sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Histórias de Curitiba - A caninha Seu Gaspar

 

Histórias de Curitiba - A caninha Seu Gaspar

A caninha Seu Gaspar
Mauro Goulart (in memorian)

O Salsicho Bettega, o Mareei e o Amadeu Beduschi constituíram uma empresa para comercialização de uma pinga fabricada pelo pai do último, na cidade de origem, a cachaça foi batizada como "Caninha Seu Gaspar", e de todos que dela beberam sempre ouvi elogios.
Contudo, este empreendimento estava fadado ao fracasso do ponto de vista capitalista. Vários seriam os motivos.
Para começar, quem conhecia os tres sócios sabia muito bem que nenhum deles tinha pendores gerenciais, que mesmo as micro-empre-sas necessitam. O Salsicho Bettega, radialista, tinha um programa radiofônico sobre turfe e variedades; o Mareei, conhecido boêmio (provavelmente o único verdadeiro boêmio que Curitiba jamais teve), foi convidado para o negócio pois era hábil em esvaziar copos e garrafas; o Amadeu Beduschi, médico, pioneiro na aneste-siologia no Estado, até hoje em atividade, entrou para o negócio pois, como se dizia, "seu pai ti-nha a mina do produto".
Além desta fatal debilidade que os três possuíam para o mundo dos negócios, acrescentou-se outro fator, tão importante quanto o anterior, para gerar uma situação falimentar. Às sextas-feiras reuniam-se na sede da empresa os tres sócios e vários convidados para uma alegre churrascada.
Isto era a verdadeira catástrofe empresarial.
Pois, por mais que os funcionários se esforçassem durante a semana, não eram capazes de engarrafar tanta pinga quanto era consumida na sexta-feira.
Mas se lucros monetários não existiram, o empreendimento valeu pelas fabulosas churras-cadas e os homéricos porres que os comensais tomavam, de tal sorte que participar de um destes eventos de sexta-feira era algo dis-putadíssimo.
Ser convidado para uma das churrascadas da Caninha Seu Gaspar era a verdadeira glória.
Existiam alguns habituais, como era o caso de um cidadão que tinha uma das pernas amputada e usava uma perna de pau e que, à boca pequena, era chamado por uns de "Pirata"e por outros de "Perninha". Tais como ele, haviam outros que não careciam convite, iam quando queriam e eram bem recebidos e se serviam de carne e, principalmente, do "branco líquido catarinense", sem poupar a generosidade.
Normalmente, depois de uma certa hora, a sede da Caninha Seu Gaspar transformava-se em algo semelhante aos campos de batalha imortalizados pelo cinema neo-realista italiano, tal o número de corpos espalhados pelo chão.
Certa ocasião, depois de "abater um boi grande", de "desen-garrafar toda a produção engarrafada na semana", todos os participantes foram ao solo.
Pairou o silêncio e pouco a pouco o brasi-do da churrasqueira foi cedendo lugar às cinzas.
Lá pelas tantas, o Marcel acordou sentindo sede e uma enorme vontade de comei mais um naco de carne. Saciou a sede e, notando que a brasa era insuficiente para assar qualquer coisa, saiu à cata de carvão ou lenha
para avivar o fogo.
Infrutífera busca. Não havia nem carvão, nem lenha.
Foi quando seus olhos pousaram na plácida figura do "Perninha"que, graças aos efeitos da Caninha Seu Gaspar, dormia candidamente, como que embalado por anjos.
Todos foram acordados pelos gritos que quase geraram tumulto e ninguém conseguia entender exatamente o que estava acontecendo: "Cadê minha perna, cadê minha perna!"e de outro, o Mareei com olhar espantado comendo um belo, e bem assado, pedaço de picanha.
Devia estar pensando: "Quem pode dar tanta importância para um pedaço de madeira?"

Mauro Goulart, era médico.

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