domingo, 25 de dezembro de 2022

Histórias de Curitiba - 0 Tanque de guerra

 

Histórias de Curitiba - 0 Tanque de guerra

O Tanque de guerra
José La Pastina Filho

A notícia da vista do Presidente Costa e Silva a Curitiba, naquele 1o de maio de 1969, gerou nervosa excitação no meio estudantil da cidade. A repressão da ditadura militar havia entrado em sua fase mais dura, mas alguma forma de protesto fazia-se necessária.
Após horas de conversa e muitos maços de cigarro chegou-se a um consenso: seria lançado um "Manifesto ao Trabalhador". Sua produção, dada a experiência do grupo, foi rápida. O texto, uma colagem de chavões em voga. A datilografia do stencil ficaria a cargo das meninas da CEUC. Papel não era problema, pois havia um bom estoque no aparelho de imprensa, onde ficava o obsoleto mimeógrafo, com seu insuportável ruído. O DCE possuía ótimos equipamentos, inclusive um sofisticado gravador eletrônico, importado da Alemanha, mas lá, nem pensar, pois era o local mais visado pelo DOPS e outras siglas.
O maior problema era a distribuição.
Entrega de mão em mão seria pedir para ser preso, pois nunca antes Curitiba estivera tão policiada.
Optou-se, então, pela distribuição indireta que era, evidentemente, menos eficaz, embora aparentemente mais segura: durante a madrugada locais públicos da cidade seria "inundados"com o manifesto.
Para apanhar o material no "aparelho", a entrada e saída do edifício era feita em conta gotas, uma pessoa a cada cinco minutos.
Para avaliar a tensão e fazer hora até as 2 da manhã, um dos voluntários, estudante de arquitetura, ficara com seus amigos de Itararé num boteco da Rodoviária Velha.
Aproximando-se o momento da missão, inventou uma desculpa e lá se foi, resoluto, quase a marchar, André de Barros acima.
Barbudo, vestindo surrado casacão de gabartine da Marinha italiana da década de 20, antes usado pelo pai em suas caçadas nos Campos Gerais.
Nos pés, coturno de couro de cor natural, comprado na "Alfaiataria Militar"da rua Riachuelo.
Regra de segurança: antes de entrar verifique se não está sendo seguido...Não! A pesada porta de ferro com maçaneta de metal resistiu um pouco e , logo depois, abriu-se rangendo escandalosamente com o atrito no piso de granitina.
Longo e escuro corredor com uma escada no final, a esquerda.
Toque previamente con-venscionado na porta.
Efusivos (e sussurrados) cumprimentos.
- Puta frio, companheiro.
Tem pinga aí?
- Acho que sobrou um pouco da "Trivisan" pega lá na cozinha.
Olha, voce é na Praça Osório, tá?
Com dois pacotes de manifestos acomodados junto ao corpo, casacão abotoado até o pescoço, saiu, agora mais cuidadoso. Não se sabe bem porque, talvez por cautela, resolveu fazer um caminho alternativo, subindo a VVestphalen, ao invés de descê-la.
Um pouco trêmulo, garganta ardendo (frio, medo, pinga?) andava devagar, tentando aparentar uma calma impossível.
Alguns passos depois começou a ouvir um
barulhinho estranho, que se aproximava cada vez mais.
Sons metálicos abafados que se misturavam com o de um potente motor.
Fortemente iluminado pelas costas, viu sua sombra projetada à frente.
Onde a coragem de olhar para trás? Desfazer-se dos panfletos, agora era impossível, que fazer? Num último lampejo de coragem arriscou uma olhada e ficou petrificado: aquele tanque de guerra era de um modelo absolutamente novo! Alto, com dois estranhos discos horizontais dotados de inúmeras hastes metálicas que roçavam o asfalto junto à sarjeta, formas angulosas e dois pequenos mas fortíssimos faróis que lhe ofuscavam a visão.
Que morte inglória, atropelado por um tanque!
O barulho, agora, tornara-se insuportável e uma nuvem de poeira e vapor d'água o envolveu.
Momentos depois, paralisado e supreso por ainda continuar vivo, conseguiu ler na traseira da mortífera máquina: "TERPA LI-PATER a serviço da Prefeitura Municipal de Curitiba".

José La Pastina Filho é arquiteto e professor da UFPR.

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