As Senhorinhas da Alameda Carlos de Carvalho: A História do Palacete Vieira e o Legado Arquitetônico de Eduardo Fernando Chaves
Na Curitiba dos anos 1920, uma cidade em plena efervescência urbana e social, ergueu-se na elegante Alameda Carlos de Carvalho, nº 663, uma residência que desafiava convenções: encomendada não por um patriarca, mas por três mulheres — Cecília, Sílvia e Lígia Alvares Vieira —, filhas de Ulisses Vieira, homem cujo nome permanece na memória da família, mas cuja figura se desvanece nos registros oficiais. A casa, concebida com requinte e solidez, tornou-se um símbolo de independência feminina, prestígio familiar e excelência arquitetônica — obra do talentoso Eduardo Fernando Chaves, projetista-chave do escritório Gastão Chaves & Cia.
Embora hoje demolida (situação registrada em 2012), essa residência de grande porte permanece viva nos arquivos, nas fotografias desbotadas e nas plantas meticulosamente desenhadas — um testemunho silencioso do que foi, por décadas, um dos endereços mais distinguidos do centro de Curitiba.
As Patronas: Três Mulheres à Frente do Seu Destino
Numa época em que as mulheres raramente figuravam como proprietárias ou mandantes de obras de grande envergadura, o fato de Cecília, Sílvia e Lígia Alvares Vieira terem encomendado, supervisionado e possivelmente habitado uma residência de 540 m² em dois pavimentos é, por si só, extraordinário.
Filhas de Ulisses Vieira — cujo legado, embora não detalhado nos documentos arquitetônicos, sugere status social elevado (talvez ligado ao comércio, à política ou à magistratura) —, as três irmãs representavam uma nova geração de mulheres curitibanas: educadas, cultas, e com meios para decidir sobre seu espaço vital. Não se casaram ou, se casaram, mantiveram autonomia patrimonial — algo raro para a época.
Ao encomendar uma casa em nome coletivo, elas desenharam não apenas um lar, mas um espaço de convivência, dignidade e permanência familiar, talvez como forma de preservar a memória do pai após sua morte. A residência, portanto, era mais que tijolos e telhados: era um ato de memória e de resistência.
O Projeto: Dois Momentos, Uma Visão de Grandeza
O projeto arquitetônico foi desenvolvido em duas fases, refletindo a complexidade e as adaptações comuns nas construções de elite da Primeira República:
- Primeira fase: 17 de janeiro de 1920 – apresentação do projeto inicial, com alvará nº 860/1920 (Talão 275).
- Segunda fase: 16 de março de 1923 – revisão do projeto, possivelmente incluindo ampliações ou ajustes, com novo alvará nº 2700/1923.
Esse intervalo de três anos sugere que a construção foi feita por etapas, com cuidado orçamentário e atenção aos detalhes — uma prática comum entre famílias que priorizavam a qualidade sobre a velocidade.
O projetista Eduardo Fernando Chaves, já conhecido por sua versatilidade — desde palacetes até casas modestas —, demonstrou aqui seu domínio do estilo eclético europeu, com toques neoclássicos e influências francesas. A residência combinava monumentalidade e elegância, sem cair no excesso.
Características arquitetônicas:
- Dois pavimentos, totalizando 540 m² (provavelmente 270 m² por andar, embora a documentação mencione 540 m² como área total — possível erro de registro ou referência à área útil ampliada por varandas e saliências).
- Alvenaria de tijolos, técnica robusta que garantia durabilidade e isolamento térmico.
- Fachada principal imponente, com simetria axial, janelas em arco, platibanda decorada e, muito provavelmente, um pórtico central ou pequeno alpendre de acesso.
- Planta distribuída com hierarquia espacial: salões nobres para recepção, salas íntimas, quartos amplos, copa, cozinha e dependências de serviço no térreo ou fundos.
- Corte transversal indicando pé-direito elevado, teto ornamental e escadaria nobre ao centro — elementos típicos das residências de elite.
Além disso, um projeto específico para uma nova entrada (referência 3) revela que, mesmo após a construção iniciada, as senhorinhas buscavam melhorar o acesso e a estética do imóvel, talvez para se adequar a mudanças no alinhamento viário ou para impressionar visitantes.
A Localização: A Alameda Carlos de Carvalho, Coração da Cidade
A escolha do endereço não foi casual. A Alameda Carlos de Carvalho, uma das vias mais nobres de Curitiba desde o final do século XIX, era o lar de famílias tradicionais, médicos, juízes, comerciantes de sucesso e figuras políticas. Estar nessa alameda era estar no mapa social da cidade.
O número 663 situava a residência próximo ao cruzamento com a Rua Marechal Deodoro, em pleno centro histórico — perto do Teatro Guaíra (ainda em construção na época), da Catedral, e dos principais clubes sociais. Era um endereço que falava por si: aqui moram pessoas de respeito.
O Imóvel em Imagens: Beleza Capturada
Felizmente, além das pranchas técnicas, existe uma fotografia do imóvel, sem data exata, mas que mostra claramente sua imponência arquitetônica. A imagem, preservada na Coleção Residência Ulisses Vieira, no Arquivo Público Municipal de Curitiba, foi doada por Ruth Dittrich Vieira, descendente da família — uma prova de que a memória doméstica ainda resiste ao tempo.
Nessa fotografia, vê-se:
- Uma fachada simétrica, com janelas altas e molduras em estuque;
- Telhado de quatro águas, coberto com telhas francesas ou coloniais;
- Um jardim frontal bem cuidado, com cercamento de ferro forjado;
- Uma escada de acesso que convida à entrada — não uma fortaleza, mas uma residência acolhedora, mesmo em sua grandiosidade.
O Fim Prematuro: Demolição em 2012
Apesar de sua importância histórica e arquitetônica, a residência das senhorinhas não foi tombada. Em 2012, foi demolida, provavelmente para dar lugar a um empreendimento imobiliário moderno — mais um capítulo na luta contínua entre memória e especulação urbana em Curitiba.
Sua perda é especialmente dolorosa porque não era apenas mais uma casa: era um testemunho raro da agência feminina no espaço urbano do início do século XX, um monumento à união familiar e um exemplo acabado da arquitetura residencial de elite do período eclético.
Eduardo Fernando Chaves: Entre a Grandiosidade e a Sensibilidade
Mais uma vez, Eduardo Fernando Chaves demonstra sua maestria. Se em 1922 projetou uma casa humilde para José Muzzilo, aqui, três anos antes, já mostrava domínio sobre a escala monumental. Seu traço era claro, funcional e elegante, sem perder a alma.
Trabalhar para três mulheres — em uma época em que a arquitetura era quase exclusivamente comandada por homens — exigia sensibilidade, escuta e respeito. Chaves não apenas construiu paredes; ajudou a materializar a autonomia de três irmãs que decidiram viver juntas, com dignidade, em seu próprio domínio.
Epílogo: O Que Resta Quando o Tijolo Desaparece?
A casa de Cecília, Sílvia e Lígia Alvares Vieira já não existe. Mas sua história permanece — nos microfilmes do Arquivo Público, na memória de Ruth Dittrich Vieira, nas pranchas que ainda respiram o traço firme de Chaves.
Ela nos lembra que a história urbana não é feita só de homens ricos e palacetes isolados, mas também de mulheres corajosas que desafiaram papéis, de arquitetos que serviram a todos os sonhos — grandes ou pequenos, e de cidades que, ao apagar seu passado, correm o risco de esquecer quem foram.
Hoje, onde antes se erguia o palacete das senhorinhas Vieira, o vento carrega o eco de risos, de orações vespertinas, de passos no corredor de madeira. E, embora os tijolos tenham caído, a dignidade delas — e a beleza do que construíram — ainda habita os arquivos da memória de Curitiba.
Eduardo Fernando Chaves: Projetista na empresa Gastão Chaves & Cia
Denominação inicial: Projecto de casa para as senhorinhas Cecilia, Sylvia e Ligia Alvares Vieira
Denominação atual:
Categoria (Uso): Residência
Subcategoria: Residência de Grande Porte
Endereço: Alameda Carlos de Carvalho, nº 663
Número de pavimentos: 2
Área do pavimento: 540,00 m²
Área Total: 540,00 m²
Técnica/Material Construtivo: Alvenaria de Tijolos
Data do Projeto Arquitetônico: 17/01/1920 e 16/03/1923
Alvará de Construção: Talão Nº 275; N° 860/1920 e N° 2700/1923
Descrição: Projeto Arquitetônico para construção da residência e fotografia do imóvel.
Situação em 2012: Demolido
Imagens
1 – Desenho da fachada principal.
2 – Plantas dos pavimentos térreo e superior e corte transversal.
3 – Projeto para nova entrada da residência.
4 – Fotografia do imóvel, s/d.
Referências:
1 e 2 - GASTÃO CHAVES & CIA. Projecto de casa para as senhorinhas Cecilia, Sylvia e Ligia Alvares Vieira á Alameda Carlos de Carvalho. Plantas dos pavimentos térreo e superior, corte e fachada frontal apresentados em duas pranchas. Microfilme digitalizado.
3 – GASTÃO CHAVES & CIA. Projecto para nova entrada do predio em construcção á Alameda Carlos de Carvalho. propriedade das senhorinhas Cecilia, Sylvia e Ligia Alvares Vieira. Microfilme digitalizado.
4 – Coleção Residência Ulisses Vieira.
1 – Desenho da fachada principal.
2 – Plantas dos pavimentos térreo e superior e corte transversal.
3 – Projeto para nova entrada da residência.
4 - Fotografia do imóvel, s/d.
Acervo: Arquivo Público Municipal de Curitiba; Ruth Dittrich Vieira.




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