São Francisco de Paula, o cemitério mais antigo de Curitiba. Foto: Larissa NicolosiNum momento em que os velórios ficaram mais curtos, a cremação ganha se torna mais comum e a morte é cada vez mais ignorada, um fenômeno vem na contramão de todo o resto: cresce o número de pessoas que se ocupam em bater ponto no cemitério. As chamadas “visitas guiadas” oferecem umtour pelo local a fim de reafirmar que a cultura e a arte também têm ali sua morada. Cemitérios se tornaram protagonistas – o Municipal São Francisco de Paula, em Curitiba, entre eles. Além de ser o mais antigo – e o mais requintado da capital paranaense –, tornou-se também o mais frequentado por grupos. Só faltam tomar ali um chá da tarde.
A visita guiada acontece desde 2011, regularizando-se pelo menos duas vezes por mês depois de um tempo. Entrou para o calendário da cidade, tanto quanto o badalado coro de crianças que cantam nas janelas do Palácio Avenida a cada Natal. Os grupos são formados por pelo menos 40 interessados, que chegam cedo.
O primeiro cemitério de Curitiba abre seus portões às 9 horas, junto com o horário marcado para a visita padrão ou temática. A visita noturna, trimestral, acontece às 19 horas. O cortejo é guiado pela pesquisadora cemiterial Clarissa Grassi, 42 anos, sem a qual não se conta essa história. Clarissa é a alma do negócio.
Na entrada, a guia faz uma pequena palestra sobre cultura da morte e nascimento dos cemitérios, de modo a ambientar os presentes. Mesmo para quem já fez a visita, a palavra de ordem é ouvir. O silêncio impera. Um ritual se repete: Clarissa pergunta quem está visitando o “São Francisco de Paula” pela primeira vez. Em meio às várias mãos levantadas, numa das visitas reportadas para este livro, em janeiro de 2019, se encontra um grupo de amigas. Tiveram de vencer um “medinho”, admitem, e até fizeram um pacto antes de chegar: “Ninguém solta a mão de ninguém” (risos). Para incentivar ainda mais a não soltar a mão de ninguém, as meninas escolheram o turno da noite para sua “primeira vez” no cemitério. Mas o clima não é igual para todo mundo: tem quem entre na visita com espírito de aventura. Outros, para quebrar tabus.
O veterano da imprensa americana Gay Talese, festejado por seus perfis tanto de astros, como Frank Sinatra, como de desconhecidos, a exemplo dos operários que construíram a Ponte do Bronx, deixou um texto na medida certa para explicar o que acontece na mais importante cidade do seu país. O trabalho se chama “Nova York: a jornada de um serendipitoso” e integra a coletânea Fama e anonimato, publicada no Brasil em 2004. A tal jornada – produzida na primeira metade dos anos 1960 – é formada por cinco textos, sendo o primeiro deles “Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas” ou “onde coisas estranhas acontecem”. A expressão vale para a Big Apple, mas, permitam, também serve para o Cemitério Municipal São Francisco de Paula. Da bancada do Serviço Funerário Municipal – onde enlutados se debruçam para encaminhar o funeral – até a última quadra de túmulos, coisas curiosas acontecem. Se os visitantes não sabem disso, pelo menos suspeitam.
Dizia Talese em seu texto, que coincide com o caso do Cemitério: “Nova York é uma cidade para excêntricos e uma central de pequenas curiosidades.”
O Cemitério Municipal São Francisco de Paula abriga algo próximo de 95 mil mortos, de acordo com dados da própria secretaria do local e, também, das pesquisas de Clarissa Grassi. Equivale a aproximadamente um Maracanã lotado. Seja nos seus tours mensais ou numa conversa dos funcionários do cemitério, que não escondem a vontade de fazer uma festa no campo santo, como se dizia, a vida ali não para. Enquanto as floristas aguardam o próximo cliente, que varia de um casal apaixonado até uma família enlutada, Chiquinho, o gato de uma dessas vendedoras, se aproxima do grupo que aguarda a visita guiada, buscando um afago e, ao mesmo tempo, deixando o clima cômico por ser um felino preto num cemitério.
Em um momento de afastamento escapista com a morte e a persistente ideia de fingir que ela não existe, cada vez mais o número de visitantes cresce e o cemitério se torna turístico. Pode até soar estranho. É o que filósofos, como o francês Gilles Lipovetsky, chamam de bipolaridade de uma época, ou “era dos excessos”, como ele diz, parodiando a expressão famosa do historiador Eric Hobsbawm: estamos na era dos extremos.
Estima-se que em um ano, mais de duas mil pessoas participem do passeio, cerca de 200 por mês. No primeiro ano de visitação, 2011, o número foi de 102 inscritos, com crescimento de quase 2.000% até 2019 e procura mais acentuada a partir de 2016, quando o programa de visitação foi incluído na gestão do prefeito Rafael Greca de Macedo, eleito naquele mesmo ano.
Frequentar as visitas guiadas ao cemitério é um experimento social. Contar que faz parte do grupo, também. Na devida proporção, equivale a se dizer membro de uma expedição amazônica. Ouve-se de tudo, desde comentários repletos de curiosidade até os mais negativos. Nessas horas, frequentadores e não frequentadores de cemitérios, em circunstâncias comuns, verbalizam o medo do desconhecido e colocam para fora todas as arestas do tema. São argumentos do tipo “cemitério não é lugar de passeio”, “cemitério bom é o cemitério-parque, afinal, nem parece um cemitério”. Velar alguém por horas a fio, assim como nos séculos passados, parece balela e mórbido para alguns. Atual mesmo é sumir com o corpo e manter o velório nas redes sociais, um textinho ali, uma foto acolá. A memória pode ser perpétua, já que “a morte não é nada”, tal qual diz o texto de Santo Agostinho. Escolher o revestimento da morada eterna? Nem pensar, “não fala disso aqui dentro de casa, menino”. Seguido de um “tira essa roupa inteira e coloca para lavar. Não quero terra de cemitério aqui dentro de casa”. E olha que nem terra tem mais nos cemitérios tradicionais.
Gato preto em campo santo. Foto: Larissa Nicolosi
Em miúdos, visitar o “São Francisco” pelas mãos de Clarissa Grassi é uma forma indireta de visitar o proibitivo tema da morte. O assunto aparece despistado na arquitetura dos túmulos, nos faits divers sobre alguns dos sepultados. O medo da morte e do destino pode dar lugar a outra perspectiva quando, no mundo inteiro, os espaços mortuários promovem um olhar que ressalta a arquitetura, história e cultura de uma cidade. A vida passa pelas ruas, pelos bairros, monumentos, praças. Passa pelos cemitérios.
O projeto das visitas guiadas em Curitiba acontece há pelo menos sete anos. Estima-se que nesse tempo, mais de 10 mil pessoas se interessaram em ouvir, in loco, histórias sobre Maria Bueno, a milagreira “oficial” dos curitibanos, uma lavadeira assassinada no final do século 19; e sobre a pirâmide amarela da Família Glasser, assim chamado um dos túmulos mais excêntricos do conjunto. Em 2019, o cemitério completa 165 anos e, de presente, seu processo de tombamento está a todo vapor; estima-se que até 2021 o festejo se complete com a finalização do parecer que destaca os túmulos que devem ser tombados pelo Patrimônio Histórico Municipal.
Enquanto isso, tal como em Nova York, a cidade onde coisasestranhas acontecem, encostado no muro, seu Sebastião da Silva, o pedreiro mais antigo do cemitério, volta de mais um enterro bem sucedido. Ele senta com os outros funcionários e conta das grandes viagens que já fez com seu Uninho, Brasil afora. Lá embaixo, o silêncio respeita as famílias que estão fazendo uma Ficha de Acompanhamento Funeral. Nos arredores, as funerárias, abundantes na vizinhança, aguardam para saber de quem é a vez (em Curitiba, o sistema é por rodízio), skatistas fazem suas manobras na Pista do Gaúcho e o melhor Pão com Bolinho da cidade espera os clientes no Bar do Pudim – espaços famosos de Curitiba, instalados ao lado do “São Francisco”. A vida não para, com perdão do clichê.
Algumas quadras ladeira abaixo, permanece a todo vapor um dos points mais conhecidos e movimentados dos jovens da capital paranaense. O Largo da Ordem também abriga um cadáver ou outro embaixo das suas centenárias igrejinhas, mas não é todo mundo que sabe disso ou, ao menos, que sabe e fica sereno com a informação. As religiões se misturam no pequeno Centro Histórico, cada uma com sua perspectiva sobre o depois e com a mesma certeza: todo mundo vai morrer.
No coração de Curitiba se encontram inclusive templos católicos neocoloniais. Segundo o censo do IBGE de 2010, o catolicismo representa a fé de cerca de 60% da população curitibana, seguido pelos evangélicos com 20% e os espíritas, com quase 3%. Além das religiões citadas, o bairro São Francisco também acolhe a colorida Sociedade Hare Krishna, com o hinduísmo; e a turística Mesquita Iman Ali Ibn Abi Tálib, além de duas igrejas luteranas, confissão marcante na histórica da capital paranaense – sendo que numa delas parte do culto ainda é em alemão. A finitude da vida não é segredo para nenhuma das crenças.
Se tem medo disso ou não, responda com clareza: o medo é da morte ou do cemitério? Você acredita que sejamos como os zumbis de Thriller do Rei do Pop Michael Jackson ou mais para Sam Wheat do aclamado drama Ghost: do outro lado da vida? Para quem trabalha no cemitério, não passamos de um fantasminha camarada que fica quietinho (ainda bem).
O passeio já começou.
Morte e vida, Curitiba: um passeio no cemitério público mais antigo da capital paranaense
A história da cidade de Curitiba se mistura com a de seus mortos. Os 165 anos de história do Cemitério Municipal São Francisco de Paula, comemorados em 2019, guardam muitas memórias embaixo de 5.743 túmulos, que servem de “morada eterna”, com se diz na piedade popular, para mais de 95 mil mortos. Num momento em que a morte apavora – por sua violência ou por contradizer o hedonismo contemporâneo – e é cada vez mais escondida, um fenômeno vem em sentido contrário: as visitas guiadas, que, com condução de Clarissa Grassi, viraram atrações turísticas e uma aula a céu aberto.
Quando Clarissa caminhava pelo silêncio dos cemitérios, isso antes de pensar em ser pesquisadora, se sentia tão curiosa quanto os que se inscrevem para as visitas guiadas que ela ministra. Logo que a pesquisadora começou as visitas, em 2011, levou 102 curiosos para o passeio. Desde esse ano até julho de 2019, foram 10.031 participantes.
No começo, as visitas eram voluntárias. Clarissa não ganhava nada por elas, mas tinha a oportunidade de repassar o conhecimento que acumulou sobre o local e descobrir sobre seu público visitante. Somente em 2016, com a eleição do prefeito Rafael Greca de Macedo (DEM), a proposta foi implantada oficialmente no calendário da cidade, junto à Fundação Cultural de Curitiba (FCC), o equivalente local às secretarias de cultura. Foi quando a atração caiu no gosto de grupos, famílias e solitários, sem distinção: mais de mil pessoas anualmente passaram a conhecer o cemitério não apenas por ocasião do Dia de Finados, mas ao longo do ano de forma diferenciada, lúdica e cultural. Pelo menos duas vezes por mês acontecem as visitas-padrão, aos sábados de manhã, com três horas de duração. A cada trimestre, coincidindo com outubro, o mês do Halloween, ocorrem as visitas noturnas, com três turmas para atender à grande demanda.
As visitas consistem em duas partes: a primeira é uma pe- quena palestra de uma hora em que Grassi comenta sobre a criação dos cemitérios, sobretudo do Cemitério Municipal São Francisco de Paula. Trata, em paralelo, dos diferentes sentidos que permeiam a relação da sociedade com a morte. Ela é clara quando questionada sobre a importância da conversa inicial com os visitantes.
“Não faz sentido entrar ali e não saber a importância do cemitério e um pouco do que há por trás da história desses espaços.”
O avanço das visitas guiadas é um fenômeno contra a maré. Há um tabu ancestral ligado à morte e, por consequência, à prática de fingir que ela não existe. Exemplo clássico é o pavor do morto e do cemitério, o medo constante de a figura assustadora, retratada como uma caveira de capuz preto e foice, chegar e acabar com a vida. Se a ideia de andar num cemitério em rituais fúnebres pode ser repulsiva, a de passear por ali, sem a desculpa de estar num cortejo, corria o risco de ser encarada com nariz torcido. Mas se deu o contrário: as visitas guiadas pelo Cemitério Municipal São Francisco de Paula tiveram uma adesão positiva que cresce ano após ano, com previsão de fechar 2019 com pelo menos 2,5 mil participantes.
Foto: Paulo Berbeka
Quem integra o tour confere de perto a história de cada rua do “Municipal”. A trajetória de Ildefonso Pereira Correia, o barão do Serro Azul (1849-1894), por exemplo, ajuda a nutrir a memória política da capital paranaense; o túmulo de Victor Ferreira do Amaral (1862-1953), médico e político, é essencial para entender o nascimento da primeira universidade do país, a Universidade Federal do Paraná, em 1912, já que Amaral foi o fundador da instituição. Isso para citar dois, pois também se tem artistas, arquitetos, pesquisadores e pioneiros na lista dos falecidos. Por ser o primeiro cemitério público de Curitiba, fundado em 1854, o local guarda quem colaborou no crescimento da cidade, década após década.
Os grupos geralmente são compostos por mais de 40 pessoas, de idades variadas, pendendo mais para a faixa dos 21 a 40 anos. Para entender o que motiva as inscrições e as impressões dos participantes, duas pesquisas foram realizadas entre março e abril de 2019, contando com 308 respostas (ver capítulo “o que te traz ao cemitério?”). O motivo para fazer a visita é, principal- mente, a curiosidade. Junto dela vem o incentivo de quem já foi e indicou para os outros.
Quem vai, costuma voltar e, se não pode revisitar, indica para quem ainda não foi. Outro ponto interessante é que apenas três respostas das 308 indicaram que o impacto da visita foi abaixo de 5, numa escala de 1 a 10.
A satisfação das visitas é comprovada, além da pesquisa, com a salva de palmas no final de cada encontro, além de, claro, o sinto- ma da procura alta, mesmo para conseguir uma vaga nas visitas-padrão. As noturnas são as mais populares, com esgotamento das três turmas em menos de três minutos, via inscrição na internet. As temáticas acontecem no formato matutino, assim como a padrão, sempre aos sábados; essas e as visitas comuns esgotam mais lentamente. Não há uma regra, mas esgotam antes que o tour aconteça. A confirmação de vagas se dá por e-mail. Além disso, cada visita é marcada por uma foto no final, no túmulo escolhido pelo grupo, e postada na página oficial da visitação e também no perfil pessoal da guia Clarissa Grassi.
O cemitério não é só dos mortos
A palavra “necrópole”, usada pelos pesquisadores de arte ce- miterial e historiadores do ramo, pode ser usada para definir o Cemitério Municipal São Francisco de Paula. A denominação grega significa “cidade dos mortos”. Mas não só de mortos vive a cidade localizada no coração do antigo bairro São Francisco, em Curitiba. Os funcionários também são parte importante para que tudo aconteça corretamente por ali.
Durante as pesquisas para este livro, foi possível acompanhar a rotina do Serviço Funerário Municipal, responsável pe- los trâmites de sepultamento na capital. O silêncio respeitoso pelas famílias enlutadas dá lugar também às piadas rotineiras dos trabalhadores, nos bastidores. O operariado do “Municipal” classifica o emprego como tranquilo, “já que a clientela não incomoda”, mas não nega que teve de se acostumar com casos sensíveis com os quais se deparou e com a própria morte.
Subindo as escadas que começam na Rua João Manoel, vê-se o portal de entrada do cemitério, na Praça Padre João Sotto Maior. Ao lado, floriculturas e as capelas para velório. Inês de Jesus e Maria Ferreira, mulheres na casa dos 50 e 60 anos. Dali de cima, onde se encontram os quiosques de flores, elas podem acompanhar tudo o que acontece no lado de fora. Comentam a queda das vendas. “O movimento caiu”, dizem, por causa da autorização dos mercados em vender flores, e com a praticidade das flores de plástico, adotadas em massa depois das campanhas contra a dengue e o zika vírus. Vaso de flor virou sinônimode água parada.
Dentro, os pedreiros e zeladores não perdem um bom papo. O mais antigo deles, Sebastião da Silva, está no “São Francisco de Paula” há mais de 50 anos e sabe reconhecer de longe os olhares perdidos. Indica as quadras para os visitantes e apro- veita a deixa para conversar. Detalhe: quando os funcionários são questionados sobre o cemitério, a primeira resposta é única entre eles: “Já falou com a Clarissa?”
Clarissa Grassi é uma peça importante do local. Virou figurinha registrada do primeiro cemitério público de Curitiba. Há o antes e o depois dela. Simplesmente, aconteceu. A relações públicas e pesquisadora cemiterial e de arte tumular é agora diretora do Departamento de Serviços Especiais da Prefeitura. Até pouco tempo, era uma voluntária que conduzia grupos por ruelas cercadas de jazigos por todos os lados. Para ela, a nova função é o fechamento de um ciclo, algo que nunca imaginou, mas que ao mesmo tempo a enche de alegria. Seu interesse por cemitérios veio desde criança, já que neles encontrava um sos- sego que não via na cidade.
Questionada sobre as visitas guiadas, agora espremidas com o aumento das responsabilidades na prefeitura, Grassi afirma que não pretende parar e seguirá normalmente. A rotina dela é cheia, em especial com o processo de tombamento do Cemitério Municipal São Francisco de Paula. O trâmite contempla túmulos que servem de referência histórica, arquitetônica e cultural para Curitiba. Clarissa conta a importância do projeto.
“Além de proteger essas construções de possíveis demolições, o tombamento é uma maneira de mostrar o que significam para a cidade. Todos os túmulos ali contam alguma história.”
O processo tem previsão de término em 2021. As visitas continuam e há um projeto de visitação para o Cemitério Municipal Água Verde, também longevo, perto do Centro, na antiga colônia dos italianos no Paraná.
O fenômeno das visitas não é único, visto que outras cidades do Brasil aderiram à moda do passeio, como São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Pelo mundo, cemitérios mais antigos como os franceses Père-Lachaise e Inocentes e o argentino Recoleta também atraem olhares e visitantes.
Enquanto isso, a “cidade dos mortos” curitibana vai ganhando seu espaço como atração turística e continua a fluir normalmente. Ali, todo mundo conta alguma coisa, mesmo no silêncio. E assim os capítulos da história continuam sendo escritos, seja a partir dos mortos, seja a partir dos vivos.
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Larissa Nicolosi – Jornalista formada pela UFPR, estudiosa de cultura da morte e contadora de histórias.
Foto: Daniel Castellano/SMCSPesquisar sobre a morte é estar disposto a entrar em diálogo com autores como o essencial Philippe Ariès, o sociólogo americano Richard Sennett – ícone quando se trata do indivíduo na construção do meio urbano; o sociólogo alemão Norbert Elias e também figuras como a pesquisadora paranaense Cassiana Lícia de Lacerda, aposentada no setor de Letras da Universidade Federal do Paraná, referência em simbolismo e expert em historiografia do Paraná Tradicional. Ela é assertiva, após os cumprimentos, manda um:
“Você leu meu boletim? Sem ele, não adianta me entrevistar.”
O boletim a que a pesquisadora se refere é o Cemitério Municipal São Francisco de Paula: monumento e documento, informativo da Casa Romário Martins, de 1995. Foi um dos passos iniciais para a pesquisa da necrópole. O local, com toda certeza, tem muito para contar. Afinal, são mais de 92 mil mortos em 5.743 túmulos, dispostos em 51.414 metros quadrados numa grande quadra no bairro São Francisco.
A população de mortos supera mais de 90% das cidades brasileiras, que contam com menos de 100 mil habitantes, como informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os túmulos refletem a condição social e financeira de seus donos, além de, claro, o momento histórico em que foram construídos.
A pequena cidade dos mortos conta com uma organização impecável: há uma divisão por bairros, nomeada por Clarissa Grassi, tendo informalmente o Centro Histórico, Batel (bairro elegante de Curitiba), Bairro Urbanizado e a Periferia, que são compostos por tipologias tumulares em comum e, também, pelo que podem representar, socialmente falando. O Batel, por exemplo, ostenta os túmulos mais ricos, vindos de ervateiros, políticos e influenciadores. A Periferia representa um momento mais contemporâneo, com túmulos verticalizados e sem esbanjar.
A forma que o túmulo é construído mostra tendências decorativas de cada época; as decorações tumulares também sofrem mutação, assim como as casas da cidade. O Cemitério Municipal São Francisco de Paula é uma mescla de estilos. O período eclético, popular até os anos 30, pode representar bem o “Municipal”. Os túmulos eram marcados por ornamentações e objetos decorativos copiados de várias épocas, como a greco-romana. Ou invocam a religião e o cristianismo, com cruzes, anjos e elementos que representam as virtudes teologais (fé, esperança e caridade). Cúpulas, colunas e desenhos florais fazem parte dessas construções, vistas nos túmulos mais monumentais do local.
Foto: Cido Marques/SMCS
Conforme o tempo passa, o estilo neocolonial vem com tudo, buscando uma identidade brasileira, com arcos, beirando o barroco e alvenarias texturizadas. Passando pela art déco, alguns exemplares mostram as características volumosas, até de dois andares, com janelas e aberturas. Há também os indicativos do modernismo, que visava uma arquitetura funcional. Torcia-se o nariz para os enfeites. Mesmo os túmulos modernistas em essência serem poucos por ali, a racionalidade que une forma e função se reflete nos túmulos contemporâneos, verticais.
Atualmente, os adornos não estão em alta. É mais comum ver apenas cruzes e, no máximo, placas com nome do morto e um “saudades eternas”, minimal art. Os revestimentos, sobretudo, indicam quais as tendências arquitetônicas da cidade dos vivos. Sendo assim, se a tendência nos anos 2000 era porcelanato na cozinha de casa, voilà! pode esperar que alguém vai querer revestir o túmulo assim, para desespero dos estetas. Os prédios que caracterizam uma cidade moderna se expressam nos túmulos verticalizados, mais simples e menos adornados. Ninguém sabe como lâmpadas de LED ainda não chegaram por lá, talvez as cores não combinem com o cemitério. Os tons mais escuros e fechados, como o laranja tijolo unido ao roxo escuro presente nas paredes dos cemitérios municipais de Curitiba, trazem a sensação de intimidade com o espaço e, claro, do luto.
A estrutura do local conta hoje com três capelas (chamadas de Fraternidade Curitibana, São Miguel das Almas e Jesus Ressuscitado) e inúmeros quadros nas paredes do cemitério, no corredor em que ficam as capelas, com versículos ou poemas que visam acalentar os corações dos que ficaram. Até chegar no que se vê hoje nas necrópoles e nos costumes atuais da morte, muita coisa aconteceu. Foram anos até de fato criar o cemitério, convencer a população da necessidade de utilizar o espaço, estender o terreno e deixá-lo como exemplo para outras construções na cidade. Apesar da Carta Régia disposta no começo de 1800, só 50 anos depois a cidade de Curitiba cumpriu o que foi pedido no documento e deu início ao modelo de enterro visto agora.
Do pequeno cemitério com cercas de madeira até o grandioso ponto histórico, muita pedra rolou. Cassiana Lacerda bate nessa tecla inúmeras vezes, mas não culpa essa guinada nos costumes. A questão da pressa, da correria do dia a dia, ajudou a morte a ser invisibilizada, acessada apenas na hora que um dos nossos se vai. Sendo assim, visitar o cemitério acabou restrito a, no máximo, o Dia de Finados.
“A falta de convívio gerou um afastamento. A contemporaneidade exigiu um distanciamento da morte porque ela trava a vida. Tem que ser tudo rápido, assim como a cremação.”
A pesquisadora provoca com a pergunta: “onde foram parar os santinhos de papel que eram feitos em homenagem aos mortos?” Hoje são encarados como relíquia, há quem possa chamar até de brega.
“São ciclos. Não será mais igual antes, mas é possível se adaptar.”
Para Cassiana, o que deve ser feito agora é conscientizar sobre o papel cultural e histórico do Cemitério Municipal. Não é culpa das pessoas o distanciamento, inconsciente, da morte, mas é uma escolha não querer conhecer nada sobre o tema.
Há também os que não saibam quem está enterrado ali. Histórias como a da violinista Bianca Bianchi (1904-2002) passam em branco. A artista ascendeu na música após a irmã, musicista, Maurina Bianchi, falecer e seus pais colocarem também Bianca em aula de música, como uma homenagem e lembrança. Assim se formou uma das maiores violinistas paranaenses, que ganhou até um instituto de música com seu nome. A trajetória de Enedina Alves Marques (1913-1981), querida dos visitantes, primeira mulher a se formar em engenharia no estado, pela UFPR, e a primeira engenheira negra do Brasil, também é relembrada no cemitério. Multiplique essas histórias por mil – é o que basta para entender o fascínio que as visitas provocam. São epifanias com gente que viveu bem perto de todos nós, não raro na mesma rua da cidade dos vivos.
O enterro ad sanctos, o higienismo e uma nova era
Foi em 1º de dezembro de 1854 que o recém-instituído presidente da Província, Zacarias de Góes e Vasconcellos, fundou o Cemitério Municipal São Francisco de Paula. A necessidade de criar um espaço para enterrar os mortos se deu após um surto de varíola na cidade e a contaminação que podia vir nos enterros ad sanctos. Foi só quando, aproveitando o ditado, a corda apertou, que alguma providência foi tomada.
O primeiro cemitério público na província, assim como outros cemitérios do Brasil, não foi muito comemorado na época pelos cerca de 16 mil curitibanos que viviam na cidade, dado populacional apontado pelo viajante francês Saint Hilaire, que visitou as províncias do sul do país e documentou sua experiência. O costume de enterrar nas igrejas curitibanas estava firme e forte, predominante em quatro delas: a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, Igreja de Nossa Senhora doRosário, Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas e Igreja de São Francisco de Paula. Apesar da ligação direta do costume de sepultar com a busca da salvação das almas, uma discussão acerca da saúde pública surgiu. Um surto de varíola se fez presente nos séculos 18 e 19 e o enterro nas igrejas podia ser extremamente contagioso. O discurso higienista chegou com tudo em terras brasileiras. Basta dizer que São Paulo tem um bairro hamado Higienópolis.
Para ter direito a um enterro nas igrejas curitibanas, não bastava apenas querer. O processo era bem mais fácil se o indivíduo fizesse parte de uma irmandade, espécie de grupos restritos que indicavam seu status social e econômico. As irmandades eram detentoras dos terrenos de enterramento nas igrejas e todos os trâmites necessários para um cortejo digno de palmas.
Foto: Daniel Castellano/SMCS
Mas não era tão simples assim ser membro de uma delas. Os grupos tinham critérios próprios que determinavam quem poderia fazer parte, assim como as ordens dentro da sociedade e valores instituídos. A Igreja Matriz, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas, a Capela São Francisco de Paula e a Capela de Nossa Senhora do Rosário possuíam irmandades próprias, sendo a última capela destinada exclusivamente para negros, visto que as irmandades brancas segregavam racial- mente as participações.
O primeiro registro oficial sobre a necessidade de criação de um cemitério em Curitiba se deu em 1829. O pessoal da Câmara não estava tão preocupado com questões relacionadas à saúde na pequena província, mas sim com a pressão da discussão higienista que estava acontecendo nos decretos imperiais havia um ano. Apesar disso, o assunto só foi retomado em 1830, sendo adiado mais algumas vezes até que em 1838 a obra começou a ganhar mais atenção.
Mas, adivinhe: só depois de 12 anos, em 1850, as coisas começaram a andar. A dificuldade em começar a construção era sempre justificada com falta de fundos e também de necessidade, já que os chamados “bexiguentos” poderiam muito bem ser enterrados no Cemitério Sítio do Mato, o primeiro e específico para quem morria de varíola. Até que sob supervisão de Benedito Enéas de Paula, em 1854, enfim as obras do cemitério começaram num terreno obtido pela Câmara. Cinco meses depois, o Cemitério Municipal São Francisco de Paula estava pronto. As informações podem ser encontradas no livro Tombo da Matriz, do bispo diocesano dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, de 1882. O documento possui uma parte específica tratando da abertura do cemitério. São fontes como essa que Clarissa Grassi destrinchou para suas pesquisas e traduziu num enredo que conta a história da necrópole mais antiga de Curitiba. O enredo faz parte de seu livro Memento Mortuorum (2016).
O bairro São Francisco
Apesar de parecer um assunto tranquilo, demorou para o Brasil e, mais especificamente Curitiba, finalizar os enterros ad sanctos. Ninguém queria cogitar a ideia de ter seus “direitoscelestiais” barrados. Mesmo com a inauguração do Cemitério Municipal São Francisco de Paula, em 1º de dezembro de 1854, somente em setembro do ano seguinte o primeiro sepultamento foi realizado. Delfina Antonia de San Paio, viúva de 86 anos, inaugurou o primeiro cemitério público curitibano. Abriu, as- sim, a porta para novos sepultamentos, aumentando pouco a pouco o fluxo de enterros por ali.
Localizado na Praça Padre João Sotto Maior, no Bairro São Francisco, o endereço tinha um motivo. Além de o cemitério ser um terreno que, segundo consta nos documentos oficiais, era a “chácara do Padre Agostinho”, vigário em atuação na época, localizava-se num ponto alto da cidade. O espaço permitia uma visão de todo o Centro, visto que ficava a 963 metros, em linha reta, do Marco Zero – a atual Praça Tiradentes e sede da Igreja Matriz. A crença de que, pela altura, a grande difusão de ventos existia foi essencial para a decisão, visto que se acreditava que os miasmas liberados pelo corpo humano poderiam se dissipar nessas condições, e ventilar poderia ser, de certa forma, uma decisão mais sábia, higienicamente falando.
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O bairro São Francisco – germânico nas suas origens – abriga pontos que agradam os matutinos e os notívagos. As principais baladas curitibanas ficam no seu perímetro, assim como a frequentada rua que conta com seu mesmo nome, parceira da Rua Trajano Reis. É o point dos alternativos, os curitibanos que ouvem A Banda Mais bonita da Cidade. Quem prefere um passeio mais família pode frequentar a Feirinha do Largo da Ordem, com dezenas de barraquinhas com artesanatos, relíquias antigas, sebos ao ar livre, pastel com caldo de cana e música ao vivo feita pelos artistas de rua. Guarda também, ao lado do cemitério, a Pista do Gaúcho, pioneira para os skatistas, onde tráfico de drogas e sorvetes em família convivem pacificamente.
O pequeno vizinho dos bairros Centro, Mercês, Bom Retiro e Centro Cívico é grandioso na sua história. Parte do Centro Histórico de Curitiba, mesmo que seus ambientes sejam em maioria estabelecimentos culturais e comerciais, ainda é possível notar algumas casinhas espalhadas espaçosamente por ali e alguns prédios residenciais que podem ser classificados como nanicos, se comparados aos arranha-céus de outras regiões. Alguns estabelecimentos preservam a arquitetura original, do século 20, com influências ora alemãs, ora portuguesas. O Centro Histórico foi, no início da pequena vila que deu origem à grande capital que vemos hoje, responsável por uma das principais vias de entrada, visto que os viajantes poderiam chegar pela Rua Claudino dos Santos/Jaime Reis quando vinham pelo hoje típico bairro italiano Santa Felicidade.
Foto: Daniel Castellano/SMCS
O São Francisco é quase um museu a céu aberto, para quem deseja conhecer mais sobre a Curitiba de antigamente e se envolver na mensagem cultural que o lugar proporciona. É curioso pensar que o bairro é superfrequentado, menos no seu, literalmente, ponto mais alto, visto que o cemitério não é tão propriamente adequado quanto as baladas. O CemitérioMunicipal São Francisco de Paula faz parte do conjunto e, as- sim como o bairro, reflete a história de Curitiba. Uma verdadeira necrópole no velhinho bairro São Francisco.
A história vai além da cerca
Num primeiro momento no século 19, o Cemitério Municipal São Francisco de Paula possuía uma cerca de madeira, num perímetro inicial de 143 x 63 metros. As coisas mudaram, a área se estendeu, as quadras foram crescendo e os sepultamentos avançando. Nem seu nome era o mesmo; anteriormente, o local era conhecido como Cemitério Público de Curitiba, sendo legalmente nomeado pelo que conhecemos hoje somente em 1958, junto com regras mais formais sobre enterros, concessão de terrenos e exumação de cadáveres. Até 2019, a necrópole acompanhou o crescimento da capital paranaense e as principais mudanças arquitetônicas que vinham junto dela.
Provocada pelo sentimento público de desagrado com o estado de abandono do cemitério, Clarissa Grassi ficou ainda mais inspirada a começar seus estudos sobre o local. Pegou sua câmera e saiu fotografando os túmulos e detalhes que mais chamaram a sua atenção. Não bastava apenas fotografar e descobrir quem estava enterrado ali: saber a pedra usada, o significado de cada adorno e as origens que motivaram aquela construção são peças chave da sua pesquisa. As descobertas de Clarissa eram como infindáveis portas visto que, quando ela descobre uma coisa, mais dez vêm juntas. Foi a partir da sua curiosidade que se tornou um ícone e quase um GPS para o que for preciso encontrar dentro do cemitério.
Montou um time. Contou com consultoria em Pesquisa Histórica de Deborah Agulham Carvalho, em Arquitetura de Fábio Domingos Batista e em Geologia de Antonio Liccardo. Foi assim. em equipe, que reinventou o que se vê no local. Além de gastar horas em cima de documentos antigos e testar sua resistência a poeira, Clarissa atuou como “salva-vidas” diversas vezes. Primeiro, curou dados que poderiam ser perdidos com o tempo ou ignorados, como números de sepultamentos antigos. Depois, foi a salvadora de vários túmulos históricos, que possuíam elementos arquitetônicos que remetiam, com primor, a épocas passadas e ajudavam a formar o conjunto total. Prestes a serem revertidos para a prefeitura, poderiam ter sido demo- lidos. Com o sufoco descobriu, assim como num trabalho de Sherlock Holmes, onde estavam os responsáveis por aqueles espaços.
Em momentos como esse, a pesquisadora suspira quando fala, demonstrando, num olhar, a paixão pelo que faz. No dia em que contou tal saga, estava empolgada porque minutos de- pois daria a notícia para uma senhorinha de que sua preocupação estava sanada: o túmulo da sua família é um dos que serão tombados dentro do conjunto do cemitério. Um alívio para a idosa que, meses antes, ofereceu o local de descanso eterno para Clarissa, porque sabia que ela cuidaria bem do que tanto valia sentimentalmente para si. Tinha medo que ninguém mais cuidasse.
Foto: Daniel Castellano/SMCS
No começo do cemitério, os primeiros “moradores” que chegaram por lá antes do século 20, descansam nos seus túmulos individuais. Enterrar somente um se tornou essencial após o fim dos enterros coletivos nas igrejas; era uma época de individualizar quem morreu, trazer uma identidade para seu local de descanso eterno. As primeiras 20 quadras se dividem: o lado esquerdo é de Centro Urbanizado e o direito de Centro Histórico. Nessa segunda área, as chamadas Estelas e Oratórios são vistas até de longe, apontando sua existência toda trabalhada em mármore, de preferência com alguma figura que represente o cristianismo ou as virtudes teologais. Os quadradinhos, chamados de sepulturas, são a maioria nos dois lados e preservam detalhes típicos do século 19. Nessa área, Clarissa salva, com frequência, um túmulo ou outro porque, mesmo com a família não preservando, a importância do jazigo continua.
A concessão dos túmulos nos quatro cemitérios municipais da Capital (São Francisco de Paula, Água Verde, Boqueirão e Santa Cândida) mantém uma regra clara: se é seu, cuide. Ter um terreno no cemitério dá o direito de enterrar quem quiser e é de uso perpétuo, desde que seja feita a manutenção daquela sepultura. Quando o túmulo fica em ruína, sem conservação, a Prefeitura Municipal de Curitiba publica num jornal de grande circulação sobre a necessidade dos concessionários de arruma- rem o local. Caso ninguém se manifeste, a prefeitura concede o lote para o próximo da lista de espera. Este deve ser morador de Curitiba e não ter outro terreno em algum cemitério municipal. Quando concedido, o novo dono deve pagar as taxas necessárias, demolir o túmulo antigo, recolher a ossada existente e limpar o terreno. Todo esse processo tem tempo para acontecer: 120 dias. Não é uma aquisição rápida, é preciso ter paciência.
As reversões mais recentes, em 2019, aconteceram nos cemitérios Santa Cândida e Boqueirão, sendo o primeiro o maior da capital paranaense. As novas inscrições para concessão estão suspensas até que todos das listas anteriores serem contemplados. Ao andar pelo Cemitério Municipal São Francisco de Paula, encontram-se vários túmulos que aguardam seus donos, com recados pendurados avisando sobre o risco de perda do espaço. Há papéis que, mesmo encapados com plástico, já se desfazem de tanto esperar um retorno.
Foto: Larissa Nicolosi
Continuando a caminhada, explorando o lado direito, encontramos a “Santa municipal” Maria Bueno, e sua vizinha Eunice, que morreu ainda criança por meningite, e também realiza pequenos milagres para quem crê. Um pouco para frente, um descontentamento quase cômico pode ser visto num dos túmulos em que constava o nome do patriarca, da matriarca e de seus filhos; o detalhe é que os descendentes ainda estavam vivos, mas com nome e profissão já marcados na sepultura, só aguardando a última lacuna a ser preenchida. Tempos depois, os nomes foram apagados e só ficaram lá os de quem já havia morrido, mesmo. No corredor, o lado esquerdo dá boas vindas: não é preciso estar muito atento para se deparar com a alegoria no túmulo da tradicional família Canet, típica dos cemitérios paulistas, que retrata todo o sofrimento do luto, através da escultura de bronze de uma mulher com longos cabelos debruçada no jazigo.
Os detalhes das esculturas e adornos podem revelar a descendência do falecido e seus apegos à religião ou alguma crença. Mesmo com as quadras e ruas que mudam de largura, a necrópole segue um padrão arquitetônico que desenha a história curitibana. Falando em desenho, história e Curitiba, Key Imaguire Junior é um dos arquitetos mais procurados quando o assunto é patrimônio. Sua casa, no arborizado bairro das Mercês, vizinho do bairro São Francisco, é repleta de objetos que dão leveza ao ambiente e demonstram sua paixão por cultura e viagens. Ele e sua mulher, a também arquiteta Marialba Imaguire, não deixam de conhecer os cemitérios dos lugares que vão, porque, para o arquiteto, dizem muito sobre uma cidade.
Apesar de cada lugar ter sua história, a dinâmica arquitetônica dos túmulos é evidente. Ao falar do Cemitério Municipal de Curitiba, Key não deixa de observar e explicar com gestos como o local cresce: nas primeiras quadras, há capelas e enterros individuais, enquanto ao fundo, o moderno toma conta. Ele brinca, mas não discorda da própria piada, numa autoironia à aversão que sente por certas modernidades:
“A pessoa não mora em prédio quando tá viva, mas mora depois de morta.”
Os “predinhos”, apelido cômico para os túmulos verticalizados, capazes de servirem até para mais de quatro mortos, fazem parte da tendência atual de sepultamento. Isso se reflete na Curitiba que modernizou e urbanizou, tendo que repensar sobre novas formas de ocupar espaços e, principalmente, maneiras de levar praticidade para as construções. Nesse momento, a estética não é mais tão adornada quanto nas fases antigas. Sabe o ditado “não precisa ser bonito, precisa ser útil”? Pois é.
Se a tendência vertical explora seus destaques no máximo com cruzes, revestimentos do momento e placas trabalhadas, no “Batel” do Cemitério São Francisco de Paula isso seria pouco. O Batel dos vivos, conhecido por ser o bairro mais tradicional de Curitiba, ainda sede de mansões de famílias abastadas e sede do shopping “chique” da cidade – o Pátio Batel, endereço das lojas Prada e Louis Vuitton –, é refletido no Batel dos mortos. Não ficando atrás do xará, o local conta com construções espaçosas e que chamam a atenção pela arquitetura maior que muito apartamento do Centro. São túmulos com cara de palacete. Os mausoléus, com terrenos que chegam a mais de 100 metros quadrados, demonstram a grandeza e o status de ervateiros, políticos e personalidades que não quiseram fazer de sua morada eterna algo imperceptível.
Localizados principalmente ao lado esquerdo do cemitério, não deixam de mostrar sua imponência, sobretudo por pertencerem a famílias tradicionais do estado e com alguma influência, como os políticos Erasto Gaertner e Vicente Machado; os intelectuais Victor Ferreira do Amaral e Julia Wanderley; e os ervateiros Ivo Abreu Leão e Ascânio Miró – todos ilustres da primeira metade do século 19 à primeira metade do século 20. Dos 163 mausoléus presentes no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, 98 ficam no Batel, deixando o bairro nobre com mais obras de arte (como uma escultura em bronze feita na Itália) e divisão social clara.
Os mausoléus possuem uma dinâmica diferente de enterro, por serem jazigos de grande profundidade. Quando colocada no lugar, a pedra retirada para o enterro transforma o local numa grande sala que permite aos parentes organizar o espaço como bem preferirem. Nessa área encontramos também o último exemplar de túmulo paranista, representante de um movimento que, da mesma forma que apareceu, acabou – devido ao modernismo. O paranismo veio no período de 1920 a 1930, com uma vontade incessante de mostrar a identidade paranaense. O que simbolizava esse movimento era o pinheiro, a pinha, o mate e a paisagem, representados em fachadas das casas na região central, no último túmulo e também nas famosas calçadas de petit pavê.
A dinâmica muda a partir do túmulo da Família Hauer, clã imigrante alemão que chegou a ser dono de 40% da cidade. É um dos que mais chamam a atenção, devido ao seu magnífico portal que transmite a ideia de “passei de uma vida para outra”. A periferia, última área de ampliação do cemitério, começa a dar as caras. Apesar da predominância dos “predinhos” indicados por Key, vê-se um jazigo capela (aquele com porta e um altar pequeno dentro, bem menor que um mausoléu) ou os volumosos jazigos monumentos, que investem em obras de arte que fogem da ideia sacra. Nessa área, o enterro de mais de um indivíduo fica evidente, com gavetas expostas e que sobem até quatro “andares” de cada lado, podendo guardar oito falecidos no espaço. Passeando por ali, encontramos o local de descanso da dupla de música
de raiz Nhô Belarmino & Nhá Gabriela (do sucesso nacional “As mocinhas da cidade”) e dos artista plásticos Alfredo Andersen – norueguês que ostenta o título de “pai da pintura paranaense” – e a modernista Violeta Franco, para citar dois.
Ao todo, sete referências arquitetônicas estão espalhadas na necrópole. Cada uma demonstra a Curitiba que lidava com a morte de formas diferentes e temporais; desde a forma mais exuberante, com a morte adornada, até o que vemos hoje, de uma maneira mais discreta e prática.
Cabem oito embaixo da pedra pesada
“Eu tenho medo é dos vivos” é uma fala unânime entre os funcionários do Cemitério Municipal São Francisco de Paula, acostumados com o ambiente. Entre eles, o silêncio só existe na hora de atender alguma família enlutada ou alguma situação semelhante. Fora disso, o clima é contagiante, com planos para a folga, comentários sobre a novela e, claro, piadas prontas. O craque nisso e, “a pessoa mais legal que você encontra aqui”, nas suas próprias palavras, é Sebastião da Silva. Ele não conta diretamente a idade, mas se orgulha de ser o pedreiro mais antigo do local. Está na área desde os anos 1960, quando o cemitério mal havia completado o centenário.
Durante a entrevista, que aconteceu no setor administrativo, pergunta pro pessoal:
“Tem um café?”
“Só chá de hibisco.”
“Não conheço, em Ibaiti não dá essas coisas.”
Foto: Jaelson Lucas/SMCS
Após olhar meio desconfiado, aceita o chá. Está acostuma- do com o que conhece na cidade natal, a pequena paranaense Ibaiti, no chamado Norte Pioneiro, antiga região cafeeira. Depois de duas ou três piadas com algum fato que o distraiu durante as perguntas, responde que conhece o cemitério tanto quanto sua casa. Ao tirar o seu cartão do bolso, com uma foto de quando era jovem, explica que, caso precise, faz uns serviços por fora, como o recolhimento de restos mortais em outra cidade. Gaba-se que rodou o Brasil inteiro com seu Fiat Uno, carro que nunca o deixou na mão e o leva do litoral para a capital em pouquíssimo tempo. Ele insiste que eu fique com um cartão, vai que precisa.
Viu gente ir e vir, seja nos enterros ou na vida profissional e diz ter visto de tudo, menos assombração. Por coincidência, conta que o caso mais curioso que viu foi uma briga por herança, ocorrido no Cemitério Municipal. O fuzuê foi feio. Aconteceu entre 2012 e 2019, ninguém sabe dizer ao certo. A questão é que um fazendeiro influente e rico morreu e, quando isso aconteceu, o velório virou palco para divisão de herança e discussões sobre quem merecia mais, quem merecia menos. O bate-boca piorou e a pancada não discriminou ninguém, colocando a família toda para separar, ou, na pior das hipóteses, bater. Rindo, os funcionários contam que foi coroa de flor para tudo quanto era lado, castiçal com vela, também. A situação cessou só quando a polícia chegou. O morto quase ficou sozinho, já que grande parte da família foi parar na delegacia.
Quando questionado sobre o que fez, Sebastião falou rindo:
“Ah, eu fiquei olhando, ué.”
Não foi o único. Maria da Silva e Inês de Jesus, proprietárias das floriculturas da direita e da esquerda do portal, respectivamente, não tiraram o olho da discussão. Logo depois de contar “o causo”, Inês fala que, apesar de na maior parte do tempo o emprego ser tranquilo, o mercado das flores não anda bem. O costume de adornar com flores e garantir o vaso de crisântemos no cemitério perde força com o livre acesso que os mercados possuem em vender as plantas, ainda por um preço mais barato. A dengue é uma inimiga responsável por promover a adesão em massa das flores artificiais nos cemitérios. Para Inês, são 43 anos vendo as coisas mudarem e tendo que se adaptar. Mas, agora, a intenção é correr atrás da aposentadoria e trabalhar até onde der. A mulher de cabelos clareados, magra e amante de tons cintilantes para sombrear os olhos, agora quer descansar.
De modo geral, os funcionários mais antigos precisam confiar nos “forasteiros”, como ainda se diz no Paraná, para conversar. Primeiro eles observam e até ousam perguntar o que se precisa. Quando a confiança vem, Maria, a senhora de cabelos curtos e esbranquiçados, e que não abre mão de um cobertor quentinho nas pernas, também fala o quanto é difícil viver das flores. Nem sempre foi assim. A venda já esteve lá em cima, mas, atualmente, está difícil. “Eu vou tentando até dar certo”, fala, enquanto olha atentamente, procurando seu gato, o Chiquinho. Ele é a sensação do local. Entra nas capelas, anda por todo cemitério e encara o lugar como se fosse seu. Tem dias que nem quer vir embora, de tanto que gosta. A relação é recíproca, o gato preto de dona Maria, que já teve vários felinos, sempre da mesma cor, ganha carinhos na cabeça por onde passa, distrai as crianças e consola os adultos.
Quando se desce as escadas e chega no Serviço Funerário Municipal, não se sabe o que esperar. Há momentos em que a pequena sala está com todas as mesas lotadas de representantes que perderam alguém. Há outros instantes em que não há ninguém. Ali o pessoal gosta mais de conversar. É o caso de Eunice Izaías, que vê na função de agente administrativa uma oportunidade de entender melhor sobre os processos que envolvem a morte e, claro, a vida, quando precisa lidar diretamente com famílias enlutadas. Consenso entre todos, ela também diz que acostumou com a função e não deixa mais a emoção ser primordial como antes. Na mesma hora que diz isso, explica que, ainda assim, tem coisas que a abalam. Quando chegam fichas de criança, por exemplo.
“Eu não posso me abalar, sabe? Tem coisas que mexem, mas eu não posso desmoronar. Alguém tem que fazer esse serviço.”
Quando chega à casa, ajuda a neta a fazer doces para vender na escola, uma forma de distrair e deixar para lá o que viu e sentiu durante o expediente.
Os funcionários tornam o cemitério como a sala de casa. A entrevista com a administradora do cemitério, Rita de Cássia Buczak, foi feita na pequena praça que divide o Centro Histórico do “Batel”. O ambiente se tornou tão rotineiro que até quem vem visitar seus familiares é reconhecido pelos funcionários.
Ela fala alto, gesticula, tem na casa dos 40 anos a energia dos 15. Só nessa entrevista, pelo menos quatro vezes Rita cumprimentou algum conhecido. Não pense que é apenas um tchauzinho: aqui todo mundo se reconhece pelo nome, ou, em outros casos, “também pela quadra”, como se brinca por lá.
Quando dizem que têm medo dos vivos, falam diretamente da violência urbana. Francisco de Paula (podem acreditar, o nome não é coincidência), já idoso, zelador e ajudante dos pedreiros do cemitério, diz que o que o preocupa não são as pessoas em situação de rua que dormem nos fundos do local, mas sim os “acordados”, que se escondem atrás das sepulturas e vez ou outra cometem algum delito. Com ele, nada de ruim aconteceu, mas não aconselha que se perambule por ali sem prestar muita atenção. Além dos roubos, furtos de placas de bronze e esculturas também são comuns, pelo valor que as peças representam no mercado. Para os funcionários, o que acontece ali nesse quesito, também reflete a cidade. Dizem:
“Onde é que estamos seguros, na verdade?”
Após o desabafo, Francisco convida para ver uma sepultura aberta, na Periferia. Ele guia até lá, com passos rápidos e corpo levemente franzino. O espaço em questão é o das irmãs da Divina Providência. Aguardava a vinda de mais uma freira que dedicou toda a sua vida ao claustro. Depois de retirar a pedra pesada, cerca de oito gavetas, quatro de cada lado, podem ser utilizadas. Diferente de seu Sebastião, ele não ganha mais conforme a dificuldade do serviço, já que seu contrato é direto com a Prefeitura de Curitiba e sua missão principal é manter o local em ordem. Ele é quem tira as garrafas de cerveja colocadas por alguém entre os túmulos. Na rotina de Francisco, cada dia é de um serviço: na segunda, retira as folhas de árvore e mantém a varredura impecável. Nos outros, alinha as necessidades do cemitério com seu tempo e assim vai.
Seu Sebastião conta que cada mausoléu, apesar do trabalho que lhe dá, o deixa feliz. É o tipo de construção mais cansativa, mas é a que mais rende, com preços que chegam a 600 reais. O valor do sepultamento é um dos obrigatórios que as famílias precisam desembolsar na hora do falecimento; o valor inicial é cerca de R$ 95 e varia conforme a mão de obra que o serviço exige. Um dos maiores problemas para os pedreiros está sendo a mudança de massa corporal dos falecidos. Eles brincam que agora a largura é devido à alimentação menos natural e logo vem o famoso bordão: “Na minha época não era assim”.
Em resumo, os mortos engordaram.
Verdadeiramente RP dos mortos
Para Clarissa Grassi, a graça da vida é o ciclo. Aquela coisa de ir e vir, de cair e levantar. Passou vários perrengues, como a não aprovação nas primeiras tentativas no mestrado e noites em claro para entregar suas pesquisas, para conseguir visibilidade a seus projetos. Além da determinação, uma outra característica a ajudou:
“Não que eu tenha a maior autoestima do mundo. Mas nunca permiti que ninguém duvidasse do meu conhecimento.”
E conhecimento ela tem, sim senhor. É autora de três livros: Um olhar… a arte no silêncio, de 2006, em que aborda a arte tumular do Municipal por meio de fotografias; o Guia de Visitação ao Cemitério Municipal São Francisco de Paula – arte e memória no espaço urbano, de 2014, que conta sobre 99 personalidades que estão enterradas no “Municipal” a partir dos trajetos que a autora convida o leitor a participar. O mais novo livro é de 2016, chamado Memento Mortuorum – Inventário do Cemitério Municipal São Francisco de Paula, no qual faz um apanhado sobre tudo que é preciso saber do local: tipos arquitetônicos, bairros, cultura da morte e nascimento dos cemitérios. Nessa obra há até um mapa do cemitério, separado por tipologias tumulares.
Além das obras, Clarissa é mestra em Sociologia pela UFPR e coleciona participações em seminários e grupos de pesquisa cemiterial e, sobretudo, arte tumular. Foi presidente de uma gestão da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, a Abec. Para facilitar a vida de quem quer começar a entender mais sobre os temas, alimenta um site vinculado a seu segundo livro, interativo e que reproduz um pouco do que ela fala nas visitas guiadas. É uma referência: falou de morte, falou de Clarissa. Falou da vida que os mortos tinham, falou de Clarissa.
Clarissa se impõe firme diante de tudo que pesquisou. No grupo do Facebook “Antigamente em Curitiba”, é sempre a mencionada para dar o veredicto se a informação sobre o cemitério ou um de seus “mortinhos” que foi colocada ali está correta. De 2011 a 2016 fez as visitas guiadas de forma voluntária, sem nenhum vínculo empregatício. Nesse tempo, pesquisou ainda mais, fez livros, deu entrevista e, um dia, na gestão do prefeito Rafael Greca de Macedo, eleito em 2016, foi convidada para fazer parte da Fundação Cultural de Curitiba. A FCC, como se diz, é a secretaria da cultura do município, nacionalmente conhecida por sua excelência, em especial, no que diz respeito ao patrimônio histórico. Depois disso, Grassi foi aperfeiçoando ainda mais seu conhecimento, lapidando assim como as estátuas e alegorias que estudava.
Foto: Luiz Costa/SMCS
Por muito tempo, virou a responsável pelos mortos do “São Francisco”. Em 2019, assumiu a direção do Departamento de Serviços Especiais da Prefeitura. Agora está a par dos 24 cemitérios da capital paranaense, das 1.409 mortes que acontecem por mês e de todas as confusões que ocorrem nesse meio tempo. Má conduta de funerária, liberação complicada de corpo, enterros de carentes e indigentes. Agora a resposta final é sempre a dela. O trabalho pode ser prático, com decisões e processos, mas a sua consciência permanece: mesmo sendo corpos, são de pessoas, de alguém que viveu. Todo respeito e sensatez é necessário para tomar a melhor decisão.
A rotina mais cansativa não tira a empolgação com que ela conta sobre a nova função, afinal, nem sequer imaginou que chegaria onde está hoje. Sua mesa de trabalho é composta por vários objetos de caveirinha: caneca, caneta, bloquinho… as caveiras são suas companheiras inseparáveis. Dessa forma, dificilmente fica a sós com a sua vista, que mostra o cemitério inteiro, com Maria Bueno logo na frente. Toda hora alguém aparece entregando algum papel, perguntando ou contando alguma coisa.
Estando na função, pode lutar pela resolução de problemas que via anteriormente, mas não tinha poder de consertar. Isso vai desde coisas pequenas, como espaços maiores em fichas de descrição cemiterial até outras otimizações nos processos. Brinca:
“Agora, mais do que nunca, eu sou RP mesmo.”
Antes era relações públicas dos mortos e hoje é tanto deles quanto dos vivos. No cargo, consegue ir atrás de interesses que valem para outras pessoas e classifica isso como recompensa- dor, quando há famílias que mantêm um carinho e gratidão pela pesquisadora, quando salva túmulos ou resgata histórias.
Diz que não foi a morte que mudou sua vida, mas sim os mortos. Seguindo a linha dos colegas de trabalho, também faz piada com o assunto, dizendo que a morte não poderia mudar nada, já que elas ainda não se conhecem. Quando chegar a hora, irá saber. A pergunta não cala e chega na entrevista: qual é a visão de morte de Clarissa Grassi?
Nessa hora, não há certeza que possa ser dita. A pesquisadora pega um pouco de cada religião e faz uma crença só dela, com suas definições e anseios. A finitude, para Clarissa, é difícil de ser pensada; deve ter algo depois, tem que haver, para ela. Essa vontade se justifica pela racionalidade que é dada ao ser humano conforme seu tempo no planeta. Soa estranho pensar que toda essa racionalidade acabe. Filosofa:
“Deve ser por isso que a gente acredite tanto. A morte é uma afronta à racionalidade humana.”
Fecha o assunto. Olhamos para o relógio e passa das 17 horas. Batemos o final do expediente; Clarissa mostra mais umavez sua paisagem que, num céu alaranjado de final de tarde, parece iluminar o conjunto de túmulos. Apesar de toda a paixão contida ali, precisa descansar.
É hora de ir para casa.
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Larissa Nicolosi – Jornalista formada pela UFPR, estudiosa de cultura da morte e contadora de histórias.