1913: A REPÚBLICA QUE RIA, SOFRIA E SE CURAVA — CARICATURAS, REMÉDIOS E O HUMOR DOS TEMPOS
📰 1913: A REPÚBLICA QUE RIA, SOFRIA E SE CURAVA — CARICATURAS, REMÉDIOS E O HUMOR DOS TEMPOS
PÁGINA 1 — O HUMOR SARCÁSTICO DO “BARCELLOS” E DO “JUIZ FEDERAL”
🔹 Caricatura Superior: “SABES O QUE O BARCELLOS E O QUADROS VÃO REQUERER?”
Na parte superior da página, uma caricatura em traço firme e expressivo mostra três figuras em plena conversa de rua: dois homens de terno escuro, chapéu-coco e bengala, e uma mulher elegante entre eles, com vestido longo, luvas de renda e um chapéu adornado com plumas. O diálogo é o centro da cena:
— Sabes o que o Barcellos e o Quadros vão requerer?
— Pois vão requerer perante o Juiz Federal um habeas-corpus contra a prisão de ventre.
A piada, aparentemente simples, carrega camadas profundas. “Prisão de ventre”, na linguagem popular, significava constipação intestinal — mas no jargão jurídico, “prisão” evocava imediatamente o sistema carcerário e as arbitrariedades da justiça. A caricatura ridiculariza políticos ou advogados que usavam mecanismos legais até para resolver questões ridículas, expondo o absurdo burocrático da jovem República.
Os rostos são exagerados, mas reconhecíveis: o bigode retorcido, o olhar de canto de olho, o queixo saliente — tudo típico do estilo de caricaturistas da época, como Raul Pederneiras ou Lima Campos. A mulher, embora em segundo plano, observa com um meio-sorriso irônico, sugerindo que até mesmo os espectadores comuns já percebiam a farsa.
🔹 Caricatura Inferior: “ESTÃO, ANIMAL, PUERSTE NO CORREIO A CARTA SEM SUBSCRITO?”
Logo abaixo, outra cena de rua: um cavalheiro de fraque e gravata-borboleta segura uma carta em mãos, visivelmente frustrado. Diante dele, outro homem, mais jovem, de óculos redondos e cabelo liso, responde com timidez:
— Sim, senhor, é que eu julguei que fosse uma carta anônima...
O erro gramatical — “puerste” por “puseste” — e a confusão entre “sem subscrito” (sem endereço) e “anônima” (sem remetente) revelam um tema recorrente na imprensa humorística de 1913: a ascensão de uma classe média letrada, mas ainda insegura em seus gestos de distinção. O humor não é apenas linguístico; é social. É a crítica às pretensões de modernidade sem substrato cultural verdadeiro.
O desenho é mais simples, quase teatral, com poses exageradas: o dedo apontado em acusação, os olhos arregalados do subordinado. Tudo feito para provocar o riso, mas também a reflexão.
PÁGINA 2 — PREOCUPAÇÕES MODERNAS: AMOR, MEDO E LIBERDADE
🔹 Caricatura Superior: “PREOCUPAÇÃO MODERNA”
Num banco de praça, sob árvores estilizadas, um casal dialoga com seriedade inusitada para uma cena amorosa. O homem, de chapéu panamá e terno de verão, pergunta com esperança:
— Estás a arquitetura não pretende casar?
(Aqui, “arquitetura” é claramente um erro tipográfico ou um trocadilho deliberado — provavelmente deveria ser “arrependida” ou “apreensiva”.)
A jovem, com vestido branco de mangas bufantes e colar de pérolas, responde com voz baixa, quase temerosa:
— Talvez, mas tenho medo de uma cousa...
— Do que?
— De logo ficar exposta de marido.
A expressão “ficar exposta de marido” — hoje arcaica — significava ficar sob o domínio absoluto do cônjuge, perder a liberdade de ação, de opinião, de movimento. A caricatura, embora breve, é uma das mais reveladoras do período: mostra que, já em 1913, mulheres das camadas urbanas questionavam o casamento como instituição de submissão.
Seus traços são suaves, mas firmes. Ela não desvia o olhar. Não sorri. Há dignidade na hesitação.
🔹 Caricatura Inferior: “NOS BRAÇOS DE MARYPHEN”
A cena muda para um ambiente doméstico ou de lazer: um homem de barba grisalha, óculos de aro metálico e roupão de casa está reclinado numa espreguiçadeira, lendo um jornal. Ao fundo, janelas abertas e folhagens sugerem um sobrado urbano confortável.
A legenda é enigmática:
Quando se diz a expedição na Estrada de Ferro, de 2 horas de tarifa, falam sobre o constitucionalismo doméstico e coisas assim. Dizem pessoas: — Nos braços de Maryphen.
“Maryphen” não é um nome real — é uma invenção fonética, uma brincadeira com nomes estrangeiros então em voga (como Mary, Magdalene, ou mesmo morphine — morfina). A expressão “nos braços de Maryphen” ironiza o refúgio no conforto doméstico ou na rotina, como se fosse um êxtase passivo. Enquanto o país discute ferrovias, constitucionalismo e progresso, o cidadão médio prefere o ócio sob seu abajur.
PÁGINA 3 — O DR. PÃO DE PHOSPHORE: ABSTENÇÃO COMO CRÍTICA
🔹 Caricatura Principal: “O DR. PÃO DE PHOSPHORE”
Três figuras preenchem a cena:
Um homem robusto, de chapéu e cachimbo, pergunta com desdém:
— Então não pretende votar na eleição para presidente, Ribeiro?
Um homem magro, de óculos e rosto pálido, responde com ironia:
— Para essa coisa de eleição eu sou Pão de Phosphore...
Um terceiro personagem, de perfil, segura um cartaz com a frase:
Estes automóveis, com toda esta velocidade com que andam pelas ruas, correm mais do que a polícia.
“Pão de Phosphore” (ou “pão de fósforo”) era um termo popular para designar algo inútil, frágil, de pouca duração — algo que acende por um instante e se desfaz. Aplicado à política, o termo sugere: “não sou tolo o bastante para acreditar que meu voto muda alguma coisa”.
A caricatura é uma crítica à farsa eleitoral da Primeira República, dominada pelas oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. A menção ao automóvel — símbolo máximo da modernidade — contrasta com a inércia da polícia e da justiça, reforçando a ideia de que o progresso técnico não veio acompanhado de justiça social ou eficiência estatal.
O “Dr. Pão de Phosphore” usa uma máscara de papel sobre o rosto — metáfora poderosa: os políticos usam máscaras, mas quem se recusa a jogar também se esconde.
PÁGINA 4 — ANÚNCIOS DE REMÉDIOS: A SAÚDE COMO NEGÓCIO
🔹 Anúncio Superior: “ELIXIR DE MAISTRUGO”
Grande parte da última página é ocupada por anúncios de medicamentos “milagrosos”, típicos da época, quando a regulamentação sanitária era quase inexistente.
O destaque é o Elixir de Maistruco, prometido como “remédio soberano contra todos os males do estômago, fígado e intestinos”. A ilustração mostra um frasco de vidro âmbar com rótulo elaborado, cercado por folhas de plantas e um brasão fictício. O texto alega:
“Recomendado pelos maiores médicos da capital. Cura dispepsia, cólicas, prisão de ventre e até melancolias nervosas.”
O uso de termos como “melancolias nervosas” mostra como a linha entre corpo e mente era tênue — e como a indústria farmacêutica já explorava ansiedades profundas com promessas fáceis.
🔹 Outros Anúncios
- Pastilhas Anticatarrhais Dr. Ribeiro: para “tosse, rouquidão e opressão do peito”.
- Óleo de Fígado de Bacalhau com Limão: “fortificante para crianças e convalescentes”.
- Água de Cheiro “Flor de Laranjeira”: “para perfumar lenços e acalmar os espíritos”.
Esses produtos revelam uma sociedade em transição: ainda dependente de remédios caseiros e ervas, mas seduzida pela ciência moderna — mesmo que ela viesse embalada em embustes.
CONCLUSÃO: O HUMOR COMO ARMA E ESPELHO
Em 1913, o Brasil vivia os paradoxos da Primeira República: ferrovias cruzavam o país, mas as ruas das cidades ainda tinham lama; mulheres liam romances franceses, mas precisavam de autorização marital para abrir uma conta bancária; a imprensa ria alto, mas muitos jornalistas eram perseguidos.
Essas páginas não são apenas registros de piadas antigas. São documentos de resistência, onde o riso era uma forma de denúncia. Cada caricatura, cada anúncio, cada erro de grafia conta uma história de desejos, frustrações e esperanças de um povo em busca de modernidade — sem perder, por inteiro, o senso de ironia.
E nisso, talvez, ainda nos pareçamos muito com 1913.
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