quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Histórias de Curitiba - A Amante argentina

 

Histórias de Curitiba - A Amante argentina

A Amante argentina
J. J. Figueiredo Lima

Bem que o Contista advertira - "janeiro é o menos cruel dos meses". Pois foi num abafado mês de janeiro, patroa e filharada na praia, que a viu pela primeira vez no inferninho esfumaçado da Westphalen, já madrugada alta.
Tinha bem uns tres ou quatro ba-bosos cortejadores em volta, e não era para menos.
Seria, disparado, a mulher mais bonita do salão, quiçá de todos os inferninhos da rua.
Ainda assim, ele só se interessou quando lhe ouviu a voz. O sotaque não deixava margem para dúvida - era portenha.
Os olhos dele brilharam a mão tremeu derrubando metade da dose. "Será minha", jurou para si mesmo. "Minha amante argentina!"
Algumas quantas noites de assédio respeitoso, um primeiro e tímido sorriso, muitas doses pagas e - principalmente - a carteira recheada aberta displicentemente em sua frente e pronto. A conquista, ou fosse lá o que aquilo fosse, estava consumada.
Para encurtar a história, juntos escolheram para ela a Kitinete para alugar, compraram móveis, o som, enxoval, uns vestidos... E juntos trocaram mil juras de exclusividade.
Chamava-se Natália, de apelido "A Monumental". Exagero, viu ele logo na primeira manhã resplandecente em que saíram juntos.
Bonitinha, sim, mais nada.
Um pouco burrinha, também, embora gostasse de empilhar livros na cabeceira da cama.
Da primeira vez que a conheceu, bi-blicamente, reparou ainda que o corpo da moça nem de longe lhe fazia justiça ao rosto bonitinho.
Sobrava uma gordurinha aqui, um mapa em alto relevo de estrias acolá. Ainda assim, o sotaque era genuíno.
Era argentina.
Sua amante argentina.
Para encurtar a história, e pela segunda vez, ela certamente o teria levado à falência, como toda amante argentina que se preza, e ele teria adorado, não fosse um detalhe.
Acontece que fidelidade era um termo que não constava no dicionário da moça, tanto no português como no castelhano. E aproveitava a mais não poder para engordar a poupança com encontros a torto e a direito no apartamento que ele lhe montara.
Ele pode ter sido o último a saber, mas soube, eis que os amigos existem, entre outras, justo para essas coisas - primeiro se aproveitam, depois contam.
Tramou, então, uma vingança perversa.
Um belo dia, no meio da semana, convidou-a para um churrasquinho no Parque Barigüi.
Mas não levou carne.
Mo parque escolheu a churrasqueira mais distante, mato a dentro.
Alí, a pretexto de um jogo amoroso, não teve dificuldade para dominar sua amante argentina, amordaçá-la e amarrá-la.
Do porta-malas do carro tirou um ferro desses de marcar gado, com um "V" na ponta, e pôs no fogo.
Quando o ferro estava incandescente, tres vezes o aplicou no rosto da moça, uma na testa, duas nas bochechas.
Quando ela voltou a si do desmaio, ele proclamou: "Pronto, agora e para todo o sempre está marcada com três "V". "V" de vaca, de vagabunda e de vigarista.
Deixou a moça ali mesmo e foi para casa.
Naquela mesma noite, lua nova, a última amante argentina foi vista zanzando pelo Passeio Público.
Da "Ilha dos Namo-rados"pulou para o fosso de água suja, morreu afogada.
Dia seguinte, na roda de curiosos, o espanto da doméstica que por ali passava:
- "Morreu como, em água assim tão rasa?"
Mais rasa foi a cova que lhe deram no enterro de indigente, lá no Santa Cândida, longe, muito longe, do Santo Cruzeiro das Almas.

J.J Figueiredo Lima é engenheiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário