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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A padroeira, a Câmara Municipal, os índios, o ouro e a capela

 

A padroeira, a Câmara Municipal, os índios, o ouro e a capela

por João Cândido Martins 

Pintura "Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais", de Arthur Nísio.

Nascida nas Ilhas Canárias (Espanha) em 1400, a devoção por Nossa Senhora da Luz teve grande repercussão em Portugal, onde a santa se tornou padroeira de dezenas de freguesias, com destaque para Carnide (nos arredores de Lisboa). A tradição se espalhou pelas colônias portuguesas em todos os continentes, e segundo o historiador Júlio Lívio Moreira, chegou aos Campos de Curitiba por meio da família Côrtes, radicada na metade do século XVII na chamada Povoação Nova (Vila do Atuba).

Tal vilarejo, (localizado à margem esquerda do rio Atuba, onde hoje funciona um Parque Histórico no Bairro Alto) foi um dos arraiais formados por “faiscadores” de ouro, solitários ou acompanhados por suas famílias em regiões diversas do planalto curitibano. Segundo o pesquisador Joacir Navarro Borges, os povoados de Arraial Queimado, Borda do Campo e Arraial Grande foram exemplos de mineração que não ganharam impulso para se tornar cidades em potencial, com força política própria. “Além dos mineradores arraialados, alguns remanescentes de bandeiras apresadoras de índios situaram-se no Barigui, Botiatuva, Campo Magro, Passaúna e Uberaba”, esclarece Joacir em seu estudo “Das Justiças e dos Litígios”.

Desses arraiais, o que mais ganhou destaque foi justamente a Vila do Atuba, localidade que teria sido cenário do primeiro milagre de Nossa Senhora da Luz, cuja imagem de barro insistiria em aparecer todas as manhãs virada em direção ao poente (oeste). O povo interpretou que a santa estaria expressando o desejo de se deslocar naquela direção. Acompanhados por alguns indígenas Tingüís, os desbravadores luso paulistas se sentiram mais confiantes para adentrar as terras dominadas pelos Kaingangues, que agiam com desconfiança por já haverem sido alvo de brancos caçadores de escravos.

Júlio Moreira rememora, em 1972, a lenda dos três milagres da padroeira de Curitiba, que já havia sido contada por Romário Martins em mais de uma ocasião, e também por outros historiadores. Segundo eles, não só não houve conflito (fato considerado o segundo milagre da santa), como também os Kaigangues teriam aberto mão das terras de forma voluntária e se dirigido pacificamente para os Sertões do Tibagi (terceiro milagre). Romário chega a complementar a lenda com uma informação curiosa: o cacique kaingangue Gralha Branca fincou uma vara no chão do local que serviu de indicação para a instalação do núcleo do povoado. Com os anos, ela teria florescido e se tornado uma das árvores mais frondosas do pátio que viria a ser conhecido como Praça Tiradentes.

A primeira capela
Independente do grau de verdade que possa haver em alguma dessas especulações, o fato é que na área supostamente indicada por Gralha Branca foi construída, em 1654, a Capela de Nossa Senhora da Luz, ato que significou o primeiro estágio da criação da cidade de Curitiba. Segundo o historiador Ruy Wachowicz, “a pequena capela levantada era extremamente simples, construída de pau-a-pique e coberta de telhas goivas. Possuía apenas alguns traços de um possível estilo colonial e era o único local que conseguia congregar a população, espalhada pelos sítios e sesmarias ao derredor do pátio”.

Em 1668 houve a instauração do Pelourinho, mas só em 1693, ainda conforme relata Wachowicz, a luta corporal entre dois moradores dentro da capela durante a Páscoa configurou a gota final para o pedido de criação da Casa de Câmara e Justiça. Os juramentos dos novos vereadores como primeiras autoridades de Curitiba foram tomados com as mãos direitas sobre os evangelhos, diante do padre Antônio de Alvarenga, no interior da capela. Para Magnus Roberto de Mello Pereira, “a localidade, antes de qualquer coisa, apresenta-se como enclave da cristandade dentro da barbárie circundante”.

Em 1720, a antiga imagem de Nossa Senhora da Luz que acompanhou os primeiros moradores até a localização do núcleo central foi substituída por outra, vinda de Portugal, dotada de traços mais distintos e tintura policromada. O objeto foi pago pela Câmara Municipal, em conformidade com as determinações do Provedor do Conselho, capitão Joseph Nicolau Lisboa, conforme descreveu Júlio Moreira. A imagem foi trazida para ornar a nova capela, que fora construída mais a nordeste da Praça pelo cidadão Lourenço de Andrade nos quatro anos anteriores, também sob iniciativa dos chamados “homens-bons” (camaristas) que compunham o Legislativo municipal (e com ajuda da população).

Por que 8 de setembro?
Nos seus provimentos à Câmara de Curitiba, em 1720, o Ouvidor Pardinho instituiu o dia 8 de setembro como o dia da procissão em louvor à padroeira. Muitas cidades portuguesas adotaram 8 de setembro para a comemoração da data referente à Nossa Senhora da Luz, que também é conhecida como Nossa Senhora da Candelária, ou das Candeias, ou da Purificação. A data também coincide com a chamada "Festa da Natividade de Nossa Senhora", que tem origens no século V e foi incorporada ao Calendário Trentino (calendário oficial relativo às datas comemorativas de santos católicos).

Durante a semana, os casebres que circundavam a capela permaneciam fechados e vazios, pois seus proprietários estavam ocupados nas chácaras e nas últimas lavras de ouro que subsistiam nos Campos de Curitiba após a descoberta do metal precioso em Minas Gerais. Durante os domingos e nas festas religiosas, a população vinha para o núcleo, abria e enfeitava suas casas, muitos por devoção, outros premidos pelo fato de que as contribuições, donativos e até mesmo a presença dos cidadãos nos eventos religiosos, eram regidos em lei e administrados pela Câmara. Tal prática permaneceu vigente até a proclamação da República em 1889, quando foi adotado em âmbito constitucional o laicismo, isto é, o modelo de governo cujos atos administrativos são desvinculados de influências religiosas.
 

Referências Bibliográficas

Borges, Joacir Navarro. “Das Justiças e dos Litígios: a ação judiciária da Câmara no século XVIII (1731-1752)”. Tese de doutorado defendida pelo autor, em 2009, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. (Link aqui

Moreira, Júlio Estrella. “Eleodoro Ébano Pereira e a Fundação de Curitiba: à luz de novos documentos”. Publicado pela Universidade Federal do Paraná em 1972.

Pereira, Magnus Roberto de Mello; Santos, Antônio Cesar de Almeida. O poder local e a cidade: a Câmara Municipal de Curitiba, séculos XVII a XX. Publicado em 2000 pela editora Aos Quatro Ventos, em Curitiba.

Wachowicz, Ruy Christovam. “As moradas da Senhora da Luz”. Publicado pela Gráfica Vicentina, de Curitiba, em 1993.