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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A noite da Paixão – Conto de Dalton Trevisan

 

A noite da Paixão – Conto de Dalton Trevisan

Nelsinho corria as ruas à caça da última fêmea. Nem uma dona em marcha vagabunda, os bares apagados.

Na estreita calçada esbarrou com dois vultos, depressa levou a mão ao bolso. Haviam-no apalpado com dedo indiscreto, não eram ladrões. Voltou- se e lá estavam, gesto lânguido, voz melíflua:

– Onde vai, bonitão?

Aqueles dois chamariam bonitão a qualquer bicho da noite. Dobrando a esquina, deu com a pracinha do bebedouro antigo – onde as mariposas?

A igreja quase deserta, imagens cobertas de pano roxo. Sem se persignar, Nelsinho avançou pela nave, o ranger da areia debaixo do sapato. Arriado de sua cruz, ali o velho Cristo, entre quatro círios acesos. No banco as megeras, véu preto e preta mantilha, olho à sombra da mão na testa. Uma prostrou-se no cimento, depositou beijo amoroso na chaga do pé.

Nelsinho escolheu a nota menor, deixou-a cair na bandeja. Espreitado pelas guardiãs ferozes do defunto, completou o giro, sovina de beijo. Observou a imagem pavorosa e reprimiu, não soluço de dor, engulho de náusea: Por tua culpa, Senhor, todos os bordéis fechados. Pomposa boneca de cachinho. Falas de sangue, ó Senhor, e não sangras – as viúvas nem espantavam as moscas na ferida aberta.

Escândalo das beatas, inclinou-se a visitante, saía preta, blusa verde, casaco vermelho. Cabeleira solta no ombro, cada gesto um estalo de couro, beijou o pé trespassado. Não olhou para Nelsinho; por mais que se ignorassem, eram os escolhidos. O herói atravessou o templo, deteve-se nos três degraus. Com a estiagem, brilhavam no largo abandonado as lisas pedras negras. A seu lado o furtivo farfalhar da courama. Fixando em frente, ele murmurou:

– Onde é que a gente vai?

– Ali na esquina. Pequena pausa.

– Quanto tempo?

– O resto da vida, Madalena.

Desceram os degraus, a bela transferiu a bolsa para o ombro esquerdo, enfiou-lhe a destra no braço. Ele indicou um casarão decrépito:

– Sabe quem mora aqui? A grande paixão da minha vida – uma tal Marta.

Casada com um bancário, Petrônio.

– Não fique triste, querido. Todinha do amor. Foi bem de Páscoa?

– De Páscoa ainda não fui.

– Ah, eu pensei. . . Não é hoje a Páscoa?

– Hoje é sexta-feira, minha flor. Que horas são?

– Quase onze.

– A própria noite da paixão. Amanhã é Aleluia.

– Que a gente ganha ovos?

– Dia de malhar Judas. Porventura sou eu, Senhor? Envergonhada, apertou-lhe o braço:

– É, sim, meu bem.

No fundo do corredor uma harpia nariguda atrás da mesa.

– Vão pousar?

Os quartos da frente reservados por meia hora.

– Meu tempo está no fim.

A velha pediu à dama de couro a revista, que repontava da bolsa, e apanhou no escaninho a chave número nove. Nelsinho estendeu uma nota para a bruxa, apoiou-se na escrivaninha. A revista disputada entre as duas até que, sem aviso, a patroa correu o tampo e prendeu-lhe o dedo.

– Machucou, bem? – acudiu a velha, jubilosa, revista na mão.

– Não – com uma careta de dor soprava a unha.

– Foi sem querer.

Entregou a chave à sua companheira e o troco para ele. Lá se foram os dois para o famoso quarto, a cama de casal encostada à parede. Ao canto, a bacia no tripé; debaixo dela, o jarro com água. Cabelo no olho, a mulher não se mexia.

– Que foi?

– Tão triste que podia morrer.

A patroa confiscara a fotonovela, nunca mais iria devolver.

– Devolve, sim.

– Não é a primeira vez.

Ele suspendeu-lhe o queixo. Escondia o rosto, até que o olhou e sorriu, amorosa. Com susto, descobriu que era banguela. Nem um dente entre os caninos superiores – terei de beber, ó Senhor, deste cálice?

Para esconder a perturbação foi fechar a porta. Mal se voltou, ela veio ao seu encontro, envolvendo-o em couro úmido e carne rançosa. Que será de mim, Deus do céu? Pobre consolo, imaginou a dona mais fabulosa na cama. Esperança de ganhar tempo:

– Não tem medo, minha filha?

– De você, querido?

– Castigo do céu. A noite santa. O amor é maldito.

– O perdão dos meus pecados. Lá na igreja.

– Não minta, vai para o inferno. Quantas vezes entrou e saiu da igreja? À caça de homem.

– Deus me livre! Agarrou-lhe a cabeça:

– Tão mocinho! Lábio grosso de mulher… Beijar tua boca.

– Se fosse o diabo? Perder a sua alma?

– Conversa é essa? Não gostou de mim. É isso?

Olho frio e perverso que, a uma palavra indiscreta, se incendiaria de fúria. O herói acovardou-se – a salvação é apagar a luz.

Desvencilhou-se dela, sacou o paletó, sentou-se na cama. A tipa conchegou-se, repuxou-lhe a cabeça, entrou a mordê-lo: ali no pescoço a falha dos dentes.

– Te morder todinho.

– Faça isso não – suplicou, espavorido.

– Tirar sangue!

Montada nos seus joelhos, completamente vestida, os pinotes faziam estralar a cama.

– Tome e coma: isto é o meu corpo.

– Você o amigo da Joana?

– Nem Joana nem Suzana.

– Então é meu.

Nelsinho abriu-se em sorrisos – eis o homem! Não quis perder o entusiasmo, pôs-se de pé. Abriu o laço da gravata. Ela puxou-o pela camisa e, à sua mercê, voltou a cavalgá-lo, sela nova rangendo. Ao retirar o casaco, a desgraçada fedia que era uma carniça. Inclinou-se sobre ele, o cadáver no caixão velado pela última carpideira.

– Teu corpinho feito para o amor?

– Esta noite, minha filha, o amor é pecado. Esta noite ele gera monstros.

– Tem a lábia do diabo.

– Tu o disseste – e entregou-se ao sacrifício.

– Quer que eu faça?

Agarrada a ele, sentados na cama, a saia acima do joelho, esfregava-lhe a perna grosseira e áspera.

– Que eu faça? – gritou terceira vez.

Na agonia do amor, sofresse até o último alento.

– Faça tudo, querida.

– Tudo o quê?

– O que sabe.

Apressada, desabotoava-lhe a camisa. Riscou-lhe nas costas a unha afiada – a do mindinho mais longa. Antes que refletisse no mistério, a sua voz impaciente:

– Apago a luz?

Cheio de medo, pediu que não. Debaixo dela, debateu-se em desespero:

– Espere um pouco. Perdi a abotoadura.

Tirou a camisa, de calça e meia. Foi acariciar-lhe o seio. Espantou-se da expressão distante, já desinteressada da cerimônia.

– Não esqueceu?

– Ah… Não te paguei?

Alcançou no bolso da calça uma nota, que ela escondeu no casaco. Sem mais demora, livrou-se do suéter. A decisão dela contagiou-o: Faça-se o que deve ser feito.

Diante da penteadeira, a bela admirou a imagem grotesca do poder e da glória:

– Tiro tudo?

Desatava o nó do cadarço, ergueu a cabeça:

– Tudo.

Ele subiu na cama para não arrastar a calça no pó. A mulher dobrou uma perna, depois outra, safando-se da saia preta de couro – a coxa com nervura azul de varizes. Sentou-se para enrolar as meias. Deixou cair o sutiã. Foi deslumbrar-se no espelho, o seio na mão. Buscou ali o olhar de Nelsinho – depressa ele o desviou. A criatura deu volta à cama. Enroscou-se nele, as unhas pelo corpo, estremecendo-o todo. Enfiou-lhe a língua na orelha – Que se faça tua vontade, Senhor, e não a minha.

Ao vê-lo deitado, grudou-lhe a boca no peito, lambeu a maminha: Poxa, isso que é mulher! Desceu a cabeça, sempre a beijar e, na altura do umbigo, rincho obsceno. Aos beijos tornou ao pescoço, logo arrepiou caminho e, no umbigo, outra vez o relincho de satisfação. Preparando para o sacrifício, espargia no corpo o bálsamo aromático. Agora fazia-lhe cócega no pé, escondendo-o no longo cabelo. O focinho rapace farejava a prenda secreta.

– Não morda.

Naquele instante ela abocanhou o queixo. Só sentia a língua. Aos poucos babujava e titilava ao redor da pombinha do amor – vai morder?

– Pare! – resistiu com toda a força. – Não faça isso.

Ela voltou a sugar o queixo. O herói alerta ao vazio dos dentes. Aterrado, defendeu-se com a mão no pescoço. Súbito a mulher recuou a cabeça. Cobrou fôlego, veio de novo, fungando. Quis morder, ele não deixou. Suspensa nos braços, o cabelo arrastando na colcha, todinha nua. A sacolejar o estrado, esfregava-lhe no peito os seios volumosos. Também nu, de meia preta, o rosto lambuzado de mil beijos. Sem jamais colher a flor do desejo, ela urrou de frustração – cravou-lhe os caninos no pescoço. Nelsinho alçou-se nas mãos, com ela aferrada ao ombro.

– Tiro sangue.

– Agora chega.

– Você não escapa – e encarniçava-se na perseguição feroz. Último alento, berrou espavorido:

– Tem água aí? – Mal se acreditou livre, suspirou com alívio. – Encharcado de suor.

A criatura jogou-lhe uma toalha. Trouxe o jarro com água, retirou uma bacia de baixo da cama. Ele deu-lhe as costas, esfregava as mãos no sudário viscoso, ouvia o chapinhar na bacia. Sentiu comichão no pé, o bicharoco pedia a toalha. Quando percebeu, instalada outra vez a seu lado. Pudera, reclamava o beijo.

– Estou perdido! – gemeu do fundo da alma.

Ela começou tudo de novo. Corria a unha na espinha, ele se retorcia inteiro. Pastava-lhe o pescoço, lambia o mamilo, com sopro e relincho.

– Pare com isso! – E ao ver-lhe a expressão medonha: – Mais devagar.

– Antes queria, não é?

Todos dormem, ninguém me acode: agora fecho os olhos e desmaio de tristeza.

– O galo cantou três vezes. Emburrada, a mulher coçava as perebas. Não se passou um minuto, a deslizar-lhe a mão furtiva no peito, logo na barriga. Soergueu-se no cotovelo:

– O corpinho dele. Tão magro e branco. O do outro.

Apoderou-se da mão, dava-lhe mordida ligeira. Nelsinho sofria o oco dos dentes. Implacável, ela insistia no encalço da boca. Aos poucos abateu-lhe a resistência – Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

Em cheio a ventosa obscena, ó esponja imunda de vinagre e fel. – Está consumado.

Um grito selvagem de triunfo, beijava-o possessa, olho aberto. Ele apertou a pálpebra, não ver a careta diabólica de gozo.

Cada um levantou-se de seu lado. Já vestido, abriu a porta, sem se despedir. A mulher não envergara a primeira peça de couro.

O relógio da torre anunciava o fim da agonia. Na rua deserta as badaladas terríveis rasgaram o silêncio de alto a baixo. Nelsinho suspendeu o passo, a terra fugia a seus pés:

– Sou inocente, meu Pai.


Debaixo da Ponte Preta – Conto de Dalton Trevisan

 

Debaixo da Ponte Preta – Conto de Dalton Trevisan

Noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, dezesseis anos, solteira, prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta, atrás da Ponte Preta. Na linha do trem foi atacada por quatro ou cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Então violada por um de cada vez e abandonada entre as moitas.

Seu choro atraiu um guarda-civil, que a conduziu até a delegacia.

A menina nunca tinha visto os homens, não sabia a que atribuir o assalto. Nem qual foi o primeiro, agarrada e derrubada, a cabeça coberta. Arrastada pelo chão, fortes dores nos seios e nas partes. Que não gritasse por socorro, barbaramente espancada. Apresentou-se com saia de seda preta e blusa vermelha de malha, sujas de lama. No corpo, além de muitas feridas, folha seca, grama e barro. A hora lá pelas dez ou onze.

Miguel de Tal, quarenta anos, casado, foguista, largou o serviço às dez e meia. Ao cruzar a linha do trem, avistou três soldados e uma dona em atitude suspeita. Sentiu um tremendo desejo de praticar o ato. Aproximou-se do grupo e, auxiliado pelos soldados, agarrou a desconhecida, retirando- lhe a roupa e com ela mantendo relação, embora à força. Derrubou-a e, para abafar os gritos, tapou-lhe o rosto com o casaco de foguista. Saciado, ajudou os soldados que, cada um por sua vez, usaram a moça, observados a distância por alguns curiosos, até que dois deles também se serviram da negrinha.

Miguel, arrependido do mau gesto, se ofereceu para casar com a menina, só na delegacia soube chamar-se Ritinha, isto é, tão logo apronte os papéis do desquite, de momento é casado.

Nelsinho de Tal, menor, treze anos, estudante, na noite de vinte e três, conversando debaixo da Ponte Preta com seu primo Sílvio e dois rapazes, deparou três soldados e um paisano atacando uma negrinha, a qual foi atirada ao chão, em seguida, desfrutada pelo civil e, por causa dos gritos, tinha um casaco na cabeça. Ele chegou-se meio desconfiado. Depois do paisano, a vez dos três soldados e, afinal, a de Nelsinho, seguido de Antônio.

Acabada a brincadeira, voltavam satisfeitos para casa, foram presos e conduzidos à delegacia. Nelsinho se confessa contrariado, atribuindo sua atitude à pouca idade que tem, ações como a que praticou apenas servem para estragar o futuro de um jovem.

Alfredo de Tal, vinte anos, solteiro, soldado, achava-se à noite debaixo da Ponte Preta, na companhia dos colegas Pereira e Durval. Após algum tempo, Durval abordou uma menina, com quem se dirigiu ao mato próximo. Logo Alfredo e Pereira seguiram o companheiro e, um depois do outro, desfrutaram a rapariga. Prestes a partirem, um indivíduo se apresentou como guardião da estrada e, em troca do silêncio, exigiu que segurassem a moça. Então a arrastaram para lugar escondido, onde ninguém escutasse os gritos. Chegaram dois rapazes, um deles de treze anos e, ajudados por todos, se aproveitaram da negrinha. Como era tarde, Alfredo retirou-se com os colegas para o quartel. Só na manhã seguinte soube da confusão, em vista da ordem para comparecer à delegacia.

Durval de Tal, dezenove anos, solteiro, soldado, achava-se com dois amigos perto da Ponte Preta, onde esperava alguma mulher, para com ela passar a noite. Apareceu uma fulana, com quem foi para o mato, a menina gostou do seu cabelo loiro e olho azul. Aproximaram-se os colegas, um de cada vez abusou da pequena.

De repente surgiu um cidadão de maus bofes que, intitulando-se guardião da estrada de ferro, demonstrou grande interesse em participar da festinha, para desgosto da menina, que não se agradou do seu nariz chato, bigode ralo, dente estragado. Arrastaram a negrinha, onde os gritos não fossem ouvidos. Chegaram dois rapazes que, auxiliados por todos, serviram-se à vontade. Satisfeitos, retiraram-se Durval e os colegas para o quartel.

Pereira, dezoito anos, solteiro, soldado, encontrava-se às dez da noite na Ponte Preta, com seus colegas Alfredo e Durval, quando por ali passou a menina, tendo um deles exclamado: Que morena linda. A qual parou e perguntou o que havia dito. Começaram a conversar, Alfredo a convidou para dormirem juntos. Ela respondeu: Este loiro tem tempo. Não ia dormir com ninguém, mas podia acompanhá-la. Alfredo saiu com ela, seguidos a distância pelos outros. No muro da estrada de ferro, estacaram. Feita a combinação, entraram no mato. Ela quis dinheiro, não a puderam pagar, estavam de bolso vazio. Saíam do campinho, chegou o guarda da estrada: Já que foi com os praças, tem de ir comigo. A mocinha acudiu: Olha o azar e Sai, fedor.

O morenão enfarruscado insistiu em desfrutar a menina, sendo repelido. Foi derrubada na grama. O tipo afogou-lhe o pescoço, ela chorava e se descabelava de gritar.

Sílvio de Tal, menor, quinze anos, estava com o primo Nelsinho debaixo da Ponte Preta, viu quando a menina passou por ali. Os soldados disseram algumas gracinhas. Um deles a convidou para ir a um quarto, ela respondeu que no campinho era melhor. Foram todos para o campinho. Até que apareceu um paisano e insistiu em abusar da mocinha.

Ao longo da estrada de ferro, Miguel deu com três soldados e uma vagabunda, que com eles mantinha relação. Sentiu grande vontade de participar da brincadeira, propôs o negócio para a mulher. Esta ofendeu-lhe os brios de homem ao injuriá-lo de – Cafetão, cagüeta, corno manso. Indignado, decidiu provar que era homem. Segurou-a com o auxílio dos soldados, mas não praticou o ato, em vista do estado nervoso. Os soldados taparam a boca da menina a fim de abafar os gritos.

O primeiro a desfrutar a mocinha foi Durval, o segundo Alfredo, o terceiro Pereira, o menor Nelsinho foi o quarto e ele, Miguel, o quinto. Ritinha submeteu-se de livre e espontânea vontade ao desejo dos outros, quando chegou a sua vez quis se negar, agarrando-a para não ficar desmoralizado perante a família.

Ritinha estava chorando debaixo da Ponte Preta. Não sabia quem lhe havia feito mal, um dos soldados lhe enfiou a túnica na cabeça. Foram apontados pelo moleque José que de longe viu tudo. Quinze dias que o pai de Ritinha morreu de tumor na barriga. Deflorada havia um mês por um soldado loiro de nome Euzébio.

A casa é de madeira pintada de amarelo. A patroa uma senhora gorda, baixa, morena. Ritinha limpa a casa, lava a roupa, faz todo o serviço. O marido da patroa chama-se Artur. Ela cuida da filhinha do casal. Quando a criança chora, suspende-a de cabeça para baixo, a pestinha perde o fôlego, bem quieta. A patroa deu-lhe um sapato velho e vendeu-lhe dois vestidos, que descontou do ordenado.

Ela não pediu dinheiro aos três soldados, um deles muito simpático, cabelo loiro. Chegou o guardião e disse que pulasse o muro, na estrada de ferro era proibido passar. Ritinha saltou o muro e, atrás dela os quatro homens, logo seis ou sete.

A menina se pôs a chorar, o que atraiu o moleque José, espiando de longe.

O guarda mal-encarado bradou: Tem de conhecer homem senão te mato. Primeiro foi o Durval, depois o Alfredo, em seguida o Pereira, agora a minha vez, oba! Ritinha começou a gritar e quis correr, foi agarrada pela perna.

Os tais a derrubaram do outro lado do muro. Fizeram o que bem quiseram, largada bastante ferida no seio e nas partes, até que o guarda-civil a encontrou, queixosa de frio e dor.

O guarda-civil Leocádio, ao passar debaixo da Ponte Preta, viu uma negrinha chorando.

Menino caçando passarinho – Conto de Dalton Trevisan

 

Menino caçando passarinho – Conto de Dalton Trevisan

– ADVOGADO é padre, minha senhora. Pode confiar.

– Eu sei, doutor Nelson.

– Não se acanhe. Conte a verdade. Enganava seu marido, não é?

– Deus me livre!

– Nesta citação a senhora é culpada.

Dez anos casada. Um par de filhos. Seis meses atrás, uma perda. O resguardo, descansar na casa da mãe. De volta, deu com porta e janela trancadas. Na rua, recebeu a contrafé do oficial-de-justiça: desquite, alegação de adultério.

– Quem é esse João Maria, citado como cúmplice?

– Um compadre, doutor. Esse não vai contra mim.

Luto da mãe, o vestido preto colante, broche de borboleta. O marido tinha horror da sogra. Não lhe dirigiu a palavra nos três meses em que a velha se hospedou na casa, doente da bexiga. Tenha pena dela – suplicava a mulher. E você? Tem pena de mim?

Óculo escuro: olho roxo de um murro.

– Homem fraco na cama é forte fora dela.

– Como disse, doutor?

– Conte os fatos, minha senhora.

Passeio no campo, o marido, ela e as filhas. Desde que se negava, alegando mal de mulher, o bruto queria agarrá-la à traição. Atalho no bosque, mandou as crianças na frente. Derrubou-a na grama. Com os gritos, as crianças voltaram, nele batiam com a sombrinha: Não surre a minha mãe! Não afogue a minha mãe!

– Cuidar com carinho, dona Olga, de sua defesa.

Na vez seguinte: assinatura da procuração, os preâmbulos. Tão jovem, não definhava longe do marido? A separação de corpos, morando com o pai

– A senhora anda nervosa?

– Nem queira saber, doutor.

– E antes de casar?

– Era bem calma. Agora sofro dos nervos – às vezes tenho ataque! Ai, que beleza: ela tem ataque.

– A senhora… delirava, dona Olga? Olhinho baixo: Sim.

– Um bem que Deus lhe concedeu. Sabe, o delírio, o que há de maravilhoso. A mulher tem convulsão, dona Olga.

– É fato científico. Não se acanhe. Advogado em serviço não tem sexo.

– Eu sei, doutor.

– Aqui no escritório muita interrupção. Levo os papéis a um lugar sossegado. No hotel da estação, está bem?

– Sim.

Esperou de quinze para as quatro até quatro e meia – assustei a pombinha, essa não volta mais.

– Dona Olga. Por que não foi?

– Eu fui. O doutor não estava mais. Negaceava, a bichinha, sem dizer que não. No escritório, após o expediente, discutir a pensão do marido para os filhos. Seis em ponto, Olga entrou na sala de espera. O herói fechou a porta e investiu.

– O doutor era um ídolo. Pensa que mulher separada não é honesta?

– Um beijinho só.

– Olhe que eu grito.

Picaria – só um pouco – se abrisse a porta. Ligeiro beijo roubado, a que não correspondeu.

– Prometo me comportar.

Com a porta aberta – imagine se alguém! – insistiu no assalto. Passos na escada, o elevador ora subia, ora descia. Sentados no sofá, a bela concedeu- lhe a mãozinha, que cobriu de beijos inflamados.

– Olhe que eu saio.

Ia sentar-se na outra cadeira. Ele arrastava-a para o sofá. Luta silenciosa e feroz: os dedos arranhados pela unha afiada. Despedida cerimoniosa na porta:

– Passe bem, doutor.

– Os seus problemas eu resolvo. A senhora tenha confiança. Surgiu-lhe o marido uma tarde no escritório:

– Mais algum papel para assinar, doutor?

– Era só.

– Desconfio dela, doutor. Falam muito. Anda enfeitada demais.

– É moça direitinha. O senhor tem prova? Sabe de fato concreto?

– Fato, não sei, doutor. Desconfiança a gente sempre tem. A mulher capricha na roupa de baixo, que o homem se cuide.

Saia preta e blusa branca de rendinha, braço à mostra – uma cicatriz de vacina meio escondida. A moça lia a petição, o doutor lhe afagava o bracinho. A fingir que lia, o rosto abrasado de excitação.

– Vamos lá?

– Lá não dá, doutor. Lá não dá certo. Que o senhor quer de mim? O homem só faz as coisas por interesse. É esse o preço do homem!

Afogueada, a penugem do braço arrepiadinha. Ele não se conteve: alisou- o de alto a baixo com as duas mãos.

O doutor era influente – não sabia de uma vaga de professora?

– Já se considere nomeada, dona Olga.

À saída, ela fez biquinho com o lábio e, estando de salto alto, forçado a se pôr na pontinha do pé.

– Se der, eu vou. Não sei se posso. Eu não devo.

– Então às cinco?

Choveu bem na hora. Esbarrou no pai dela, o velho farmacêutico.

– Eu mando ela sem falta. O doutor pode confiar. Olga reagiu, que ele cambaleou de costas.

– Não adianta. Eu não quero.

– Então tudo acabou. O caso foi processado. Quer ir para casa, vá – e arquejava, de fôlego curto.

Entre os artigos de lei, a se lembrar do bracinho arrepiado, o olho amarelo de quem sofre do fígado – eu tenho ataque, doutor! Recado urgente pelo farmacêutico que ela o esperasse em casa, às duas da tarde.

Bateu palmas na porta dos fundos. Olga assomou à janela.

– Entre, que já desço.

Abriu a porta: estaria o diabo do velho? À espreita, quem sabe, atrás da cortina? Ela desceu a escada, repuxando a saia no joelho. O vestido caseiro, em chinelinho.

Imediatamente a agarrou aos beijos e abraços.

– Louco por você.

Abatida, sem pintura, de olheira – ai, mãe do céu, de olheira! Que dizia ela? Não mais que balbucios:

– Sim, doutor – e revirava o olho. – Ai, doutor.

Sempre a resguardar-se das três mãos. Uma hora inteira de beijos – o dentinho perfumado.

– Sossegue. Papai entra de repente. O senhor é doido?

Iniciação ao beijo de língua. O vestido afogado no colo, ele não podia espirrar o seio. Mordiscava a ponta da orelha.

– Sabia o que eu queria?

– Sim.

– Desde quando?

– Desde a primeira vez. Da conversa que advogado é padre.

– Ai, Olga. Me beije.

– Aqui não dá. Se papai chega?

– As crianças?

– Mandei no vizinho.

– Deixe. Mais um pouco. Só um pouco.

– Onde já se viu? É loucura.

– Conhece a minha posição. Sou casado. Houvesse risco, o primeiro a não querer.

À roda da casa, fingia coçar o nariz, com a mão no rosto. Na hora combinada, surgiu pressurosa e tossindo, lencinho na boca.

Deu volta à chave. Ela caiu-lhe nos braços, toda trêmula. Nem falar podia, tão assustada. Desabotoava o casaquinho – cuidado, querido, o pregador! Ele arrancou a gravata. Aos cochichos – já era hábito. Bem o marido tinha razão: a maravilhosa roupa de baixo – sedas e rendas! Aos beijos, de pé. Aos beijos, sentados no sofá. Deitados no tapete, rolando.

– Quer que morda ou beije?

– Sim.

– Beije ou morda?

– Sim. Ai, sim. Ai, sim.

– Abra o olho.

– Gema comigo, anjo. Agora.

O herói gemeu. Ela o acompanhou em tom mais baixo.

– Ai, ai. Eu morro.

Estirada no tapete, bem quieta, a combinação azul acima do joelho.

Ele abotoou o paletó, acendeu cigarro. A bela mordia um grampo, a observá-lo no espelho:

– Mais uma para tua coleção?

– Você é a única.

Foi introduzir uma nota na bolsa.

– Não sou dessas.

Esperou-a no portão dos fundos. No quintal vizinho, um menino caçava, atiradeira em punho e olhar perdido. Gente na rua: a negra velha, um soldado discutia com o barbeiro.

Saltinhos saltitando na pedra, ele tossiu três vezes.

– Que imprudência!

De saia xadrez, blusa de lã. Fechada a porta, dela o primeiro beijo:

– Obrigada, meu amor. Pode o que quiser. Agradecida pela nomeação, despiu-se a toda pressa. Ele, em cueca e meia preta:

– Fique nua.

O seio róseo empinadinho. Já ritual:

– Morda ou beije?

– Sim – a mania de repetir sim, sim. Como é que um bruto desprezava dona tão querida?

Suspiros e, ao apertá-lo nos braços, o cheiro capitoso de égua trêmula.

– Se não corro me atrasava. Bem louca. Você me deixou assim.

– Com o João não fazia… isso?

– Credo! Isso nunca aconteceu.

O herói beliscava o biquinho do seio inchado.

– Teu marido como é?

Um apressado, procurava-a sem aviso; em seguida dava-lhe as costas.

Não ficasse mal acostumada – um trapo sujo atirado no canto.

– Tem me seguido. Não é arriscado vir aqui? Estou com medo.

– Me beije. Não fale.

– Vai enjoar de mim? O homem consegue o que quer. Depois corre atrás de outra.

– Me beije. Ai, Olga. Não fale. Abra o olho. Grande olho amarelo agora bem vermelho. Acuda, Olguinha, me deu ataque.

– Fique de olho aberto.

À saída, assustou-se com o menino trepado na ameixeira.

– Tem gente aí.

– Boba. É um menino.

– Se ele me vê?

Menino caçando passarinho é cego para o que não for passarinho.

Penélope – Conto de Dalton Trevisan

 

Penélope – Conto de Dalton Trevisan

Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.

Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.

Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.

Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.

Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.

— Que vai fazer?

— Queimar.

Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.

A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.

— Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.

O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.

Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:

— Não vai ler?

Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.

— Já sei o que diz.

— Por que não queima?

É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.

Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.

Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?

No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras… Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou.

Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão — no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente… Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.

Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca… Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.

Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.

Afinal compra um revólver.

— Oh, meu Deus… Para quê? — espanta-se a companheira.

Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha.

Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher.

De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?

Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.

Havia um primo no passado… Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma.

Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la.

No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.

Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?

Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca.

Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto.

Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.

Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.

Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas… Por engano na sua.

Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova.

Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta…

Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.