CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO, CAIRU – BAHIA
“A independência jurídica em relação à província portuguesa permitiu aos franciscanos do Brasil alcançar uma maior autonomia no traçado de suas igrejas, uma vez que seus projetos não necessitavam mais ser enviados a Portugal para aprovação. O primeiro projeto arquitetônico realizado após essa emancipação foi o convento de Cairu, situado a algumas léguas para o sul, e tinha como responsável Frei Daniel de São Francisco, o mesmo que algum tempo depois seria encarregado da construção do convento de São Francisco do Paraguaçu. Ambas as igrejas foram ponto de partida para uma nova escola arquitetônica, que o historiador francês German Bazin descreveu como sendo de “soluções inéditas, cujo desenvolvimento lógico pressupõe uma verdadeira escola de construtores pertencentes à ordem“.”
Agora, vamos conhecer um pouco do Convento de Cairu, com fotografias de Plinio Cintra, e transcrições de trechos da versão resumida de “O Convento Franciscano de Cairu”, de autoria de José Dirson Argolo, publicada pelo projeto Monumenta e IPHAN.
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“Tem-se notícia de que Martim Afonso de Sousa foi um dos primeiros europeus a pisar as areias
brancas das praias da Costa do Dendê. Precedeu-o nesse feito Diogo Álvares Correia, o
Caramuru. É bastante conhecido o episódio da descoberta da imagem de Nossa Senhora da
Graça, por Caramuru, entre os destroços de uma nau castelhana, na ilha de Boipeba, por volta
de 1526. A imagem seria aquela que aparecia em sonhos à sua esposa, a índia Catarina Álvares
Paraguaçu, e que seria fruto de sua mais pura veneração.
“Embora a região fosse dominada pelos valentes e temíveis aimorés, povo indígena considerado
pelos colonizadores como um dos mais sanguinários entre os que ocupavam o litoral brasileiro,
de início tudo correu às mil maravilhas na capitania de Ilhéus. Já em fins de 1536,
Francisco Romero enviava para o reino uma nau repleta de pau-brasil. A embarcação levava
boas notícias: a vila estava instalada e fortificada e contava com uma pequena capela. (…)
“O nome primitivo da ilha de Cairu era Aracajuru, que, segundo Jaboatão, na língua indígena,
significava “casa do sol”. A criação das vilas de Cairu, Boipeba e Camamu foi ordenada, em 1565, pelo segundo donatário da capitania de Ilhéus, Lucas Giraldes, ao seu procurador, Baltazar Ferreira Gaivoto. Este delegou sua fundação a João d’Andrade. O objetivo, segundo Silva Campos, era “instruir núcleos de moradores brancos que constituíssem outros tantos centros de resistência às incursões do numeroso e feroz gentio daquela parte do feudo, bem como de atração dos índios mansos, estes aliados dos portugueses. Além de vantagens outras que acarretariam em benefício do desenvolvimento da região”.
“A freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Cairu foi fundada entre 1608 e 1610, sendo arcebispo da Bahia D. Constantino Barradas. Abrangia as ilhas de Cairu, Tinharé e todas as outras ilhas do arquipélago, com exceção de Boipeba, que formaria uma freguesia separada, criada em 1616. A igreja matriz, situada pouco acima do convento franciscano, numa pequena elevação, teve sua construção iniciada na primeira década do século XVII, pois já existia quando
os frades menores fundaram o convento de Santo Antônio. É possível que seja a mesma igreja
construída ao lado do engenho dos Saraiva. (…)
A CHEGADA DOS FRANCISCANOS
“Nas proximidades do atual convento de Cairu, em data anterior a 1650, existia uma modesta
capelinha de taipa edificada pelo casal de devotos Domingos da Fonseca Saraiva e Antônia de Pádua Góes nos terrenos da fazenda de sua propriedade. De vez em quando, padres franciscanos que exerciam seu apostolado nas diversas ilhas da baía de Tinharé aportavam em Cairu. Eram acolhidos com muita hospitalidade por D. Antônia de Pádua nessa capelinha dedicada a Santo Antônio, junto à qual construíram humildes dormitórios. Está aí, sem dúvida, a origem do convento.
“Em janeiro de 1650, em decorrência da morte do frei João Baptista, o frei Sebastião do Espírito
Santo ocupou o cargo de custódio da Congregação Franciscana. Entre as primeiras disposições
de seu governo, ele decidiu mandar à vila de Cairu o frei Gaspar da Conceição, definidor, juntamente com o frei Francisco de Lisboa, pregador, e o frei João da Conceição, leigo, a “fazer
a acceitaçaõ de fundar também alli um convento, como pediaõ os moradores da terra”.
“Chegados à vila, os religiosos foram recebidos festivamente pelos moradores, que os alojaram
numa pequena casa junto à ermida de Santo Antônio, no alto dos montes, próximo à igreja
matriz. Atendendo aos insistentes pedidos, em 21 de março do mesmo ano, a Congregação
Franciscana decidiu pela fundação do convento.
FUNDAÇÃO DO CONVENTO
“Até o início de novembro do mesmo ano, os frades permaneceram em Cairu, com a incumbência de principiar um recolhimento, tendo um deles “retornado à Bahya para assistir à congregação, que celebrou o dito custódio a 21 do sobredito mêz, e anno e nesta foi nomeado para premeyro superior do Recolhimento que se havia de levantar Fr. Sebastião dos Martyres”. Sua prelatura durou três anos.
“Somente após esses anos seria iniciada a construção do convento, por decisão tomada no
Capítulo de 14 de setembro de 1653, presidido pelo provincial frei Cosme de São Damião,
quando foi nomeado custódio o padre mestre frei Daniel de São Francisco, incontestável realizador da grande obra.
LOCAL DA CONSTRUÇÃO
“A escolha do sítio recaiu sobre uma elevação, de onde ainda se desfruta uma belíssima vista panorâmica, nas proximidades da antiga igrejinha de taipa, dedicada a Santo Antônio, que fora edificada por Domingos Saraiva e Antônia de Pádua Góes .
“A situação geográfica e econômica exercia grande influência na escolha dos lugares onde os
novos conventos deveriam ser construídos.
“Um dos fatores considerados nas reuniões do Capítulo era a possibilidade de sustento do futuro convento pelos habitantes do lugar escolhido por meio de donativos, uma vez que a Ordem Franciscana não dispunha de recursos para tal, até porque era uma ordem mendicante. Os próprios estatutos da Província Franciscana de Santo Antônio prescreviam: “O provincial tem faculdade com a Mesa juntamente para poder aceitar a fundação de qualquer Convento que lhe oferecerem, porém será só em os povos, nos quais sem discursos demasiados, e com recolhimento devido, e sem defraude dos outros conventos, se possam sustentar os Frades, conforme o nosso modo”.
A IGREJA DO CONVENTO
“O lançamento da pedra fundamental ocorreu em 25 de agosto de 1654, nos terrenos doados por Bento Salvador e sua mulher, D. Izabel Gomes. A escritura foi passada em 25 de dezembro do mesmo ano, sendo síndico Antônio Ceiros Carneiro, governador da vila de Nossa Senhora do Rosário de Cairu. Os religiosos gastaram mais de um ano nessas preparações, segundo Jaboatão, o qual também informa que “para os officios Divinos assim antes, como depois de acabado o Recolhimento, se serviraõ da Igrejinha de S. Antônio, que no mesmo lugar haviaõ levantado os Moradores, e feito taõ bem data della aos Religiosos, junto a qual se levantou o Recolhimento, e se serviraõ della, em quanto se naõ fez a outra nova”.
“Segundo Bazin e outros estudiosos, a construção do convento foi iniciada pelo primeiro superior, frei Gaspar da Conceição. Quanto à edificação da igreja, frei Jaboatão atribuía a autoria dos projetos dos conventos de Cairu e de Santo Antônio do Paraguaçu ao frade franciscano Frei Daniel de São Francisco, que havia sido o primeiro guardião do Convento de Salvador, em 1647. (…) Tinha enorme facilidade de convencer os ricos e poderosos a fazer polpudas doações para as obras do Convento de Salvador. Sem dúvida alguma, foi nesse período que desenvolveu o projeto do Convento de Cairu.
“Também participou da restauração da Capitania de Pernambuco contra o jugo holandês, quando lá se encontrava, na qualidade de custódio. Foi guardião do Convento Franciscano de Olinda por três anos, no início da década de 1670, retornando a Salvador para exercer novamente a função de superior do Convento, entre os anos de 1673 e 1677. Completado o seu mandato, vamos encontrá-lo mais tarde, já em idade avançada, como guardião do Convento de Olinda, no Capítulo do Provincial Fr. Aleixo de Madre de Deus.
“Frei Jaboatão dizia, referindo-se a Frei Daniel e ao convento cairuense, “que a primeira pedra a lançou, o mestre na sagrada teologia e custódio provincial (…) em vinte e cinco de agosto de 1654”. (…) Frei Daniel faleceu no Convento de Recife, em 4 de fevereiro de 1692.
“Tomando como base as datas gravadas, podemos supor que boa parte do monumento já estivesse concluída em 1739, conforme data existente na verga da porta do lado direito do nártex, que dá acesso a um pequeno espaço usado como portaria, onde atualmente se encontra um pequeno nicho em que é venerado São Benedito.
“As obras continuavam lentas, prosseguindo à medida que as esmolas recolhidas dos fiéis moradores o permitiam. Podemos também imaginar o enorme sacrifício que era fazer chegar à vila de Cairu os materiais de construção não existentes na ilha, principalmente pedra, cal e madeira, cujo transporte só era possível de barco. Felizmente os calcários eram retirados das pedreiras de Boipeba, não muito distante dali.
“Na verga da porta principal de acesso à igreja do convento está gravada a data de 1742, acreditando Santos Simões tratar-se do término dos trabalhos mais importantes, principalmente a decoração interior e exterior do convento. Os trabalhos ainda não deveriam estar totalmente concluídos, pois a verga da porta esquerda do nártex ostenta a data de 1750, último registro cronológico gravado em qualquer dependência do monumento, alusivo à sua construção.
CARACTERÍSTICAS DA IGREJA
“A peça mais antiga de toda a nave é a capela de Santa Rosa de Viterbo, mandada construir pela Ordem Terceira, localizada na parte central da nave, do lado do Evangelho. Aí vamos encontrar um belo altar barroco, do tipo românico, inteiramente talhado em cedro, datado possivelmente de 1720. É provável que esse altar tenha pertencido a outro local maior, quem sabe à capela mor, tendo sido desmontado e um pouco reduzido, na segunda metade do século XIX, para adaptar-se ao recinto da capela da Ordem Terceira.
“A capela-mor foi totalmente modificada no século XIX, quando perdeu seu forro e o retábulo barroco. De cada lado das paredes laterais existem painéis de azulejos figurativos montados aleatoriamente, com o aproveitamento de peças provenientes de outros painéis, na tentativa de completar a barra de azulejos originais, disfarçando a redução do espaço, antes ocupado pelo antigo altar. Foram certamente montados após a remoção do retábulo antigo ou após a
colocação do atual.
“Resta da decoração barroca primitiva o revestimento azulejar. Do lado do Evangelho, os painéis retratam cenas da vida de Santo Antônio – O milagre da mula e A pregação aos peixes. Do lado da epístola, temos as representações da Ceia na casa do incrédulo e da Cura da criança paralítica. Santos Simões vê nesses painéis a mão de Bartolomeu Antunes, um dos mais festejados pintores de azulejos portugueses, ou de um dos seus melhores discípulos. Ele situa a data desses painéis em torno de 1740.
“O atual altar-mor é de um estilo neoclássico tardio, sem dúvida uma interpretação popular do estilo erudito que se desenvolveu espetacularmente em Salvador, durante o século XIX. Até o momento, não foram encontrados documentos que permitam datar a sua confecção.
“Como o elemento artístico de destaque do convento é a sua monumental azulejaria portuguesa, a decoração interna da nave não poderia, de forma alguma, dispensá-la. Um grande silhar, com uma altura correspondente a 11 azulejos, percorre toda a parte inferior das paredes, totalizando três mil peças que formam um admirável conjunto. São exemplares do período joanino, como a maioria da azulejaria do convento, produzidos no período áureo dessa arte em Portugal, quando aquele país foi governado por D. João V, um monarca sensível, apaixonado pelas artes e seu grande incentivador. Esses azulejos devem ter sido produzidos em Coimbra, segundo centro produtor português (o primeiro era Lisboa).
“Azulejos idênticos aos da nave podem ser vistos na igreja de São Quintino, na localidade de São Quintino (Sobral do Monte Agraço), em Portugal. Segundo José Meco, datam de 1738. No Brasil, são encontrados no convento de Santa Tereza de Salvador, sede do Museu de Arte Sacra da UFBA, e no Convento de Santo Antônio do Paraguaçu.
“A nave possui um forro em forma de gamela, com pintura ilusionista de autoria desconhecida representando várias cenas alusivas à vida de São Francisco, Santo Antônio, São Domingos e outros, além da visão de Cristo e de Nossa Senhora por aqueles dois primeiros santos. A propósito, Fernando da Fonseca comenta que “estranhamente a figura de Cristo empunha três raios e junto está a figura de S. Gabriel desembainhando uma espada”.
“É interessante assinalar que a grande reforma ocorrida no convento de Cairu em 1875 corresponde exatamente à época em que a comunidade franciscana passava por um período de muitas dificuldades financeiras, quando a província foi quase extinta, por causa da proibição de admissão de noviços e do controle do número de frades, imposto pelo governo imperial. Teria essa situação contribuído para a escolha de um pintor pouco qualificado para intervir na reforma do forro da nave?(…)
Um dos destaques na igreja é a belíssima sacristia, inteiramente revestida de azulejos.
Exteriormente, vemos a configuração que German Bazin considerava uma das características da escola franciscana do Nordeste, e que se aplica a essa igreja conventual: o traçado de frontispício com “composição essencialmente piramidal, obtida com a superposição de três pavimentos de larguras decrescentes“.
Ao lado da igreja conventual, restam as ruínas da igreja da Ordem Terceira.
“Durante o século XIX, toda a comunidade franciscana passou a sofrer com as disposições
régias que visavam a diminuição do número de noviços. As restrições por parte da coroa portuguesa, aliás, tiveram início na primeira metade do século XVIII.
Uma das tradições de destaque em Cairu é o Reinado de São Benedito, santo mais venerado pela população, que foi oficializada por Carta Régia datada de 1777.
Nos tempos recentes, Cairu tem sido vítima da mentalidade que vem estragando tantos lugares históricos brasileiros, as saber:
“Além da igrejinha de Nossa Senhora da Lapa, cuja destruição não deixa de ser um crime cometido contra o patrimônio da cidade, algumas administrações municipais, no decorrer dos últimos cinquenta anos, também contribuíram para a demolição de diversos casarões coloniais, demonstrando pouca sensibilidade para com o patrimônio arquitetônico de Cairu. Vários moradores, seguindo o exemplo das administrações municipais, também trataram de destruir ou “modernizar” os seus imóveis, eliminando, assim, uma parcela importante da história da evolução urbana da cidade.
“As novas construções, como a da atual sede da prefeitura, e uma outra, recentemente erguida para a mesma finalidade nas proximidades do cais do porto, são desprovidas de qualquer mérito arquitetônico, além de destoarem totalmente da paisagem, quebrando a harmonia, a volumetria e o ritmo dos telhados dos casarões coloniais.
REFERÊNCIAS:
– Bazin, German, L’Arquitecture Religieuse Baroque au Brésil, Tomes I e II, Paris: Librairie Plon, 1958
– Argolo, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu – Restauração de Elementos Artísticos. IPHAN/Monumenta, 2009
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