspir em aranha secava a saliva; cuspir na cinza, também secava o cuspe; para curar uma conjuntivite ou uma coceira qualquer, usava-se um ramo de arruda, ainda úmido do orvalho da manhã. O "curandeiro" fazia umas rezas mais ou menos assim:- "Em nome de Jesuis, te benzo e te curo..." e tocava o olho do doente com o raminho. Daí, a piazada, pegando essa dica fazia troça, dizendo o seguinte: -"Te benzo e te curo, com bosta de burro"...
Nessa época havia alguns costumes bem interessantes, trazidos, talvez, da Europa. Um deles era roubar portões na noite de sábado de Aleluia. Como todos moravam em casas e essas possuíam cercas de ripas de madeira, sempre tinham um portão de entrada. Geralmente esses portões eram assentados sobre gonzos e não tinham fechaduras, somente uma tranca. Pois, no sábado de Aleluia, o pessoal ficava vigilante, senão teria que, pela manhã, buscar o seu portão a algumas centenas de metros. Outro costume bastante apreciado pela gurizada era o de fazer caveiras de abóboras, onde se colocava uma vela dentro e a mesma era deixada num barranco, em um local de difícil acesso. Quando se é pequeno, numa noite bem escura de inverno, uma visão dessas era um tanto aterradora. Mas, o costume mais apreciado por nós era o de dar "Boas Entradas de Ano Novo" ou "Feliz Ano Novo" "frohesneujahr," "prosit neujahr" ou "frohes neues jahr" (leia-se: froshnóia, proshtnóiar" em alemão,) Funcionava assim: no dia primeiro do ano, pela manhã, a gurizada ia de casa em casa, batia palmas para chamar o morador e quando este aparecia, fingindo surpresa, o bandinho tascava: "Boas entradas de ano novo!!! O costume mandava que o morador desse alguns tostões ou alguma guloseima, geralmente umas bolachinhas caseiras, para os "bacurinhos", entre seis e sete anos.
Altevir Vechia