Menino caçando passarinho – Conto de Dalton Trevisan
– ADVOGADO é padre, minha senhora. Pode confiar.
– Eu sei, doutor Nelson.
– Não se acanhe. Conte a verdade. Enganava seu marido, não é?
– Deus me livre!
– Nesta citação a senhora é culpada.
Dez anos casada. Um par de filhos. Seis meses atrás, uma perda. O resguardo, descansar na casa da mãe. De volta, deu com porta e janela trancadas. Na rua, recebeu a contrafé do oficial-de-justiça: desquite, alegação de adultério.
– Quem é esse João Maria, citado como cúmplice?
– Um compadre, doutor. Esse não vai contra mim.
Luto da mãe, o vestido preto colante, broche de borboleta. O marido tinha horror da sogra. Não lhe dirigiu a palavra nos três meses em que a velha se hospedou na casa, doente da bexiga. Tenha pena dela – suplicava a mulher. E você? Tem pena de mim?
Óculo escuro: olho roxo de um murro.
– Homem fraco na cama é forte fora dela.
– Como disse, doutor?
– Conte os fatos, minha senhora.
Passeio no campo, o marido, ela e as filhas. Desde que se negava, alegando mal de mulher, o bruto queria agarrá-la à traição. Atalho no bosque, mandou as crianças na frente. Derrubou-a na grama. Com os gritos, as crianças voltaram, nele batiam com a sombrinha: Não surre a minha mãe! Não afogue a minha mãe!
– Cuidar com carinho, dona Olga, de sua defesa.
Na vez seguinte: assinatura da procuração, os preâmbulos. Tão jovem, não definhava longe do marido? A separação de corpos, morando com o pai
– A senhora anda nervosa?
– Nem queira saber, doutor.
– E antes de casar?
– Era bem calma. Agora sofro dos nervos – às vezes tenho ataque! Ai, que beleza: ela tem ataque.
– A senhora… delirava, dona Olga? Olhinho baixo: Sim.
– Um bem que Deus lhe concedeu. Sabe, o delírio, o que há de maravilhoso. A mulher tem convulsão, dona Olga.
– É fato científico. Não se acanhe. Advogado em serviço não tem sexo.
– Eu sei, doutor.
– Aqui no escritório muita interrupção. Levo os papéis a um lugar sossegado. No hotel da estação, está bem?
– Sim.
Esperou de quinze para as quatro até quatro e meia – assustei a pombinha, essa não volta mais.
– Dona Olga. Por que não foi?
– Eu fui. O doutor não estava mais. Negaceava, a bichinha, sem dizer que não. No escritório, após o expediente, discutir a pensão do marido para os filhos. Seis em ponto, Olga entrou na sala de espera. O herói fechou a porta e investiu.
– O doutor era um ídolo. Pensa que mulher separada não é honesta?
– Um beijinho só.
– Olhe que eu grito.
Picaria – só um pouco – se abrisse a porta. Ligeiro beijo roubado, a que não correspondeu.
– Prometo me comportar.
Com a porta aberta – imagine se alguém! – insistiu no assalto. Passos na escada, o elevador ora subia, ora descia. Sentados no sofá, a bela concedeu- lhe a mãozinha, que cobriu de beijos inflamados.
– Olhe que eu saio.
Ia sentar-se na outra cadeira. Ele arrastava-a para o sofá. Luta silenciosa e feroz: os dedos arranhados pela unha afiada. Despedida cerimoniosa na porta:
– Passe bem, doutor.
– Os seus problemas eu resolvo. A senhora tenha confiança. Surgiu-lhe o marido uma tarde no escritório:
– Mais algum papel para assinar, doutor?
– Era só.
– Desconfio dela, doutor. Falam muito. Anda enfeitada demais.
– É moça direitinha. O senhor tem prova? Sabe de fato concreto?
– Fato, não sei, doutor. Desconfiança a gente sempre tem. A mulher capricha na roupa de baixo, que o homem se cuide.
Saia preta e blusa branca de rendinha, braço à mostra – uma cicatriz de vacina meio escondida. A moça lia a petição, o doutor lhe afagava o bracinho. A fingir que lia, o rosto abrasado de excitação.
– Vamos lá?
– Lá não dá, doutor. Lá não dá certo. Que o senhor quer de mim? O homem só faz as coisas por interesse. É esse o preço do homem!
Afogueada, a penugem do braço arrepiadinha. Ele não se conteve: alisou- o de alto a baixo com as duas mãos.
O doutor era influente – não sabia de uma vaga de professora?
– Já se considere nomeada, dona Olga.
À saída, ela fez biquinho com o lábio e, estando de salto alto, forçado a se pôr na pontinha do pé.
– Se der, eu vou. Não sei se posso. Eu não devo.
– Então às cinco?
Choveu bem na hora. Esbarrou no pai dela, o velho farmacêutico.
– Eu mando ela sem falta. O doutor pode confiar. Olga reagiu, que ele cambaleou de costas.
– Não adianta. Eu não quero.
– Então tudo acabou. O caso foi processado. Quer ir para casa, vá – e arquejava, de fôlego curto.
Entre os artigos de lei, a se lembrar do bracinho arrepiado, o olho amarelo de quem sofre do fígado – eu tenho ataque, doutor! Recado urgente pelo farmacêutico que ela o esperasse em casa, às duas da tarde.
Bateu palmas na porta dos fundos. Olga assomou à janela.
– Entre, que já desço.
Abriu a porta: estaria o diabo do velho? À espreita, quem sabe, atrás da cortina? Ela desceu a escada, repuxando a saia no joelho. O vestido caseiro, em chinelinho.
Imediatamente a agarrou aos beijos e abraços.
– Louco por você.
Abatida, sem pintura, de olheira – ai, mãe do céu, de olheira! Que dizia ela? Não mais que balbucios:
– Sim, doutor – e revirava o olho. – Ai, doutor.
Sempre a resguardar-se das três mãos. Uma hora inteira de beijos – o dentinho perfumado.
– Sossegue. Papai entra de repente. O senhor é doido?
Iniciação ao beijo de língua. O vestido afogado no colo, ele não podia espirrar o seio. Mordiscava a ponta da orelha.
– Sabia o que eu queria?
– Sim.
– Desde quando?
– Desde a primeira vez. Da conversa que advogado é padre.
– Ai, Olga. Me beije.
– Aqui não dá. Se papai chega?
– As crianças?
– Mandei no vizinho.
– Deixe. Mais um pouco. Só um pouco.
– Onde já se viu? É loucura.
– Conhece a minha posição. Sou casado. Houvesse risco, o primeiro a não querer.
À roda da casa, fingia coçar o nariz, com a mão no rosto. Na hora combinada, surgiu pressurosa e tossindo, lencinho na boca.
Deu volta à chave. Ela caiu-lhe nos braços, toda trêmula. Nem falar podia, tão assustada. Desabotoava o casaquinho – cuidado, querido, o pregador! Ele arrancou a gravata. Aos cochichos – já era hábito. Bem o marido tinha razão: a maravilhosa roupa de baixo – sedas e rendas! Aos beijos, de pé. Aos beijos, sentados no sofá. Deitados no tapete, rolando.
– Quer que morda ou beije?
– Sim.
– Beije ou morda?
– Sim. Ai, sim. Ai, sim.
– Abra o olho.
– Gema comigo, anjo. Agora.
O herói gemeu. Ela o acompanhou em tom mais baixo.
– Ai, ai. Eu morro.
Estirada no tapete, bem quieta, a combinação azul acima do joelho.
Ele abotoou o paletó, acendeu cigarro. A bela mordia um grampo, a observá-lo no espelho:
– Mais uma para tua coleção?
– Você é a única.
Foi introduzir uma nota na bolsa.
– Não sou dessas.
Esperou-a no portão dos fundos. No quintal vizinho, um menino caçava, atiradeira em punho e olhar perdido. Gente na rua: a negra velha, um soldado discutia com o barbeiro.
Saltinhos saltitando na pedra, ele tossiu três vezes.
– Que imprudência!
De saia xadrez, blusa de lã. Fechada a porta, dela o primeiro beijo:
– Obrigada, meu amor. Pode o que quiser. Agradecida pela nomeação, despiu-se a toda pressa. Ele, em cueca e meia preta:
– Fique nua.
O seio róseo empinadinho. Já ritual:
– Morda ou beije?
– Sim – a mania de repetir sim, sim. Como é que um bruto desprezava dona tão querida?
Suspiros e, ao apertá-lo nos braços, o cheiro capitoso de égua trêmula.
– Se não corro me atrasava. Bem louca. Você me deixou assim.
– Com o João não fazia… isso?
– Credo! Isso nunca aconteceu.
O herói beliscava o biquinho do seio inchado.
– Teu marido como é?
Um apressado, procurava-a sem aviso; em seguida dava-lhe as costas.
Não ficasse mal acostumada – um trapo sujo atirado no canto.
– Tem me seguido. Não é arriscado vir aqui? Estou com medo.
– Me beije. Não fale.
– Vai enjoar de mim? O homem consegue o que quer. Depois corre atrás de outra.
– Me beije. Ai, Olga. Não fale. Abra o olho. Grande olho amarelo agora bem vermelho. Acuda, Olguinha, me deu ataque.
– Fique de olho aberto.
À saída, assustou-se com o menino trepado na ameixeira.
– Tem gente aí.
– Boba. É um menino.
– Se ele me vê?
Menino caçando passarinho é cego para o que não for passarinho.
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