quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Histórias de Curitiba - Boca de Fornalha

 

Histórias de Curitiba - Boca de Fornalha

Boca de Fornalha
Ennio Marques Ferreira

Já havia traçado um esboço desta narrativa alguns meses atrás.
As anotações, que se perderam, estavam em uma pasta de documentos no assento de meu carro.
Este, por sua vez, havia sido deixado, certa manhã, em um desses movimentados estacionamentos do centro da cidade.
Pois não é que um distraído cidadão infiltra-se com maior tranqüilidade no citado estabelecimento e leva o carro com pasta e tudo, numa boa, sem ser ao menos presssentido pelos zelosos funcionários da casa? O furto do meu Gol, porém não passa de um mero apêndice da historieta principal.
Esta se passa na Curitiba de 1954, quando a cidade era ainda uma tranqüila capital interiorana, mas já com evidências de uma apreciável qualidade de vida que bons e sucessivos prefeitos souberam preservar e aprimorar.
Por volta das nove e meia de uma noite de inverno, havia deixado meu pequeno apartamento de solteiro na Saldanha Marinho, disposto a enfrentar uma sessão qualquer de cinema.
Ninguém nas ruas, apenas meus passos faziam algum ruído.
Ar parado, céu limpíssimo, frio seco penetrando por baixo das calças, prenuncio certo de geada no dia seguinte.
Alcançando a Visconde de Nácar, antes de cruzar a Carlos de Carvalho, seguia pela calçada oposta ao escuro prédio de apartamentos que ali existia na época.
Era um bloco compacto, de uns três andares, construção não muito requintada, que ocupava, se não me engano, todo o lado direito da quadra.
Em dado momento, ao me voltar para o tal prédio, fui surpreendido por uma visão no mínimo surrealista: entre as centenas de janelas fechadas, enfileiradas, estava uma, no primeiro pavimento, escancarada e vibrando em chamas.
Uma verdadeira boca de fornalha, um nítido retângulo amarelo-fogo em contraste com a escuridão da fachada.
Perplexo, meu primeiro pensamento foi chamar os bombeiros.
Uma possível demora porém, poderia trazer resultados trágicos.
Resolvi, então, procurar ajuda na redação de "O Estado do Paraná", que ficava bem perto, na Vicente Machado a poucos metros da Praça Osório onde, naquela hora, estariam fechando a edição do dia seguinte.
Aos berros, conclamei o pessoal do jornal a me acompanhar.
Seguiram-me, apressadamente, o Freitas, o Puglieli, o Aurélio e vários outros.
Atguns minutos após estávamos arrombando a porta do apartamento a ponta-pés.
Adiante da sala, o quarto da frente onde línguas de fogo lambiam o sofá-cama, cortinas, vernizianas e ameaçavam outros móveis.
Muito esforço e muitos baldes d'água foram necessários para que o grupo debelasse o fogaréu. O vilão teria sido um cigarro que, deixado aceso, caíra do cinzeiro, fazendo o estofamento do sofá arder vagarosamente, antes que as chamas surgissem e se alastrassem.
Ainda hoje, ao me recordar deste insólito e nunca antes divulgado episódio - não percebido nem mesmo pelos vizinhos do lado -fico a imaginar a incrível surpresa do notívago morador, chegando de madrugada, ao deparar com a porta violentamente arrombada, seu quarto destruído pelo fogo e pela água, sem ninguém para dar qualquer explicação...

Ennio Marques Ferreira é crítico de arte e foi diretor do Museu de Arte do Paraná.

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