AUTORIDADE RELIGIOSA DO REI

AUTORIDADE RELIGIOSA DO REI

Não é necessário representar uma cidade, desde o nascimento, deliberando sobre o governo que ela se vai atribuir, procurando e
discutindo-lhe as leis, bem como combinando-lhe as instituições.

Não é assim que as leis se elaboraram,nem que os governos se instituíram.
As instituições políticas da cidade nasceram com a própria cidade,no mesmo dia em que, como cidade, esta nasceu.

Cada membro da cidade as trazia consigo,vivendo em germe nas crenças e na religião de cada homem.
Prescrevia a religião que houvesse sempre,na lareira, um supremo sacerdote. Não admitia partilha da autoridade sacerdotal.

O fogo doméstico tinha o grande sacerdote,que era o pai de família;o lar da cúria
tinha seu decurião ou fratriarca e cada tribo tinha de igual modo seu chefe religioso,aquele a quem os atenienses chamavam de rei da tribo.

A religião da cidade devia ter também seu pontífice.
O sacerdote da lareira pública usava o nome de rei.
Algumas vezes davam-lhe outros títulos.
Como era,antes de tudo, sacerdote do Pritaneu,os gregos chamavam-no, ainda,naturalmente,de prítano,e,às vezes,de arconte.

Sob esses nomes diversos, rei, prítano,arconte,sempre devemos ver nele um personagem que é sobretudo o chefe do culto, sendo ele quem mantém o fogo aceso,faz o sacrifício, pronuncia a oração e preside às refeições religiosas.

É claro que os antigos monarcas da Itália e da Grécia tenham sido
tanto sacerdotes como reis. Lê-se em Aristóteles:
“O cuidado com os
sacrifícios públicos da cidade cabe,segundo o costume religioso,não a
sacerdotes especiais,mas a estes homens que têm a dignidade do fogo e
aos quais chamamos, conforme os lugares,de reis, prítanos ou arcontes”.

Assim nos fala Aristóteles, o homem que teve melhor conhecimento das constituições das cidades gregas.
Essa passagem, de conteúdo tão preciso, demonstra terem sido as três palavras,rei, prítano e arconte,durante muito tempo,sinônimas; isto é tão verdadeiro que outro
historiador,o antigo Charon de Lâmpsaco,escrevendo seu livro sobre os
reis da Lacedemônia, intitulou-o Arcontes e Prítanos dos Lacedemônios.

Ele acha ainda que este personagem,indiferentemente conhecido por
qualquer desses três nomes,talvez mesmo pelos três,ao mesmo tempo,era o sacerdote da cidade, sendo o culto da lareira pública a origem de sua dignidade e de seu poderio.

O caráter sacerdotal da realeza primitiva encontra-se claramente
descrito nos autores antigos.
Em Ésquilo, as filhas de Dânao dirigem-se ao rei de Argos nestes termos:
“Tu és o prítano supremo,e és tu que velas
pelo lar deste país”.
Em Eurípedes, o assassino de sua mãe,Orestes,diz a Menelau:
“É justo que, como filho de Agamenon,eu reine em Argos”; e Menelau lhe responde:
“Tu, assassino, estás à altura de tocar nos vasos de água lustral para os sacrifícios?
Encontras-te em situação de poder degolar
as vítimas?”.

A principal função do rei era,pois, a de realizar as
cerimônias religiosas.
Certo rei antigo de Sicione foi deposto, porque sua mão se manchara por um assassinato e,daí, jamais ficou em estado de poder sacrificar.
Não podendo ser sacerdote,não poderia continuar a ser rei.

Homero e Virgílio mostram-nos os reis ocupados nas cerimônias
sagradas.
Sabemos,por Demóstenes, que os antigos reis da Ática faziam,eles próprios, todos os sacrifícios pela religião da cidade e, por Xenofonte,
sabemos terem sido os reis de Esparta também chefes da religião lacedemônia.

Os lucumons etruscos eram, ao mesmo tempo, magistrados,chefes militares e pontífices.
Em Roma, o mesmo ocorreu com os reis.
A tradição apresenta-os
sempre como sacerdotes.

O primeiro a aparecer na hierarquia dos seus
sacerdotes foi Rômulo, que, sendo “instruído na ciência augural”,fundou a cidade,de acordo com os ritos religiosos.
O segundo que surgiu foi Numa, que“desempenhava”, diz Tito Lívio,“a maior parte das funções sacerdotais, mas, prevendo que seus
sucessores,tendo muitas vezes guerras a enfrentar, não pudessem ocupar-se sempre com o necessário cuidado dos sacrifícios, criou os flâmines para
substituírem os reis, quando estes se ausentassem de Roma”.
Assim,o sacerdócio romano nada mais era do que uma forma de manifestação da
realeza primitiva.

Esses reis-sacerdotes eram entronizados mediante cerimonialreligioso.
O novo rei, conduzido ao cume do monte Capitólio, sentava-se em um banco de pedra, com o rosto voltado para o sul.
À sua esquerda tomava lugar o áugure,com a cabeça coberta de bandeirolas sagradas,
trazendo na mão o bastão augural.

Traçava no espaço determinadas linhas,
pronunciava uma oração e, colocando a mão na cabeça do rei, suplicava aos deuses que indicassem por sinal visível se este chefe lhes convinha.

Depois, quando o relâmpago, ou o voo das aves, lhe revelava a aprovação dos deuses,o novo rei tomava posse no cargo.
Tito Lívio descreve-nos essa cerimônia para a posse de Numa.

Dionísio assegura-nos que a cerimônia sempre ocorria para todos os reis e,depois dos reis, para os cônsules, acrescentando que a praticavam ainda
em seu tempo.
Tal uso tinha sua razão de ser: como o rei seria o chefe supremo da religião e como a salvação da cidade ia depender das orações e
dos sacrifícios dele,tinham os antigos o direito de, antes de mais nada,
certificar-se se esse rei era bem aceito pelos deuses.

Os antigos não nos ensinam o modo pelo qual os reis de Esparta
tomavam posse de suas funções, apenas nos dizendo que se realizava,
então,uma cerimônia religiosa.

Reconhecemos através de velhos costumes que duraram até o fim da história de Esparta que a cidade queria estar bem
assegurada de que seus deuses eram propícios, pedindo-lhes “um sinal,
semeion”, que segundo Plutarco consistia nisto:

“De nove em nove anos,
os éforos deveriam escolher uma noite límpida, mas sem lua, e sentavam- se em silêncio, com os olhos fixos no céu.
Se vissem uma estrela
atravessar o firmamento de um lado para o outro,isso indicava serem os reis culpados de pecado para com os deuses.

Suspendiam-nos,então,até que o oráculo,vindo de Delfos, os libertasse dessa suspensão”.

Fonte:

sexta-feira, 24 de maio de 2024

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