sexta-feira, 22 de junho de 2018

Um conto de Matinhos

Reza a lenda que, a muito tempo atrás, Matinhos era menos que uma cidade, uma vila, não se pode ao certo dimensionar datas, porem, havia em Matinhos, um homem cujo nome era Nelson Tavares, pai de família, trabalhador, sua marca registrada era um fino bigodinho que demarcava seu rosto branco e entalhado pelos raios solares e as mãos da vida, como todo bom caboclo Matinhense, cultivava sua roça, vez ou outra de milho, arroz, feijão, mandioca, ou aquilo que o período possibilitava a produção, caçava, não muito adepto da caça por arma de fogo, cultivava em si, a cultura de fazer armadilhas, um covo para apanhar um tatu  na toca, o mundéu no carreiro pra apanhar a cutia, e uma boa arapuca no carreiro do nhambu.
Com a pesca, era mais seletivo, raras as vezes que se via o velho Nelson a beira mar, empunhando um caniço ou linha de mão, menos ainda com redes e canoas, mas, por vez ou outra, principalmente em dias de frio,  madrugadas escuras, era possível vê-lo a beira mar, tarrafa em punho, cesto de timbopéva a tira colo, calça a meio pau e uma camisa de botão com as mangas arregaçadas.
O sol naquele dia, estava tímido, aos poucos ia perdendo a força, dando lugar a uma tarde que esfriava a cada segundo, aquele ar nostálgico que ainda me arrepia só de lembrar, o frio pouco a pouco se tornava insuportável e somente aos pés de um fogão a lenha e uma talagada e outra de cachaça, era capaz de esquentar o corpo do caboclo, já que a alma era aquecida por historias e mais historias, Nelson porem, naquele dia, resolveu não escutar as historias, apanhando sua tarrafa, um cesto, sai de casa sorrateiro, sem se preocupar em avisar ninguém, não havia perigo, logo, não havia tanta preocupação como hoje em dia.
Não havia lua, não havia luz elétrica, não haviam ruas, os caminhos eram estreitos, só quem era acostumado, poderia se guiar de forma precisa, e em menos de 10 minutos, Nelson Já estava a beira mar, olhando cauteloso, procurando o melhor lugar, como se dizia, a melhor “costa” para dar uma “sova”, ele anda por mais alguns minutos beirando o mar, vez ou outra vê um garoçá passar assustado, e logo, encontrando um ponto que imaginava ser o ideal, desamarra a tarrafa e se prepara para a pesca.
conto de matinhos
Um conto caiçara
Ato continuo, ele safa a tarrafa, prendendo o chumbo na boca, anda, pé por pé, lento e sorrateiro, e ao ver a onde se formando a sua frente, faz um giro, 360º, solta a tarrafa com maestria, e a mesma cai a frente, totalmente aberta, porem, ele de súbito, da um pulo, assustado, olha pra trás a procura, algo havia lhe tocado as pernas naquele momento.
Não havia nada, ele desconfiado, recolhe a tarrafa, lentamente, sem fazer barulho algum, sai da água e caminha um pouco a frente, mesmo ritual, segurar o chumbo na boca, safar metade da tarrafa, pé por pé, giro, e soltar, agora ele dá mais um pulo, soltando um “VALHA-ME DEUS”, e recolhendo sua tarrafa sem ao menos se preocupar se havia pego alguma tainha, e olhando pra trás, pela areia, não vê viv´alma, o vento a muito não batia nas arvores, e o silencio era somente interrompido quando ao longe se ouvia o pio de uma coruja.
Nelson então sai da água, solitário, receoso, não sentia medo, mas é fato que, pro caboclo, qualquer coisa relacionado ao oculto, espíritos, assombração, almas, assustavam bem mais, do que os perigos representados por homens, por vivos, e ele caminha, vê ao longe uma fogueira, dois homens faziam “hora”, esperando para voltar a água e continuar a pescaria. Nelson os saúda com o típico “ooo”, e se esquenta na fogueira, silencioso, aceita um trago de pinga que lhe é oferecido, porem se mantém calado, silencioso.
Pouco depois, eles voltam a água, Nelson se afasta, indo em direção oposta, a verdade é que, qualquer um, voltaria pra casa, não ficaria ali, porem ele, decide continuar, e repetindo o ritual da tarrafa, entra na água, e ao girar, mais uma vez, sente algo bater em suas pernas, como se uma chicotada fosse deferida por alguém que estava atrás dele, como um raio, ele se vira, ao mesmo tempo, uma coruja pia ao longe, dando um ar ainda mais tenebroso aquela noite fria, porem o Caboclo não se intimida, recolhe a rede, havia apanhado um belo exemplar de tainha, retira ali mesmo, joga em seu cesto, e recomeça, mesma coisa, agora, parecia com mais força, algo tocava suas pernas, e o assustava, nisso, ouve-se o uivo de um cachorro bem próximo, e um arrepio corre por sua espinha, ao mesmo tempo que sua mente cria mil possibilidades.
Dessa vez, ele se retira da água, entoa uma reza que a muito aprendera, olha ao redor, não se contem, reza baixinho ao mesmo tempo que, observa o mar, ele não pode sair dali, sem saber o que acontecia, e entra na água, receoso, porem disposto a enfrentar.
E nisso, novamente, ele sente algo chicotear suas pernas, e assim todas as vezes que soltava a tarrafa das mãos, sentia que o choque era cada vez mais forte, isso se mantém durante toda a noite, até que, cansado, vai para casa.
Ao chegar em casa, ele olha a mulher, que ao vê-lo pálido, indaga sobre o ocorrido, ele então relata, imitando ainda, como fazia ao lançar a tarrafa na água, jurava de pé junto que, o tinhoso o havia atentado a noite toda, e contava vantagem de o ter enfrentado, não se amedrontado, nisso, ao ver ele imitar o ritual de pesca, Diva não contem uma gargalhada, que o apanha de surpresa, arrancando alguns xingamentos, a mulher o abraça, e passa a mão pelas costas do marido, puxando pra si, uma das tiras que serviam de alça do cesto, havia arrebentado, ao girar, batia na perna.
Percebendo o que de fato havia ocorrido, o homem cai na gargalhada.
De quanto em quanto contava pelos botecos da vila, a historia, omitindo a parte da alça arrebentada…
– E como o senhor soube a verdade pai?
– O caboclo Matinhense, depois de um trago ou dois, virava um exímio contador de verdade, de verdade.
(O texto foi publicado na íntegra, sem qualquer alteração do texto original)
Por: Leandro Tavares

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