Histórias de Curitiba - O Polaco do Seminário
O Polaco do Seminário
Carlos Alberto Sanches
No vestibular de Direiro da UFPR de 1962, conheci o Paulo Leminski, já então aureolado pela fama de gênio.
Logo após, ele iniciava a carreira de professor de cursinho, onde lecionava com raro brilho várias matérias, exceto matemática.
Suas aulas eram socráticas: incomum não era os alunos irem buscá-lo e as aulas ocorrerem nesse ir e vir. O gorgo, Garcez de Mello, que o diga.
Começamos uma grande amizade, sedimentada pelo fazer poético.
Para mim, conhecer o Paulo foi uma trombada estética, pois minha formação tinha sido bastante clássica.
Enquanto ainda vagava pela nebulosidade de Cruz e Souza ou o surrealismo de Augusto dos Anjos, ele já saracote-ava pela modernidade de Pound, Joyce, Witmann, Oswald e outros.
Logo se transformou no nosso guru, com inteira justiça, porque já dominava várias línguas; lia grandes obras no original e fazia poesia maldita, as-soante. A Divina Comédia, O Laz-zarilho de Tormes, a Bíblia, a Eneida, O Paraíso Perdido eram o seu trivial.
Nesta fase, acompanhou-o outra sumidade: o Sérgio Zip-pin.
Os dois construiram no bairro do Seminário a fama de devo-radores de livros, enquanto o resto da garotada jogava bota.
Falava-se de uma plataforma nos ciprestes do Internato Paranaense, onde se refugiavam os bibliófagos.
O Concretismo já explodira em São Paulo e o Leminski se correspondia com os irmãos Campos e o Pignatari.
Recebemos a revista Noigandres do Grupo.
Foi um impacto fulminante, pelo menos para mim, cujo autor mais moderno era, na época, o Garcia Lor-ca.
O Paulo fundou na casa dele, na Rua Bispo Dom José n° 259, o núcleo Experimental de Poesia Concreta de Curitiba, com o Lélio Souto Maior e eu.
Começamos assim o mergulho naquela poesia que o proP Hélio Puglieli definiu adequadamente como uma "camisa de força", pelas limitações que impunha à criação poética, suprimindo-lhe a base metafórica e acentuando o seu caráter lúdico/
gráfico/ótico.
E fomos experimentando dizeres, formas, sons e cores, não líricos e antidiscursivos, numa arqueologia verbal, digna de Indiana Jones.
Mergulhamos a fundo na tradução/transcriação, essa aventura mágica que é a passagem de um código para outro.
Traduzimos John Donne, Mallarmé, Robert Browning, Poe e todos os malditos, "noirs", com os quais o Paulo se identificava.
Ia esquecendo o Rimbaud.
Tentávamos sacudir a província modorrenta com os solavancos da nova poesia.
Os jornalistas Aroldo Murá e, especialmente, o Aramis Mi-larch, puseram-se do nosso lado e foram, até muito depois, os responsáveis pelo espaço que a poesia vanguardista paranaense sempre teve na imprensa local.
Boa parte da dimensão nacional do Paulo se deve a eles.
Paulo debulhava o Finne-gan's Wake de Joyce, que surrupiara a Biblioteca Pública, num dos vários "roubos santos"de livros que cometíamos.
Depois, íamos a pé, sob o sol ralo de julho e sob a bru-
ma espessa da manhã, até a mítica biblioteca do Instituto Neo-Pi-tagórico, na Vila Isabel, para ver livros raros e esotéricos.
O laboratório continuava na velha casa do Seminário, mas Paulo começava a ganhar o mundo e eu me inclinava para o caminho da educação, onde estou até hoje.
Especialmente na pedagogia da linguagem.
Antes de morrer, o Paulo me consolava por ter parado de fazer poesia, dizen-do-me que havia tanta arte no jogo/dança do intelecto com a palavra como no fazer alguém percorrê-la e percorrer-se.
Dizia ele que a nossa única caminhada é a viagem que fazemos pela língua.
Depois de sua morte voltei a tentar os caminhos enviesados do poema.
Afastando-nos durante vários anos.
Encontros ocasionais.
Paulo decolou a partir do Catatau.
Vieram outros percursos.
Ainda moro no Seminário e, ao passar pela casa 2459, da Bispo D. José, vejo o Leminski, agitado, a criar e a aglutinar, entre as figuras discretas da mãe, do pai doente, do irmão juvenil, então Pedro, e os olhares emplastados de admiração de todos nós.
Num velho caderno de época, achei este discreto Hai-Kai rabiscado a quatro mãos:
"Ver passar os pássaros pelos espaços passo a pássaros"
Carlos Alberto Sanches é professor e poeta.
Carlos Alberto Sanches
No vestibular de Direiro da UFPR de 1962, conheci o Paulo Leminski, já então aureolado pela fama de gênio.
Logo após, ele iniciava a carreira de professor de cursinho, onde lecionava com raro brilho várias matérias, exceto matemática.
Suas aulas eram socráticas: incomum não era os alunos irem buscá-lo e as aulas ocorrerem nesse ir e vir. O gorgo, Garcez de Mello, que o diga.
Começamos uma grande amizade, sedimentada pelo fazer poético.
Para mim, conhecer o Paulo foi uma trombada estética, pois minha formação tinha sido bastante clássica.
Enquanto ainda vagava pela nebulosidade de Cruz e Souza ou o surrealismo de Augusto dos Anjos, ele já saracote-ava pela modernidade de Pound, Joyce, Witmann, Oswald e outros.
Logo se transformou no nosso guru, com inteira justiça, porque já dominava várias línguas; lia grandes obras no original e fazia poesia maldita, as-soante. A Divina Comédia, O Laz-zarilho de Tormes, a Bíblia, a Eneida, O Paraíso Perdido eram o seu trivial.
Nesta fase, acompanhou-o outra sumidade: o Sérgio Zip-pin.
Os dois construiram no bairro do Seminário a fama de devo-radores de livros, enquanto o resto da garotada jogava bota.
Falava-se de uma plataforma nos ciprestes do Internato Paranaense, onde se refugiavam os bibliófagos.
O Concretismo já explodira em São Paulo e o Leminski se correspondia com os irmãos Campos e o Pignatari.
Recebemos a revista Noigandres do Grupo.
Foi um impacto fulminante, pelo menos para mim, cujo autor mais moderno era, na época, o Garcia Lor-ca.
O Paulo fundou na casa dele, na Rua Bispo Dom José n° 259, o núcleo Experimental de Poesia Concreta de Curitiba, com o Lélio Souto Maior e eu.
Começamos assim o mergulho naquela poesia que o proP Hélio Puglieli definiu adequadamente como uma "camisa de força", pelas limitações que impunha à criação poética, suprimindo-lhe a base metafórica e acentuando o seu caráter lúdico/
gráfico/ótico.
E fomos experimentando dizeres, formas, sons e cores, não líricos e antidiscursivos, numa arqueologia verbal, digna de Indiana Jones.
Mergulhamos a fundo na tradução/transcriação, essa aventura mágica que é a passagem de um código para outro.
Traduzimos John Donne, Mallarmé, Robert Browning, Poe e todos os malditos, "noirs", com os quais o Paulo se identificava.
Ia esquecendo o Rimbaud.
Tentávamos sacudir a província modorrenta com os solavancos da nova poesia.
Os jornalistas Aroldo Murá e, especialmente, o Aramis Mi-larch, puseram-se do nosso lado e foram, até muito depois, os responsáveis pelo espaço que a poesia vanguardista paranaense sempre teve na imprensa local.
Boa parte da dimensão nacional do Paulo se deve a eles.
Paulo debulhava o Finne-gan's Wake de Joyce, que surrupiara a Biblioteca Pública, num dos vários "roubos santos"de livros que cometíamos.
Depois, íamos a pé, sob o sol ralo de julho e sob a bru-
ma espessa da manhã, até a mítica biblioteca do Instituto Neo-Pi-tagórico, na Vila Isabel, para ver livros raros e esotéricos.
O laboratório continuava na velha casa do Seminário, mas Paulo começava a ganhar o mundo e eu me inclinava para o caminho da educação, onde estou até hoje.
Especialmente na pedagogia da linguagem.
Antes de morrer, o Paulo me consolava por ter parado de fazer poesia, dizen-do-me que havia tanta arte no jogo/dança do intelecto com a palavra como no fazer alguém percorrê-la e percorrer-se.
Dizia ele que a nossa única caminhada é a viagem que fazemos pela língua.
Depois de sua morte voltei a tentar os caminhos enviesados do poema.
Afastando-nos durante vários anos.
Encontros ocasionais.
Paulo decolou a partir do Catatau.
Vieram outros percursos.
Ainda moro no Seminário e, ao passar pela casa 2459, da Bispo D. José, vejo o Leminski, agitado, a criar e a aglutinar, entre as figuras discretas da mãe, do pai doente, do irmão juvenil, então Pedro, e os olhares emplastados de admiração de todos nós.
Num velho caderno de época, achei este discreto Hai-Kai rabiscado a quatro mãos:
"Ver passar os pássaros pelos espaços passo a pássaros"
Carlos Alberto Sanches é professor e poeta.
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