sábado, 4 de fevereiro de 2023

Baronesa do Serro Azul: história, memória e esquecimento

 Baronesa do Serro Azul: história, memória e esquecimento

https://www.turistoria.com.br/baronesa-do-serro-azul-historia-memoria-e-esquecimento

O nascimento em Paranaguá


Maria José Correia (que posteriormente viria a ser a Baronesa do Serro Azul) nasceu em 19 de abril de 1853, na cidade de Paranaguá. Era filha de Manoel José Correia e Gertrudes Pereira Correia. Manoel José Correia era português e veio à Paranaguá a mando do seu tio, Manoel Francisco Correia, para casar com Gertrudes. 


O casamento entre Manoel José Correia e Gertrudes Pereira Correia foi muito desejado pela família dele. Gertrudes era filha de Manoel Antônio Pereira, capitão-mor de Paranaguá, primeiro prefeito da cidade e defensor da independência do Paraná, representante da elite da cidade junto com Manoel Antônio Guimarães, o Visconde de Nácar.


Manoel José Correia e Gertrudes Pereira Correia se casaram em Paranaguá em 1841 e tiveram 10 filhos, entre eles o Comendador Manoel do Rosário Correia e o médico e praticante do espiritismo Leocádio Correia. Maria José Correia foi a oitava a nascer, batizada no dia 20 de agosto na Igreja Matriz. Segundo Maria Nicolas, “ Maria José estudou no próprio lar com mestres particulares, pois naqueles tempos era vedada a cultura à mulher. Recebeu igualmente esmerada e fina educação”, o que se comprova pela qualidade narrativa de suas cartas.


Por carência de documentação, pouco se sabe sobre a juventude de Maria José Correia, pelo menos até o dia de seu casamento com Ildefonso Pereira Correia (1845-1894), que era seu primo e viria a ser o Barão do Serro Azul. Para a época, mas especialmente para a elite parnanguara, o casamento entre primos era algo absolutamente comum e até desejado, pois, conforme salienta Túlio Vargas, “importava preservar os bens do clã e fortalecer a tradição herdada de antepassados ilustres”. O pai de Ildefonso era Manoel Francisco Correia Júnior, o moço, filho de Manoel Francisco Correia; Ildefonso e Maria José Correia eram, portanto, primos-irmãos


Maria José, a quem carinhosamente sua família e Ildefonso chamavam de “Nhá Coca”, casou-se em 24 de dezembro de 1871, aos 18 anos. 

A ida a Curitiba


Por alguns anos, o casal morou em Paranaguá, mas em 1874 já estava estabelecido em Antonina, onde Ildefonso, junto com seu irmão Pedro Alcântara e David Carneiro, abriu uma ervateira. Com a abertura da Estrada da Graciosa e o crescimento da cidade de Curitiba, os Correia subiram a Serra do Mar e se instalaram na capital em 1878, onde Ildefonso adquiriu o Engenho Iguassú, fundou o Engenho Tibagy e construiu uma casa para ele e sua esposa. Na época, embora já fosse maçom e abolicionista, ele apoiava as candidaturas do tio, Manuel Eufrásio Correia, pelo Partido Conservador. 


O Engenho Iguassú, fundado em 1878, inseriu o casal Correia na elite curitibana, passando a competir com outras famílias famosas do ramo ervateiro. Tanto que, por isso, teve de construir uma residência no mesmo nível dessas famílias: a obra começou em 1880 e foi finalizada em 1884, às vésperas da visita da princesa Isabel e seu marido, o Conde D'Eu a Curitiba, em dezembro daquele ano; tratava-se de um palacete de três andares colado à rua Serrito (atual Carlos Cavalcanti), em estilo eclético mas com nítidos traços neoclássicos, sendo uma das maiores edificações de Curitiba à época (cuja história você pode conhecer clicando aqui).


Consolidados em Curitiba, Ildefonso e Maria tiveram sua primeira filha, Iphygênia, em 1883, depois Maria Clara Correia, em 1885, e Ildefonso Correia Júnior, o “Barãozinho”, em 9 de julho de 1888. O jornalista Roberto Barrozo afirmou, em 1921, que Maria José teria tido outros quatro filhos que não teriam resistido aos primeiros meses de vida. Comprovadamente, porém, sabe-se que ela perdeu um filho, também chamado de Ildefonso, durante a visita ao Paraná da Princesa Isabel e de Conde d’Eu, episódio que a princesa relatou em seu diário. A corte imperial havia chegado no dia 24 de novembro de 1884, e Ildefonso faleceu em 5 de dezembro.


Presume-se até que a princesa Isabel e Conde d’Eu tenham visitado a família Correia em sua residência. Ildefonso e Maria José eram dois dos principais anfitriões de Curitiba, uma vez que o recém fundado Engenho Tibagy se tornou um dos mais modernos e produtivos engenhos de erva-mate de então. Essa visita foi fundamental para que Ildefonso Correia Pereira recebesse o título de Barão do Serro Azul em 1888, que conferia a ele e sua esposa a entrada à nobreza. 


Nesse período, o Barão já havia sido vereador de Curitiba, presidente da Câmara Municipal e, entre junho e agosto de 1888, governador interino da Província do Paraná. Além disso, tornou-se famoso pelo seu envolvimento com causas e instituições abolicionistas, como a “Sociedade Ultimatum”.


A vida da Baronesa após a morte do Barão


O assassinato do Barão do Serro Azul, no dia 20 de maio de 1894, no km 65 da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, em virtude das decorrências da Revolução Federalista, marcou definitivamente a vida da Baronesa. Nos estudos biográficos sobre ele, recorrentemente se afirma que ela viveu enlutada o resto de sua vida, bem como que faleceu pobre em decorrência da perda do marido. Ou seja, construiu-se uma memória de Maria José Correia que a retrata como uma
 vítima da história, pautada apenas pela morte do marido, mas que não retrata suas ações depois do ocorrido. 


Uma das notórias ações da Baronesa, inclusive, se deu em âmbito político, quando em junho de 1895, o senador Barão de Ladário proferiu, no Congresso Nacional, um eminente discurso sobre a morte de Ildefonso Pereira Correia, o Barão do Serro Azul. Este discurso havia sido escrito pela Baronesa, numa carta em que condenava os responsáveis pelo assassinato do seu marido. Uma vez que as mulheres não podiam se candidatar a nenhum cargo ou mesmo frequentar o congresso, esse gesto acabou sendo uma forma encontrada pela Baronesa de amplificar suas denúncias e fazer sua voz adentrar um ambiente onde mulheres não eram bem vindas. 


Com o falecimento do Barão do Serro Azul, Maria José e seus herdeiros sofreram um boicote político e econômico que durou cerca de 40 anos. Alguns sintomas desse boicote são os seguintes: primeiro, a Baronesa nomeou o antigo sócio e amigo do Barão, David Carneiro, como seu procurador e representante legal, já que ela não podia assumir cargos públicos ou privados; e depois, delegou a Carneiro a presidência da Impressora Paranaense, outrora propriedade do Barão. A Impressora, inclusive, entrou em grave recessão, tendo sido liquidados os investimentos de acionistas, até ser vendida em 1902 ao litógrafo Francisco Folch, pela qual a Baronesa recebeu 500$000 réis (escrevemos um artigo só sobre a Impressora, que você pode conferir clicando aqui).

Apesar disso, após ficar meses em Paranaguá com seus familiares, em 1895 a Baronesa voltou a Curitiba e começou a fazer investimentos de capital e ações filantrópicas. Uma das primeiras ações públicas foi na Sociedade Beneficente 13 de Maio, instituição da qual era sócia-benemérita desde 1892. Em 1895 a Baronesa do Serro Azul e o Dr. Francisco Soares doaram à Sociedade, em virtude dos festejos de 13 de Maio, “dois quadros e 4 pares de cortinas, para servir de decoração à sala das sessões da Sociedade”. Ao que tudo indica, ela se manteve próxima à associação até 1906, quando se tem notícia de que teria doado 30 tábuas para a construção de sua nova sede (também temos um artigo sobre o Clube 13).


No ano do regresso a Curitiba, a Baronesa do Serro Azul também passou a morar em outra casa. Segundo a pesquisadora Cassiana Lacerda, a família dela mandou construir um novo edifício ao lado do palacete onde morava com Ildefonso e os filhos, já que mantê-lo era muito custoso; a nova casa era menor, com apenas um andar. Desde então, Maria José começou a alugar o palacete a algumas instituições: primeiro, para o “Colégio de Meninas”, instituição católica de educação infantil idealizado pelas irmãs da congregação francesa “Nossa Senhora dos Santos Anjos”, que funcionou ali entre 1897 a 1901; depois, para o Grande Oriente Paraná, instituição maçônica que ali esteve sediada entre 1902 e 1909. 


Ao passo que se adaptava a uma realidade completamente diferente daquela que até então vivera, a Baronesa do Serro Azul começou a fazer investimentos para, pelo menos, preservar as suas posses. Em 1898, o jornal A República informou que ela e Boaventura Rodrigues de Azevedo, com capital de 500$000 réis sob a firma de David Carneiro, passaram a importar erva-mate e demais mercadorias não especificadas, em negócio sediado na rua 13 de Maio. A última menção que a envolve em investimentos de capital é de 1905, quando teria, sob a firma de seu sócio, João Baptista Manzoqui, aberto uma empresa de extração e comércio de madeiras em São José dos Pinhais, numa fazenda chamada de “Maria José”, com aplicação de 200$000 réis por ela e seu sócio. 


Parece inverossímil, portanto, a afirmação de que a Baronesa teria ficado apática, reclusa ou empobrecido de forma acachapante logo após a morte do seu marido, tendo em vista a dimensão dos negócios que fez entre 1895 e 1905. Todos estes negócios, no entanto, não levavam o nome da Baronesa, mas o dos seus sócios homens — já que era vedada a possibilidade de firma com o nome de uma mulher. O que nos parece mais nítido, por outro lado, é a venda das empresas que tinham uma identidade estritamente ligada ao Barão do Serro Azul: o Engenho Tibagy e a Impressora Paranaense. Com o capital destes negócios, Maria José Correia abriu outros, mas com o seu nome, mesmo que em sociedade. 


Por meio dessas ações que preservaram, em certa medida, o seu poder, a Baronesa do Serro Azul pôde manter duas tradições da família Correia: direcionar o casamento das filhas com herdeiros da elite paranaense, e continuar e até intensificar as ações filantrópicas. 


Além das já referidas doações à Sociedade Beneficente 13 de Maio, a Baronesa do Serro Azul também se notabilizou pelas quantias que destinava às Santas Casas de Misericórdia de Paranaguá, Antonina e Curitiba, conforme afirma a pesquisadora Maria Nicolas. Não por menos, Maria José Correia foi benfeitora da Santa Casa de Curitiba, cuja bela história você pode ler clicando aqui. Ela também fez doações significativas a outras instituições hospitalares, como o Hospício Nossa Senhora da Luz.

Outra instituição para a qual a Baronesa dedicou ações filantrópicas foi a Sociedade Portuguesa 1º de Dezembro. Em seu site oficial, está transcrito um trecho da ata de reunião de 28 de abril de 1902, realizada na Sociedade, que revela o seguinte:


O Exmo. Sr. Presidente communicou que a Exma. Baroneza do Serro Azul cedera para a Sociedade os lotes de terreno nº14-16-19 e 20, situados na Villa Ildefonso para a construcção do hospital. Ao mesmo tempo authorizou o Secretário a fazer o requerimento à Câmara. O 1º Secretário communicou que a mesma Exma. Sra. Oferecera á Sociedade uma mobília. Ficou resolvido convocar-se para mais tarde uma Assembléia Geral para conferir-lhe o título de sócia Benemérita, por valiosos donativos.


Ao todo, portanto, ela doou quatro lotes onde hoje é o final da Av. Visconde de Guarapuava, no bairro Batel, que faziam parte da chácara dos Correia, nos fundos do Engenho Tibagy. No local, foram feitas seis casas de madeira para servir como ambulatório. 


Em menor escala, Maria José Correia também doava quantias à Caixa dos Pobres —  instituição filantrópica incentivada pelo jornal A República —, ao jornal Diário da Tarde, à capela do Cabral e à Igreja de Cerro Azul. Seu nome era sempre citado nos jornais com muita reverência por conta da caridade a qual era disposta, pois recorrentemente ajudava e até educava pessoas necessitadas.


A última instituição com a qual a Baronesa certamente contribuiu foi a maçonaria, especialmente a Loja Acácia Paranaense. Com origem em Curitiba, em 1900, a loja deu início, dois anos depois, a uma ala de adoção feminina denominada “Loja Filhas de Acácia”, destinada a realizar ações de caridade. Uma de suas primeiras presidentes foi a Baronesa do Serro Azul.


Diante desses casos tem-se a dimensão do quanto a Baronesa do Serro Azul adentrou no espaço público após a morte do Barão, sobretudo por meio da filantropia. 


Certamente, com a dolorosa morte do Barão do Serro Azul, a Baronesa teve de assumir para si todas as responsabilidades, sendo uma delas a da filantropia. Isso, somada a continuidade que deu aos negócios familiares, colocou o seu nome cada vez mais em evidência, tanto nos jornais quanto nas instituições nas quais participava. 

Morte e memória


Não se sabe ao certo, mas acredita-se que a Baronesa do Serro Azul tenha voltado a Paranaguá em 1909, após o casamento de seus três filhos. Neste momento, já não dispunha mais de propriedades, somente de sua casa que foi vendida ao exército em 1912. Daí em diante, em situação de pobreza,
 
minguaram-se as suas ações de caridade. Até hoje se discute como ela ficou pobre, tendo em vista a fortuna herdada, mas nos parece que o boicote do estado e os investimentos infrutíferos foram algumas das possíveis causas. 


Maria José Correia viveu por mais 12 anos em Paranaguá junto a uma prima, mas manteve contato com os filhos e, principalmente, com seus netos, através de visitas e cartas, e de lá não mais saiu, para preservar sua saúde. 


Na manhã do dia 9 de dezembro de 1921, em Paranaguá, na casa do jornalista Roberto Barrozo e rodeada de amigos e familiares, Maria José Correia faleceu em decorrência de arteriosclerose generalizada. A seu pedido, não houve “officios religiosos da Egreja Romana”, nem música, e as quantias arrecadadas foram ofertadas aos pobres. Foi enterrada no Cemitério Municipal de Paranaguá, em túmulo preservado por seu sobrinho, Leocádio Cysneiros Correia.


De maneira breve, sua morte foi mencionada pelos jornais da época e pelas instituições que ajudou. Na Ata da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, consta uma homenagem em sua memória porque Manoel Francisco Correia Netto, seu parente, era procurador e solicitou que o nome dela fosse lembrado. 


Nas décadas posteriores, sua memória foi quase esquecida, até ser redescoberta, aos poucos e de maneira tímida, no final dos anos 1950. Hoje, seu nome é lembrado na Sociedade Portuguesa 1º de Dezembro, onde há uma comenda em sua homenagem, e em Paranaguá, onde há uma rua com seu nome. Mas ainda é muito pouco.


Agora, exatos cem anos depois de sua morte, escrevemos este artigo buscando dar nossa contribuição para a preservação da memória de uma das mais importantes paranaenses de sua época.

Texto e pesquisa de Gabriel Perin e Gustavo Pitz


Fonte de pesquisa:  


NICOLAS, Maria. Pioneiras do Brasil: Estado do Paraná. Curitiba, 1977.

Edições dos jornais Dezenove de Dezembro, A Republica e Diário da Tarde, disponíveis na Hemertoca Digital


Acervo de Fernando Fontana.


Centro de Documentação da Casa da Memória.


Acervo da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba.


Fernanda Lucas Santiago. "SOCIEDADE 13 DE MAIO: UMA ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA NO PÓS ABOLIÇÃO (1888-1896)". Monografia em História, UFPR, 2015.

http://www.humanas.ufpr.br/portal/historia/files/2015/07/MONOGRAFIA-FERNANDA-L-SANTIAGO.pdf


http://www.sociedadeportuguesa.com.br/baronesa.html


CORREIA, Maria José Pereira. [Carta] 8 jun. 1895, Curitiba [para] AZEVEDO, José da Costa. Rio de Janeiro. Informações sobre o monstruoso attentado que trouxe lucto eterno a meu lar. In: ANNAES DO SENADO FEDERAL: Segunda Sessão da Segunda Legislatura. Volume II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895. p. 198-201.


VARGAS, Tulio. A ultima viagem do Barão do Serro Azul. 2. ed. Curitiba, PR: Juruá Editora, 2009.


HOERNER JR., Valério. A vida do Dr. Leocádio. Paranaguá, prefeitura municipal, 1979.

Riachuelo: uma rua rebelde

 Riachuelo: uma rua rebelde

https://www.turistoria.com.br/riachuelo-uma-rua-rebelde

Em meio a muitos animais havia um caminho, bem no centro da pacata vila de Curitiba: uma trilha antiga que ia em direção ao rio Belém e sua várzea. 


Rua dos Veados nunca foi um nome oficial dessa trilha, mas foi o primeiro e em alusão aos animais que ficavam por ali, aproveitando-se de tanta água. Na Câmara Municipal, o primeiro registro aparece nos anos de 1820 como Rua dos Lisboas (ou Rua Lisboa), provavelmente porque ali moravam ervateiros com esse sobrenome: Lisboa. Depois, com a construção de uma fonte de água (a carioca), a rua passou a ser chamada de Rua da Carioca (ou Carioca do Campo ou Carioca da Cruz).

Hoje, no local da fonte, fica a Praça 19 de Dezembro e a rua, desde 1871, é chamada de RIACHUELO, em homenagem ao conflito que deu a primeira grande vitória da Tríplice Aliança (Brasil, Uruguai e Argentina) na Guerra contra o Paraguai, em 1865: a Batalha Naval do Riachuelo.


Ou seja, começou nas várzeas do Rio Belém e levou o nome do pequeno afluente do Rio Paraná, onde aconteceu um momento decisivo da história do nosso país: o Riachuelo. Quando comentei isso, meus historiadores preferidos (os do Turistória, é claro) responderam: “Como foi no Ipiranga! Até parece que a história do Brasil foi feita em banhados!!!”


Esse é apenas o começo da história de uma rua de Curitiba com características únicas e que é contada num trabalho intenso de pesquisa que leva o nome de “As muitas vistas de uma rua: histórias e políticas de uma paisagem – Curitiba e a Rua Riachuelo”, um verdadeiro tesouro lançado em 2014 pela Editora Máquina de Escrever, também curitibana.


Desde a dedicatória, o livro é inclusivo, na contramão das tentativas de construção de uma imagem de marginalização atribuída a tantos espaços do centro da capital paranaense. O livro é “a todos que fizeram e/ou fazem da Riachuelo uma rua de todo mundo”, incluindo os que perderam seu lugar e os que transgridem. Aliás, a própria rua, desde o início, faz jus ao seu estigma de transgressão. Contam as autoras que, antes mesmo de mudar de nome e à revelia dos primeiros planos de urbanismo da cidade, a Rua da Carioca procurava desviar os banhados do Rio Belém e traçava seu próprio curso, cruzando o rio e seguindo em direção à Estrada da Marinha (ou da Graciosa).


O tempo foi passando e a abertura da Estrada da Graciosa, depois a inauguração do Passeio Público e, principalmente, a construção da Ferrovia Curitiba-Paranaguá em 1885, foram transformações do final do século XIX que levaram não só a Riachuelo, mas todo seu entorno, a um patamar de crescimento nunca antes tão acelerado. A linha dos bondes (ainda de mulas) chegou à Riachuelo e a tornou passagem obrigatória entre as residências de grandes produtores de erva-mate, desde o Alto da Glória e o Passeio, até o conjunto político-administrativo da Rua da Liberdade (atual Barão do Rio Branco) e a Estação Ferroviária.


Nos primeiros anos do novo século, o XX, os bondes de mulas foram substituídos pelos elétricos e as casas por construções cada vez mais verticalizadas. Surgem então pequenos prédios e palácios, como o Hotel Martins (foto 2) e o Palácio Riachuelo (foto 3), sob influência do estilo chamado, desde aquela época, de ‘ecletismo’. Mas logo surgem outras tendências, como o art déco, e a verticalização dos sobrados ecléticos dá lugar a uma estética ligada à velocidade e ao futuro. Na metade do século XX, em 1952, o imponente edifício Dona Rosa, na esquina da São Francisco com a Riachuelo, “atropela” as tendências das construções da rua, trazendo à cidade a cultura de “morar em altura” (sic).


Logo depois, em 1953, o Paraná comemorava o centenário de sua emancipação política e muitas obras foram construídas para marcar a data, desde o Centro Cívico, que passaria a centralizar os poderes do Estado e do Município, passando pelas reformas da Rua Barão do Serro Azul e do então Grupo Escolar Tiradentes, até a revitalização da Praça Dezenove de Dezembro. A Rua Riachuelo ficou “acanhada” diante de toda essa movimentação política e arquitetônica, aliada ao crescimento do automóvel como opção de transporte urbano.


A história mais recente da rua nos é contada em detalhes pelos autores (Aline Fonseca Iubel; Dayana Zdebsky de Cordova e Fabiano Stoiev), que vão sempre nos chamando a encarar a Riachuelo não apenas em termos de suas unidades edificadas, mas enquanto PAISAGEM CULTURAL. Essa paisagem inclui sim as edificações (claro), mas o livro amplia muito a visão do leitor sobre conceitos clássicos de patrimônio, convidando para um jogo de narrativa plural que inclui diferentes perspectivas: vistas, discursos, imaginários, caminhos, trajetos, travessias, lugares de forte apelo simbólico, interesses (políticos e comerciais) e mais tantas outras atividades. Nesse jogo, a leitura se torna uma experiência lúdica, onde a gente acaba brincando de aprender história. Mas fica bem claro também que “não se trata de um trabalho em defesa da Rua Riachuelo enquanto patrimônio, mas de uma reflexão sobre todos esses discursos”, os formais e os informais.


Esses pontos de vista partem de “diferentes grupos étnicos e classes sociais, atores de diversas atividades, comerciais ou não, de uma rua que insiste em escapar aos contornos que lhe são impostos”. Veja o exemplo de um dos restaurantes mais chiques da cidade, o primeiro de culinária francesa, ter permanecido por mais de 64 anos bem próximo a bares e até botecos bastante populares. Sim, de 1957 a 2021, o endereço do Restaurante Île de France foi: Rua Riachuelo, 538 (Foto 5). Desde outubro de 2021, o restaurante passou a atender no bairro do Batel.



O livro do qual falamos aqui foi publicado em 2014, logo após a execução de um dos maiores projetos de revitalização da Rua Riachuelo. Atualmente, depois de novas reformas, discursos e restaurações, ela segue sua sina de uma rua que insiste em escapar aos contornos que lhe são impostos, uma rua com personalidade, e personalidade forte.

Esse artigo termina citando um trecho (ou seria um convite?) do próprio livro, que personifica a nossa Riachuelo, a rua mais plural de uma Curitiba tão universal. Aproveite:


“Uma rua indomável, rebelde, para a qual não cai bem a tentativa de leitura homogeneizante daqueles que pretendem intervir nela ou colocá-la nas caixinhas classificatórias das políticas públicas”.


Texto e pesquisa de Cyntia Wachowicz

Centro de Saúde Modelo

 

Centro de Saúde Modelo


Prédio na Rua Barão do Rio Branco, inaugurado em 1950

O prédio da Secretaria de Saúde do Paraná na Rua Barão do Rio Branco, 465; esquina com a Rua André de Barros é uma Unidade de Interesse de Preservação. Tem linhas típicas da arquitetura do Estado Novo.

Foi inaugurado, como Centro de Saúde Modelo, no mesmo dia da inauguração do prédio atual do Colégio Estadual do Paraná, no dia 29 de março de 1950, durante uma visita do então presidente Eurico Gaspar Dutra.
A inauguração deu-se durante a gestão do governador Moisés Lupion, mas a verba federal para construção, como no caso do Colégio Estadual, foi pleiteada e conseguida pelo interventor Manoel Ribas.

Até fevereiro deste ano funcionava no local a sede da 2º Regional de Saúde – Metropolitana, que foi transferida para a Avenida Marechal Floriano. O prédio atual, segundo noticiou o governo do estado, será reformado para ser a nova Escola de Saúde Pública do Paraná.

O jornal “O Dia”, de 2 de abril de 1950, na pág. 4, descreveu assim o prédio.

“… O edifício do Centro de Saúde ocupa uma áreas de 4.266 metros quadrado. O sub-solo é dotado de abrigo anti-aéreo, Garagens para 8 carros, Chefia, Depósitos, Produção de gaz, Socorros irritados, Sala de máquinas e Sanitários.
No 1.º andar estão: Almoxarifado, Chefia — Exame de Lepra, Ga. Médico, Exame de doentes, Laboratório C. S., Repouso-Pneumotorax, Colheita de Material, Gab. de Saúde, Gab. Médico, Injeções, Fichário, Sala de espera tuberculosos, Gab. Médico, Raio X, Câmara escura, Sala de espera raio X, Hall, Portaria, Elevadores, Gab. Dentário, Sala de espera, Gab. escolar, Gab. pré-escolar, Câmara escura, Gab. dentário, Oftalmologia, Otorrino Laringo jat. Higiene infantil Pesagem fichário, Gab pré-natal, Repouso injeções, Higiene mental, Esterilização, Preparo de dietas, Distribuição, Sanitários.
No 2.º andar: Fichário, Gab. médico, Curativos, Lavagens, Injeções, Sala de espera homens, Sala de espera mulheres, Hall, Hall de distibuição, Elevadores, Arquivo central, Protocolo, Secretaria, Gabinete, Chefia de C. S., Guardas, Polícia Sanitária, Higiene da alimentação, Transmissíveis, Fichário, Higiene de Trabalho, Arquivo, Visitadoras, Secretaria, Gab. Chéfe, Farmácia, Expedição, Embalagem, Depósito, Comprimidos, Lavagem esterilização, Hepodermia, Análises, Sanitários.
E no 3.º andar: Hall, Auditórios, Estudo, Biblioteca, Sanitários, Elevadores, Hall, Fiscalização, Propaganda e educação sanitária, Secção Técnica, Chéfe, Malária, Venéreas, Chefia dos distritos Sanitários, Engenharia Sanitária, Profilaxia da lépra, Sala de desenho, Epidermiologia, Secção Bio-estatística, Sanitários, Protocolo, Secretaria do diretor, Despacho, Contadoria, Secretaria, Chéfe da Secretaria, Maternidade infância, Médico social, Gab. reservado, Toucador, Arquivo.
Seu custo total foi de dez milhões de cruzeiros.”

Publicação relacionada:
Colégio Estadual do Paraná

Referências:

Vista aérea da região central de Curitiba, especialmente da Rua Visconde de Nácar - Maio/1995.

 Vista aérea da região central de Curitiba, especialmente da Rua Visconde de Nácar - Maio/1995.


Pode ser uma imagem de rua, estrada e arranha-céu