HÁ 77 ANOS BRASILEIROS TINHAM O PRIMEIRO REVÉS NA ITÁLIA
Na data de hoje, há 77 anos, os brasileiros tinham a primeira derrota para tropas do Eixo na Itália. Foi uma derrota que trouxe aprendizados e modificações no comando da Infantaria da FEB.
O começo
Após 45 dias de uma série de vitórias, a Força Expedicionária Brasileira recebeu mais uma missão, desta vez rumo a Castelnuovo di Garfagnana. A ideia geral era ocupar e manter as linhas que ligavam Calomini – Casa Casela – San Quirico – Colle – Cota 906 – Lama di Sotto, liberando o acesso à cidade de Castelnuovo di Garfagnana. O local estava defendido pela veterana 232ª Divisão de Infantaria Alemã. Por isso, o comando brasileiro esperou a substituição dos alemães por tropas fascistas da divisão Monterosa, mais especificamente do Batalhão Aosta, recém empregado no front.Para cumprir o ordenado pelo IV Corpo de Exércitos Aliados, em 30 de outubro de 1944, os soldados haviam atacado as posições inimigas, desde às 8h. No ataque, o I Batalhão (1ª Cia, 2ª Cia e 3ª Cia) foi pelo leste, tomando Lama di Sotto. Depois disso, San Quirico e Trepionana. A 2ª Cia saiu de Sommocolonia para San Quirico, tendo que literalmente escalar alguns trechos do terreno, muito íngreme, acidentado e cheio de barro, pois choveu em 30 e 31 de outubro. Foram 3 km de subida, com gente escorregando e derrubando equipamentos. Os Pracinhas conseguiram subir e ainda aprisionar 50 inimigos, logo no começo. Mas, a frente de 4,5 km era muito extensa para somente um batalhão.
O II Batalhão foi posto do lado esquerdo do avanço, para proteger o flanco do I Batalhão, e o III Batalhão à direita, com o mesmo objetivo. De noite, por volta das 18h, já eram 153 prisioneiros inimigos e os batalhões haviam progredido e cumprido suas missões. O calendário marcava 30 de outubro.
Porém, em 31 de madrugada, as coisas desandaram. Registra o Relatório de Atividades do Regimento:
“Às 3 horas de 31 de outubro, o inimigo desencadeou o violento golpe de mão à frente da 3ª Cia e de um Pelotão da 7ª Cia [II Batalhão], conseguiu infiltrar-se entre os pelotões e atacou o posto de comando da 3ª Cia. Os elementos atacados recuaram. Ao amanhecer, a falta de reservas e impediu que se procurasse restabelecer a posição numa frente de 2 Km. Na tarde do mesmo dia, ação semelhante foi realizada sobre a 1ª Cia, e com forte apoio de artilharia. Esgotada munição e com pesadas baixas, a Cia recuou. A 2ª Cia, na iminência de ser cercada, recebeu ordem de retrair para base de partida, o que fez com dificuldade. Às 17 horas, com cerca de 59 baixas, restabeleceu-se a situação na base de partida. Esta foi a última operação ofensiva do Regimento no Vale do Serchio”.
O que tinha acontecido, era que os alemães se organizaram para recuperar as posições, com soldados da 42ª Divisão Jäger, da 232a Divisão de Infantaria (1044° Regimento de Granadeiros) e Batalhão Brescia (Monterosa). O contra-ataque foi desigual para os brasileiros, que estiveram em menor número e sem meios suficientes para se manterem no terreno.
Mascarenhas culpou os soldados
Na opinião do comandante da FEB, general Mascarenhas de Moraes[1], “certas de que os elementos inimigos em contato não possuíam valor combativo”, as Cias “descuraram de certas medidas de segurança e nem sequer estabeleceram um razoável plano de fogo, arremates obrigatórios da manutenção de um objetivo conquistado”.
Tal versão foi contestada pelos oficiais que estavam junto dos soldados naquele dia. “A nós nos parece, pois, que querer explicar a derrota da FEB, no setor de Castelnuovo di Garfagnana, de maneira simplista como fez o Marechal Mascarenhas de Moraes, em seu livro (página 93), é, além do mais, forte dose de injustiça”, escreveu José Alífio Piason, subcomandante da 3ª Cia do I Batalhão do 6º Regimento e também Oficial de Informações do Batalhão[2].O tenente Alífio defendeu que os comandantes superiores poderiam muito bem ter mandado reforços para as Cias atacadas e da mesma forma, munição para suportar os contra-ataques, já que tiveram pelo menos “meia jornada” para assim proceder. Porém, reflete ele, se o Comando tinha empregado os três batalhões de uma só vez, como poderia mandar reforço, se não havia tropas de reserva?
“Estudou o comando um ataque, montou e levou a efeito, esquecendo-se dos mais comezinhos princípios de tática militar: nenhuma tropa deve empenhar-se em combate sem reserva. Além disso, outro princípio, igualmente importante também foi esquecido: não se estudaram e não se forneceram à tropa atacante, meios de reabastecimento suficientes (…). Cremos, pois, ter assim ficado provado que o primeiro revés das tropas brasileiras na Itália, foi devido ao menosprezo, mas do nosso Comando, pelo valor do inimigo, avaliação indevida de suas possibilidades, falta de previsão de reserva e de meios de reabastecimentos”, concluiu Piason.
José Gonçalves, que comandava um dos pelotões da 1ª Cia na ocasião, na mesma obra que Piason, escreveu um capítulo todo sobre aquela fatídica noite. Os dois concordam que se houve falta de planejamento, não foram das Cias e sim de seus superiores, que descuidaram das reservas e da parte logística.
Gonçalves e os homens dele resistiram até que nem granadas eles tivessem mais, ao ponto de ter que esperar os alemães chegarem a 20 ou 30 metros para poderem atirar e não desperdiçar munição. Até bazucas eles utilizaram contra os inimigos. Ferdinando Piske[3], que era sargento no pelotão de Gonçalves, confirmou os fatos narrados pelo tenente[4] e completou que quando chegaram ao local de reunião do batalhão, já em Sommocolonia, ficou assustado. “O que arrepiou, foi a contagem da munição. Os 45 homens do Pelotão, mais uns 12 do pelotão de petrechos, tinham 137 cartuchos. Pouco menos de três tiros para cada um!”, completou.
“Foi essa a primeira lição que o Fritz nos deu. Aproveitamo-la sem dúvida, porque, daí por diante, nunca mais seríamos vítimas de tais surpresas. Já não iríamos confiar demasiado e nossa valor combativo, e sim cumprir certas prescrições reguladoras da segurança imediata, logo após a conquista de uma posição, mesmo que o cansaço nos tornasse desesperados”, escreveu Newton C. de Andrade Mello, observador avançado da Artilharia junto ao 6º Regimento.
General Zenóbio fez pouco caso
O comandante da Infantaria da FEB, Zenóbio da Costa teria desdenhado dos inimigos, pouco tempo antes da saída das Cias. Ele duvidava da capacidade combativa dos adversários e também teria apressado a partida sem os devidos meios. “Foi quando apareceu por lá um Oficial do Estado-Maior do destacamento FEB, o qual não querendo tomar conhecimento das razões que haviam determinado aquele atraso [da partida do ataque], em termos coléricos, foi logo se dirigindo os capitães e tenentes daquelas companhias dizendo a eles: ‘vocês estão com medo de meia dúzia de vagabundos. A pau eles sairão de lá!’”, lembrou José Gonçalves.
E depois da batalha, não foi diferente. Quando tudo já havia dado errado, o mesmo general passou pelos soldados sujos, cansados e abatidos. “No entanto, pasmem os que lerem estas linhas, reunidos os elementos batidos de tão castigada a companhia [da 3ª Cia], que se haviam recolhido das nossas linhas internas de partida, estropiados, combalidos física e moralmente pelo cansaço, pelos acontecimentos e a perda de tantos companheiros, reunindo tais elementos que só mereciam palavras de exaltação e estímulo, passou o general comandante da operação, fortíssima reprimenda, terminando com a afirmação de não passavam todos de ‘covardes fugindo diante de meia dúzia de uma patrulha de inimigos desmoralizados’”, afirmou o tenente Gonçalves.E a bronca teve repercussão. O 1º Tenente Massaki Udihara, do 6º Regimento anotou no diário[5] que mantinha que “a 1ª [Cia], dizem, que recuou com muitas baixas. O mesmo com a 3ª que, segundo contam, foi posta em forma pelo General e chamada de covarde. Atitude característica e própria de quem vem. É seu modo de elevar o moral e não compreender a situação”.
Piason comparou a atitude de Zenóbio, com a mesma que teve o general Patton quando esbofeteou um soldado com neurose de guerra e ainda o chamou de covarde. Na opinião dele, ainda que fosse verdade que o general tinha dito, aquele não era o jeito de falar com homens que tinham lutado até o completo esgotamento físico e de meios.
Reação diferente teve o comandante do Batalhão, major João Carlos Gross, que foi encontrar com os soldados em Sommocolonia. “Batia a amigavelmente nas costas de cada um e dizia: ‘Sigam tranquilos, rapazes. Vocês cumpriram exemplarmente seu dever. Nestas circunstâncias, nenhuma tropa seguraria essa posição”, escreveu o sargento Piske.
Mais tarde, segundo o tenente Gonçalves[6], o próprio Gross teria escrito no Jornal de Taubaté: “Foi cometido um crime contra o meu Batalhão, e desse crime sinto que sou cúmplice porque executei as operações (…) Porém, não me julgo o criminoso. Ataquei sem reserva de tropa e sem reservas de munição e alimentos, e disso não me cabe culpa direta”, teria publicado.
O Chefe do Estado-Maior da FEB, Coronel Floriano de Lima Brayner, em livro[7] que escreveu em 1968, não perdeu a oportunidade de lembrar o fato e alfinetar seus colegas com quem cultivava desavenças políticas. “O tropeço daquela madrugada de 31 de outubro continuou a martelar o espírito de todos. E todos concordavam em que a menor culpa era da tropa. Falhara o Estado-Maior de Zenóbio no planejamento. Os meios não foram proporcionais a missão. Também cabe a parte da responsabilidade ao Estado-Maior da Divisão, pois encontrava-se ao lado do General Zenóbio, como seu assessor imediato, o próprio chefe da 3ª Seção do Estado-Maior divisionário, Tenente Coronel Humberto Castelo Branco”, publicou.
Quando a FEB foi para o setor Reno, Zenóbio não comandaria mais de forma independente como vinha fazendo. Mascarenhas de Moraes e o Estado Maior da Divisão é quem fariam o planejamento e a execução das ações. Segundo Brayner, “não se pôde esconder o profundo desgosto que assaltou o General Mascarenhas, que tanto se entusiasmara com a jornada anterior [dia 30]”.Já a frente de Sommocolonia a Barga continuaria em disputa do Eixo com os Aliados até o abril de 1945, quando as tropas nazifascistas começaram a recuar na tentativa de fugir para a Áustria/Alemanha. O problema de não conseguir desalojar os inimigos não foi somente da FEB. As unidades americanas que entraram no lugar dos brasileiros não teve melhor sorte e o máximo que conseguiram foi não ceder terreno.
Um trauma
Anos depois da guerra, o Cabo da 3ª Cia do 6° Regimento, Miled Cury disse[8] que em uma reunião na Associação de Ex-combatentes, um colega, Miguel Garófalo, da Cia de Petrechos do I Batalhão, que estava junto da Cia dele em 31/10/1945, o abordou bastante emocionado e relembrou daquela noite, quando matou um inimigo a queima roupa. “O sujeito parece que estava louco… Com os olhos esbugalhados, veio na minha direção e quase caiu em cima de mim. Acho que ele estava morto antes de cair. (…) Por que eles não mandaram mais munição para nós? Se a gente tivesse munição, eles nunca iriam ganhar de nós!”, completou Miguel com lágrimas nos olhos.
O troco
Primeiro os soldados do 6° Regimento expulsaram os alemães de Castelnuovo di Vergato, em março de 1945. Ali estavam alguns dos soldados que eles tinham enfrentado em Garfagnana.
Depois, quando aconteceu a rendição da 148ª Divisão Alemã, em 29 e 30 de abril de 1945, parte das tropas aprisionadas pelos homens do 6º Regimento eram justamente as mesmas que os haviam expulsado das proximidades de Castelnuovo de Garfagnana. Isso porque havia homens da Monterosa e da 232ª Divisão entre os quase 14,8 mil soldados aprisionados.
Foi assim que dia 31 de outubro de 1944 entrou para a história militar do Brasil.
[1] Livro “A FEB pelo seu comandante”.
[2] No livro “Depoimentos de Oficiais da Reserva sobre a FEB”, de 1948.
[3] Livro “Anotações do front italiano”.[4] Livro “Irmãos de Armas”.
[5] Livro “Um médico brasileiro no front”.
[6] No mesmo livro “depoimentos de oficiais da Reserva sobre a FEB”.
[7] Livro “A verdade sobre a FEB”.
[8] Livro “Memórias de um Mogiano na FEB”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário