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sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Antes dos primeiros “omnibus”, os bondes puxados por mulas

 

Antes dos primeiros “omnibus”, os bondes puxados por mulas

por Marcio Silva 

Os primeiros bondes de Curitiba eram puxados por mulas e começaram a funcionar em 1887. (Foto – Acervo Casa da Memória)

Desde que a humanidade passou a viver em cidades, a importância do transporte coletivo pode ser comparada à necessidade da existência de ruas. E encontrar soluções que atendam à população sempre foi um desafio para as metrópoles. Em Curitiba, não é diferente. A capital, conhecida mundialmente por medidas inovadoras no transporte coletivo, vive a expectativa da implantação do metrô, antigo sonho de seus moradores, e promessa de melhoria na mobilidade como um todo. Mas não é de hoje que o tema desperta a atenção dos curitibanos e encontra eco na Câmara Municipal.

O Brasil ainda era governado por Dom Pedro II, quando a cidade teve sua primeira experiência de transporte coletivo, o sistema de bondes puxados por mulas, inaugurado em 1887. As duas últimas décadas do século XIX, inclusive, foram de muitas transformações urbanas, quando aqui chegaram tecnologias como a água encanada, a estrada de ferro, que fazia a ligação com Paranaguá, e a energia elétrica.

Há divergências sobre o trajeto da primeira linha de bondes, se partia da Rua Barão do Rio Branco, onde era o depósito da Companhia Ferro Caril Curitibana, da casa de Ildefonso Pereira Correia, o barão do Serro Azul, no Fontana, ou do Boulevard Dois de Julho, atual Rua João Gualberto. O certo é que o destino final era o Batel, na época um bairro comercial, onde também funcionavam algumas indústrias.

Mas foi em 1896 que os vereadores aprovaram uma das primeiras leis disciplinadoras do trânsito, na época restrito aos cavalos, carroças e bondes, que circulavam em trilhos. A medida determinava que os animais utilizados no transporte deveriam ser conduzidos a passo, os chicotes não poderiam ser estalados e o condutor e passageiro foram proibidos de perturbar a ordem pública com gritos para os animais. 

Apesar de ser bem aceito pela população, o novo sistema era considerado muito vulnerável, pois, por ser aberto, permitia que os passageiros descessem sem pagar a passagem. Além disso, muitas vezes os carroceiros, concorrentes do modal, principalmente na movimentação de cargas, boicotavam o sistema, estacionando sobre os trilhos ou obstruindo-os com paus e pedras. O quesito segurança também deixava a desejar. Um jornal da época registrou o que teria sido o primeiro acidente.

Relata o informativo que “o bonde nº. 03, descendo a rua da Assembléia (atual Doutor Muricy), veio com tanta velocidade que, não obedecendo à curva da casa do Dr. Ricardo dos Santos, descarrilhou ao entrar para a rua da Imperatriz (atual avenida Marechal Deodoro), e, incontinenti, virou para o lado direito, jogando muitos passageiros fora de seus lugares. Felizmente ninguém se machucou, mas o certo é que até aquele ponto o bonde vinha cheio e dali seguiu sem mais um sequer de seus passageiros. Compareceu o Senhor Delegado de Polícia, que intimou o cocheiro a não continuar a descer a ladeira com tanta velocidade.”

Saem os animais, entra a eletricidade
Com o crescimento acelerado da cidade no início do século XX, impulsionado pela chegada de milhares de imigrantes europeus e pelo ciclo econômico da erva-mate, que geraram uma necessidade cada vez maior por deslocamentos, o sistema de bondes com tração animal começou a demonstrar sinais de esgotamento. Os registros mostram que, entre 1903 e 1913, o número de passageiros aumentou 179%, saltando de 680 mil para 1,9 milhão por ano. Então, após 25 anos de utilização, esses veículos começaram a ser substituídos pelos movidos a energia elétrica. A mudança aconteceu na administração do prefeito Joaquim Macedo, que assinou contrato para o funcionamento do novo serviço em maio de 1910.
 
Contudo, a novidade só passou a operar em novembro de 1912, dois meses após Macedo deixar o cargo. Os veículos antigos foram vendidos para Paranaguá, onde funcionaram até a década de 1930. Uma curiosidade do bondinho é que, apesar de ele ter o objetivo de atender às massas, era um meio de transporte dividido por classes econômicas. Havia duas categorias, a primeira classe e a popular, chamada "bond mixto", onde os passageiros, além de pagar uma passagem mais barata, podiam viajar descalços.

Inicialmente explorada pela iniciativa privada, a administração desse sistema passou, alguns anos depois, para as mãos do poder público. Foi com a aprovação da lei 627, de 1924, que a Câmara autorizou o poder Executivo a emitir apólices para atender as despesas com a aquisição dos serviços de luz, força e bondes da capital. No entanto, não era interesse do município operar o sistema, tanto é que a norma já previa a publicação de editais convocando interessados em explorar a atividade. Além disso, determinava que a prefeitura estabeleceria as “condições que deverão ser observadas pelos arrendatarios, no sentido de melhorar as actuaes condições das installações, utilizando a energia hydro-electrica”.

A chegada dos ônibus
Quatro anos depois, mais mudanças, e a prefeitura concede, por meio da lei 719, às Empresas Elétricas Brasileiras S.A., o direito exclusivo de explorar, por meio de tração elétrica, os serviços de bondes e o fornecimento de luz pública e particular, pelo prazo de 40 anos. A lei permitia, ainda, que a empresa explorasse os serviços de “omnibus”, de acordo com regulamento a ser criado pelo Executivo. E ao que tudo indica, havia uma certa pressa, pois apenas cinco meses após a edição dessa lei, veio a regulamentação, através do decreto n° 21.

Conforme o documento, as linhas poderiam ser de três tipos em relação aos trajetos dos bondes: com inteira independência, tendo os pontos de chegada e saída em comum, ou com o mesmo traçado. As linhas de trajeto igual eram exclusivas para o concessionário dos bondes, mas as outras duas modalidades poderiam ser repassadas para terceiros. Essa legislação deixa claro que já havia preocupação da administração quanto à capacidade dos veículos elétricos absorverem o crescente número de passageiros.

O decreto estabelece, por exemplo, que, no caso da companhia não fornecer o serviço de modo suficiente e adequado, a prefeitura poderia permitir que o atendimento fosse feito por ônibus de terceiros. Nesta época, Curitiba contava com seis linhas de ônibus, atendidas por 15 carros. Comparado aos dias de hoje, quando há vias urbanas com limite de velocidade de 60 e até 70 km/h, talvez os veículos fossem considerados um pouco lentos, pois o máximo permitido nas ruas centrais era de 30km/h, nas demais ruas do quadro urbano não poderia ultrapassar os 40km/h, e fora desse quadro poderia chegar aos 50km/h.

Com os carros, mais regulamentação
Para os curitibanos, a era do transporte individual motorizado iniciou em 1903, quando Francisco Fido Fontana trouxe para cá o primeiro automóvel movido a gasolina. Fontana também foi pioneiro ao montar a primeira revenda de veículos da cidade, assim como a primeira oficina mecânica. Já os primeiros veículos de serviço público foram adquiridos pelo prefeito Cândido de Abreu, que exerceu o cargo entre 1912 e 1916.

O rápido crescimento do tráfego, que a esta altura já mesclava automóveis, bondes elétricos e os veículos de tração animal, precisava ser orientado e, por ausência de uma legislação maior, os vereadores aprovaram a lei 391, em agosto de 1913, a primeira norma editada depois da chegada do automóvel. Apenas três meses antes, o Legislativo havia recebido mensagem do prefeito que, dentre outros assuntos, chamava a atenção para os automóveis. Ele pedia a criação de medidas especiais, em razão do perigo a que os pedestres estavam expostos, dada a velocidade com que os carros circulavam. Sugeria medidas de segurança, a adoção da carteira dos chauffers, exame profissional e multas para os casos de acidente.

E segurança parece ser mesmo o principal foco desta lei. Ela estabelece que os condutores só poderiam circular portando uma licença concedida pela prefeitura e após passar por exame onde demonstrassem conhecer “todos os orgãos do apparelho e a forma de manobrar, assim como possúa os requisitos necessarios de prudencia, sangue frio e visão e audição perfeitas”. O veículo teria que passar por uma vistoria e, onde houvesse acumulação de pessoas, a velocidade deveria ser de um homem a passo. “Em caso algum poderá ir alem de 30 kilometros por hora em campo raso; de vinte kilometros em lugares habitados e de doze kilometros no quadro urbano”, diz o texto.

Outra exigência era que, para circularem à noite, os veículos deveriam trazer, na sua frente, duas lanternas, uma de luz branca e outra de luz verde, e atrás uma de luz vermelha. Também era obrigatório “estar munido de signaes sonoros, sufficientemente efficazes para indicar a aproximação  á distancia conveniente”.

Em 1919, o parlamento voltou a se manisfestar sobre o trânsito. Nessa ocasião, foi aprovado o Código de Posturas de Curitiba (lei 527), que também legislou, e atualizou algumas regras do tráfego de veículos em geral. Conforme o documento, “os condutores de automóveis, carros de tração animal e outros veículos devem caminhar em regra, junto à guia ou meio fio do passeio do seu lado direito, só podendo deixar esse lado no momento em que tiver de passar por outro veículo que vá na mesma direção. Nenhum desses veículos pode parar senão na direção em que pode circular, contanto que não embarace a circulação dos bondes”.

Também há restrições quanto a parar junto ao passeio, situação só permitida para carga e descarga ou pegar passageiros, além de nova regra para os proprietários de automóveis, que ficaram responsáveis pelas multas impostas aos condutores. Os veículos poderiam até ser apreendidos, como garantia do pagamento das infrações.

O fim de uma era
A chegada dos anos 1950, quando Curitiba sediou jogos da Copa do Mundo, no estádio Durival de Britto, marcou a extinção dos charmosos bondinhos. Os ônibus e os bondes conviveram por um certo tempo, mas o desinteresse da prefeitura em autorizar aumentos no valor das tarifas, e a consequente falta de investimentos em uma frota já envelhecida e carente de ampliações, acabaram por inviabilizar o sistema. Dez anos antes, já havia sinais de que as coisas não iam bem, tendo sido assinado um acordo com a Companhia Força e Luz, para a desativação de várias linhas, mas a chegada da Segunda Guerra Mundial e o racionamento de combustíveis deram uma sobrevida aos bondes. Em 1942, quando já havia mais de dez linhas regulares de ônibus, a preferência da população ainda era clara: neste ano, 12.057.610 passageiros optaram pelos bondes, contra 2.814.866 pelos ônibus.

Porém, na medida em que o novo meio de transporte coletivo se consolidava, os bondes eram desativados. Sem os investimentos necessários, era difícil competir com um veículo considerado mais eficiente, rápido, seguro e confortável. A maior resistência vinha justamente da classe trabalhadora, que via no antigo sistema a opção de um transporte mais barato. Desativados aos poucos, a última viagem foi feita em 1952, para o bairro Portão, onde moravam muitos operários.

Mas o gosto e as boas lembranças deixadas pelos bondes não foram totalmente deixadas de lado. Desde 1973, a Rua das Flores, tradicional ponto turístico da capital, exibe um bondinho, que atualmente funciona como biblioteca. Apesar de ser original da cidade de Santos, e nunca ter sido utilizado aqui, o veículo é um símbolo da história da cidade, que ajudou a construir o atual sistema de transporte coletivo, hoje dominado pelos ônibus.