quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A noite da Paixão – Conto de Dalton Trevisan

 

A noite da Paixão – Conto de Dalton Trevisan

Nelsinho corria as ruas à caça da última fêmea. Nem uma dona em marcha vagabunda, os bares apagados.

Na estreita calçada esbarrou com dois vultos, depressa levou a mão ao bolso. Haviam-no apalpado com dedo indiscreto, não eram ladrões. Voltou- se e lá estavam, gesto lânguido, voz melíflua:

– Onde vai, bonitão?

Aqueles dois chamariam bonitão a qualquer bicho da noite. Dobrando a esquina, deu com a pracinha do bebedouro antigo – onde as mariposas?

A igreja quase deserta, imagens cobertas de pano roxo. Sem se persignar, Nelsinho avançou pela nave, o ranger da areia debaixo do sapato. Arriado de sua cruz, ali o velho Cristo, entre quatro círios acesos. No banco as megeras, véu preto e preta mantilha, olho à sombra da mão na testa. Uma prostrou-se no cimento, depositou beijo amoroso na chaga do pé.

Nelsinho escolheu a nota menor, deixou-a cair na bandeja. Espreitado pelas guardiãs ferozes do defunto, completou o giro, sovina de beijo. Observou a imagem pavorosa e reprimiu, não soluço de dor, engulho de náusea: Por tua culpa, Senhor, todos os bordéis fechados. Pomposa boneca de cachinho. Falas de sangue, ó Senhor, e não sangras – as viúvas nem espantavam as moscas na ferida aberta.

Escândalo das beatas, inclinou-se a visitante, saía preta, blusa verde, casaco vermelho. Cabeleira solta no ombro, cada gesto um estalo de couro, beijou o pé trespassado. Não olhou para Nelsinho; por mais que se ignorassem, eram os escolhidos. O herói atravessou o templo, deteve-se nos três degraus. Com a estiagem, brilhavam no largo abandonado as lisas pedras negras. A seu lado o furtivo farfalhar da courama. Fixando em frente, ele murmurou:

– Onde é que a gente vai?

– Ali na esquina. Pequena pausa.

– Quanto tempo?

– O resto da vida, Madalena.

Desceram os degraus, a bela transferiu a bolsa para o ombro esquerdo, enfiou-lhe a destra no braço. Ele indicou um casarão decrépito:

– Sabe quem mora aqui? A grande paixão da minha vida – uma tal Marta.

Casada com um bancário, Petrônio.

– Não fique triste, querido. Todinha do amor. Foi bem de Páscoa?

– De Páscoa ainda não fui.

– Ah, eu pensei. . . Não é hoje a Páscoa?

– Hoje é sexta-feira, minha flor. Que horas são?

– Quase onze.

– A própria noite da paixão. Amanhã é Aleluia.

– Que a gente ganha ovos?

– Dia de malhar Judas. Porventura sou eu, Senhor? Envergonhada, apertou-lhe o braço:

– É, sim, meu bem.

No fundo do corredor uma harpia nariguda atrás da mesa.

– Vão pousar?

Os quartos da frente reservados por meia hora.

– Meu tempo está no fim.

A velha pediu à dama de couro a revista, que repontava da bolsa, e apanhou no escaninho a chave número nove. Nelsinho estendeu uma nota para a bruxa, apoiou-se na escrivaninha. A revista disputada entre as duas até que, sem aviso, a patroa correu o tampo e prendeu-lhe o dedo.

– Machucou, bem? – acudiu a velha, jubilosa, revista na mão.

– Não – com uma careta de dor soprava a unha.

– Foi sem querer.

Entregou a chave à sua companheira e o troco para ele. Lá se foram os dois para o famoso quarto, a cama de casal encostada à parede. Ao canto, a bacia no tripé; debaixo dela, o jarro com água. Cabelo no olho, a mulher não se mexia.

– Que foi?

– Tão triste que podia morrer.

A patroa confiscara a fotonovela, nunca mais iria devolver.

– Devolve, sim.

– Não é a primeira vez.

Ele suspendeu-lhe o queixo. Escondia o rosto, até que o olhou e sorriu, amorosa. Com susto, descobriu que era banguela. Nem um dente entre os caninos superiores – terei de beber, ó Senhor, deste cálice?

Para esconder a perturbação foi fechar a porta. Mal se voltou, ela veio ao seu encontro, envolvendo-o em couro úmido e carne rançosa. Que será de mim, Deus do céu? Pobre consolo, imaginou a dona mais fabulosa na cama. Esperança de ganhar tempo:

– Não tem medo, minha filha?

– De você, querido?

– Castigo do céu. A noite santa. O amor é maldito.

– O perdão dos meus pecados. Lá na igreja.

– Não minta, vai para o inferno. Quantas vezes entrou e saiu da igreja? À caça de homem.

– Deus me livre! Agarrou-lhe a cabeça:

– Tão mocinho! Lábio grosso de mulher… Beijar tua boca.

– Se fosse o diabo? Perder a sua alma?

– Conversa é essa? Não gostou de mim. É isso?

Olho frio e perverso que, a uma palavra indiscreta, se incendiaria de fúria. O herói acovardou-se – a salvação é apagar a luz.

Desvencilhou-se dela, sacou o paletó, sentou-se na cama. A tipa conchegou-se, repuxou-lhe a cabeça, entrou a mordê-lo: ali no pescoço a falha dos dentes.

– Te morder todinho.

– Faça isso não – suplicou, espavorido.

– Tirar sangue!

Montada nos seus joelhos, completamente vestida, os pinotes faziam estralar a cama.

– Tome e coma: isto é o meu corpo.

– Você o amigo da Joana?

– Nem Joana nem Suzana.

– Então é meu.

Nelsinho abriu-se em sorrisos – eis o homem! Não quis perder o entusiasmo, pôs-se de pé. Abriu o laço da gravata. Ela puxou-o pela camisa e, à sua mercê, voltou a cavalgá-lo, sela nova rangendo. Ao retirar o casaco, a desgraçada fedia que era uma carniça. Inclinou-se sobre ele, o cadáver no caixão velado pela última carpideira.

– Teu corpinho feito para o amor?

– Esta noite, minha filha, o amor é pecado. Esta noite ele gera monstros.

– Tem a lábia do diabo.

– Tu o disseste – e entregou-se ao sacrifício.

– Quer que eu faça?

Agarrada a ele, sentados na cama, a saia acima do joelho, esfregava-lhe a perna grosseira e áspera.

– Que eu faça? – gritou terceira vez.

Na agonia do amor, sofresse até o último alento.

– Faça tudo, querida.

– Tudo o quê?

– O que sabe.

Apressada, desabotoava-lhe a camisa. Riscou-lhe nas costas a unha afiada – a do mindinho mais longa. Antes que refletisse no mistério, a sua voz impaciente:

– Apago a luz?

Cheio de medo, pediu que não. Debaixo dela, debateu-se em desespero:

– Espere um pouco. Perdi a abotoadura.

Tirou a camisa, de calça e meia. Foi acariciar-lhe o seio. Espantou-se da expressão distante, já desinteressada da cerimônia.

– Não esqueceu?

– Ah… Não te paguei?

Alcançou no bolso da calça uma nota, que ela escondeu no casaco. Sem mais demora, livrou-se do suéter. A decisão dela contagiou-o: Faça-se o que deve ser feito.

Diante da penteadeira, a bela admirou a imagem grotesca do poder e da glória:

– Tiro tudo?

Desatava o nó do cadarço, ergueu a cabeça:

– Tudo.

Ele subiu na cama para não arrastar a calça no pó. A mulher dobrou uma perna, depois outra, safando-se da saia preta de couro – a coxa com nervura azul de varizes. Sentou-se para enrolar as meias. Deixou cair o sutiã. Foi deslumbrar-se no espelho, o seio na mão. Buscou ali o olhar de Nelsinho – depressa ele o desviou. A criatura deu volta à cama. Enroscou-se nele, as unhas pelo corpo, estremecendo-o todo. Enfiou-lhe a língua na orelha – Que se faça tua vontade, Senhor, e não a minha.

Ao vê-lo deitado, grudou-lhe a boca no peito, lambeu a maminha: Poxa, isso que é mulher! Desceu a cabeça, sempre a beijar e, na altura do umbigo, rincho obsceno. Aos beijos tornou ao pescoço, logo arrepiou caminho e, no umbigo, outra vez o relincho de satisfação. Preparando para o sacrifício, espargia no corpo o bálsamo aromático. Agora fazia-lhe cócega no pé, escondendo-o no longo cabelo. O focinho rapace farejava a prenda secreta.

– Não morda.

Naquele instante ela abocanhou o queixo. Só sentia a língua. Aos poucos babujava e titilava ao redor da pombinha do amor – vai morder?

– Pare! – resistiu com toda a força. – Não faça isso.

Ela voltou a sugar o queixo. O herói alerta ao vazio dos dentes. Aterrado, defendeu-se com a mão no pescoço. Súbito a mulher recuou a cabeça. Cobrou fôlego, veio de novo, fungando. Quis morder, ele não deixou. Suspensa nos braços, o cabelo arrastando na colcha, todinha nua. A sacolejar o estrado, esfregava-lhe no peito os seios volumosos. Também nu, de meia preta, o rosto lambuzado de mil beijos. Sem jamais colher a flor do desejo, ela urrou de frustração – cravou-lhe os caninos no pescoço. Nelsinho alçou-se nas mãos, com ela aferrada ao ombro.

– Tiro sangue.

– Agora chega.

– Você não escapa – e encarniçava-se na perseguição feroz. Último alento, berrou espavorido:

– Tem água aí? – Mal se acreditou livre, suspirou com alívio. – Encharcado de suor.

A criatura jogou-lhe uma toalha. Trouxe o jarro com água, retirou uma bacia de baixo da cama. Ele deu-lhe as costas, esfregava as mãos no sudário viscoso, ouvia o chapinhar na bacia. Sentiu comichão no pé, o bicharoco pedia a toalha. Quando percebeu, instalada outra vez a seu lado. Pudera, reclamava o beijo.

– Estou perdido! – gemeu do fundo da alma.

Ela começou tudo de novo. Corria a unha na espinha, ele se retorcia inteiro. Pastava-lhe o pescoço, lambia o mamilo, com sopro e relincho.

– Pare com isso! – E ao ver-lhe a expressão medonha: – Mais devagar.

– Antes queria, não é?

Todos dormem, ninguém me acode: agora fecho os olhos e desmaio de tristeza.

– O galo cantou três vezes. Emburrada, a mulher coçava as perebas. Não se passou um minuto, a deslizar-lhe a mão furtiva no peito, logo na barriga. Soergueu-se no cotovelo:

– O corpinho dele. Tão magro e branco. O do outro.

Apoderou-se da mão, dava-lhe mordida ligeira. Nelsinho sofria o oco dos dentes. Implacável, ela insistia no encalço da boca. Aos poucos abateu-lhe a resistência – Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

Em cheio a ventosa obscena, ó esponja imunda de vinagre e fel. – Está consumado.

Um grito selvagem de triunfo, beijava-o possessa, olho aberto. Ele apertou a pálpebra, não ver a careta diabólica de gozo.

Cada um levantou-se de seu lado. Já vestido, abriu a porta, sem se despedir. A mulher não envergara a primeira peça de couro.

O relógio da torre anunciava o fim da agonia. Na rua deserta as badaladas terríveis rasgaram o silêncio de alto a baixo. Nelsinho suspendeu o passo, a terra fugia a seus pés:

– Sou inocente, meu Pai.


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