Tropeiros, viola e a alma caipira nos caminhos de Sorocaba – 1820

No tempo em que a poeira das tropas marcava as veredas do interior paulista, Sorocaba era mais que um ponto de comércio — era encruzilhada de culturas, sonhos e silêncios. A cena que se apresenta diante dos olhos é de uma simplicidade imponente e ancestral: um tropeiro de olhar introspectivo, envolto num poncho escuro, detém seus passos ao som de uma viola dedilhada por um velho lavrador, descalço e sereno, como quem toca não para entreter, mas para lembrar.

Atrás dele, outro tropeiro observa com um meio sorriso, talvez reconhecendo naquela toada antiga a memória de suas próprias origens. O cenário ao fundo, com a cidade de Sorocaba ainda nascente, revela o Mosteiro de São Bento, telhados baixos e colinas que parecem guardar segredos do passado. Ali, em 1820, a história do Brasil não se escrevia nos salões do império, mas sim nos caminhos percorridos por homens como esses — entre o suor da lida, a mula xucra e as modas e fandangos de beira de estrada.

A viola, naquele instante, é mais que instrumento: é ponte entre mundos. A melodia — triste, porém serena — parece emergir da própria terra. Cada moda, um pedaço da alma caipira: a saudade de casa, a saudade por quem ficou, a contemplação de um tempo que passa devagar, como o passo das mulas. O tropeiro escuta, de olhos fechados, e por um momento se ausenta do corpo — está em outra dimensão, onde as palavras não chegam, mas o som explica tudo. Filosofia feita de cordas e silêncio, é a contemplação da "SAUDADE", que todo tropeiro carrega consigo

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Os tropeiros, figuras centrais na economia e cultura do sudeste nos séculos XVIII e XIX, eram ao mesmo tempo comerciantes, peões, sertanistas e nômades. Suas jornadas cruzavam vilas e províncias inteiras, levando gado, sal, tecidos, notícias e histórias, enfim, tudo. E, por onde passavam, deixavam rastro de cultura: o linguajar, os hábitos, as modas de viola, os causos e lendas que hoje formam o alicerce do nosso folclore, hábitos e cultura.

Já o homem que toca, o lavrador de pés descalços e olhar atento, representa o espírito da roça — calmo, sábio, conectado com a natureza. É ele quem ancora o tropeiro, quem oferece pouso e abrigo sonoro para aquele que vive na estrada. O roceiro, frequentemente estigmatizado como simples ou rude, é na verdade guardião de um saber profundo, filosófico, intuitivo. Suas palavras são poucas, mas sua música fala por ele

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Mas havia mais nesse tropeiro do que o peso da cangalha. Havia nele o traço do antigo sertanista visionário, do Bandeirante — aquele que carrega a certeza de que seja lá onde for, sempre haverá esperança de que voltará com melhores condições para sua família. Ele foi e é como um cavaleiro da tradição, esse tropeiro mesmo que simples ,cruza campos e serras, levando consigo não apenas mercadoria, mas o Sonho do Prata.

Ao chegar na Colônia do Sacramento, ou mesmo ao descer para os pagos da atual Argentina, ele não apenas comercializa mulas para Sorocaba— ele dissemina naqueles pagos. Ensina um canto, improvisa um verso de cururu que mais tarde se transformaria num bugio oferece um mate trago das bandas de Curitiba bem quente à sombra de um rancho. E volta com mais do que levou: traz histórias, gestos, receitas, notícias. O tropeiro é um elo entre mundos distantes, um herói silencioso de uma epopeia que não se escreve mais com a espada e arcabuzes dos seus pais Bandeirantes, mas com poeira e viola.

O tempo entrelaçado na memória sonora:

Essa imagem — real ou construída — ecoa um Brasil que insiste em sobreviver, mesmo por meios modernos. Um país que ainda mora nas estradas de terra, nos sotaques arrastados, nas canções tristes que dizem mais do que qualquer discurso. O olhar do tropeiro revela o impacto daquela moda simples, como se cada nota lembrasse das perdas, das escolhas, da solidão. Mas também há conforto ali: a música reconcilia o homem com o mundo.

Em um tempo onde tudo corre, a cena nos oferece pausa. O tropeiro, parado. O roceiro, sereno. A paisagem, ampla. É um convite à contemplação. E talvez o maior heroísmo do caipira esteja nisso: seguir vivendo com dignidade e feliz, mesmo quando todo mundo não preste atenção.

Hoje, Sorocaba já não é mais a mesma. O progresso transformou as trilhas em asfalto, os tropeiros em memória. Mas a essência permanece. Nas festas de Folia de Reis, nos grupos de catira, nas modas de viola que ainda ecoam em rádios de pilha e varandas. O Brasil profundo ainda canta — e talvez esteja esperando que a gente pare, escute e sinta.

Como o tropeiro da imagem, somos todos viajantes em busca de um sentido. E às vezes, tudo que precisamos é de alguém, sentado na beira do caminho, que nos toque uma moda antiga e nos faça transportar para uma época que nos faça lembrar de onde viemos.

sábado, 24 de maio de 2025

Tropeiros, viola e a alma caipira nos caminhos de Sorocaba – 1820

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